Coluna Vitor Vogas
“Venda da democracia”: Justiça precisa moralizar a Câmara da Serra
A denúncia formulada pelo MPES contra vereadores e ex-vereadores da Serra traz à baila acusações tão graves e indícios de corrupção tão fortes que não há outra conclusão possível

No sentido da leitura: Cleber Serrinha, Wellington Alemão, Saulinho da Academia e Teilton Valim: acusados pelo MPES
Respeito ao devido processo legal, sempre. Direito à ampla defesa das partes acusadas, sempre. Garantia dos direitos fundamentais, sempre. Regras processuais penais não podem ser atropeladas e ninguém aqui acredita, muito menos preconiza, qualquer forma de “justiçamento” sumário, para “lavar a alma da sociedade” – longe disso. Entretanto, a Justiça precisa agir.
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A denúncia formulada pelo MPES contra vereadores e ex-vereadores da Serra traz à baila acusações tão graves e indícios de corrupção tão fortes que não há outra conclusão possível: passou da hora de a Justiça Estadual do Espírito Santo botar um freio, dar um basta a um modus operandi que, ao que tudo indica, está profundamente entranhado há tempos naquela Câmara Municipal.
Os diálogos captados e transcritos na peça acusatória são estarrecedores. Troque “venda de sentenças” por “venda de votos em plenário”, e temos um simulacro da Operação Naufrágio. Qualquer um que lê a denúncia fica com a sensação de que as autoridades constituídas, com poder para isso, não podem deixar passar a raríssima chance de moralizar minimamente aquela Câmara e debelar algo que, ao que parece, estabeleceu-se ali há décadas como uma cultura política, tamanho o grau de naturalização das práticas expostas pelo MPES.
É a cultura do “toma lá, dá cá”; da venda de votos em plenário; da captação de propina; da negociação de vantagens indevidas em troca da aprovação de projetos de lei de interesse de terceiros; da extração do máximo proveito financeiro de cada oportunidade que se apresenta; da exploração de posições privilegiadas, como parlamentares que são, para faturar um por fora sempre que podem, em vez de legislar unicamente a serviço do povo e em prol do interesse público, como manda a Constituição a que juraram obediência ao assumir, e como espera a mesma população que ali os colocou.
Foi para isso que foram eleitos: para servirem ao povo. Não para cumprirem a “Lei do Gerson”, aquela que, já nos anos 1970, quando a Serra não passava de uma roça, ditava que “o importante é se dar bem”. Mas tal foi a cultura, assim gritam todos os indícios, que se entranhou há décadas naquela “Casa de Leis”. Aspas, muitas aspas…
No caso em apreço, o MPES denunciou quatro vereadores por corrupção passiva (três deles, integrantes da atual Mesa Diretora) e dois ex-vereadores por corrupção ativa.
Os primeiros, segundo a acusação do MPES, fizeram de tudo para auferir o maior ganho financeiro possível como condição para aprovarem um projeto de lei enviado em 2024 pela Prefeitura da Serra e que interessava particularmente a diversos empresários da cidade: o que permitiria a regularização fundiária de imóveis há muito tempo ocupados e usados por agentes privados, mas pertencentes ao município. Os segundos, na outra ponta, seriam os intermediários, representantes de empresários (não nominados) interessados na aprovação do projeto.
As negociações, diz o MPES, teriam incluído a oferta de R$ 100 mil e até de um terreno no bairro Carapebus cujo valor superaria essa quantia. Também teriam passado por uma emenda apresentada sob medida por um dos vereadores integrados ao suposto esquema, com o intuito específico de alargar as possibilidades de regularização fundiária, contemplando determinado agente privado que estava na outra ponta das tratativas.
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Essa é uma modalidade de obtenção de vantagem indevida, verificada pelo órgão investigador no caso concreto. Numa clássica variação, dá-se o oposto: o nada bom e velho “criar dificuldades (legislativas) para colher facilidades (financeiras)”; restringe-se o escopo do projeto por meio de emenda parlamentar, só para depois se cobrar um preço pela retirada ou derrubada da mesma emenda em plenário. Infelizmente, quem é do meio político está exausto de ver esse modus operandi em ação – diga-se de passagem, para muito além das divisas da Serra.
Mas tornemos à Câmara da Serra, que é o objeto deste artigo.
“Aquela paz que eu não quero seguir admitindo”
A denúncia do MPES foi apresentada no último dia 14 – oito dias atrás. Ao longo desta semana, conversei com dois agentes políticos que acompanham o desenrolar dos fatos. Os dois falaram sob anonimato. Atualmente, estão em posições bem opostas: o primeiro trabalhou como assessor, na Câmara da Serra, muitos anos atrás, nos idos das décadas de 1990 e 2000. O segundo lá trabalha atualmente, também como assessor parlamentar.
O primeiro, ao ler a denúncia do MPES, vibrou como garoto, aplaudiu-a: “Alvíssaras! Já era hora”. Segundo o relato dessa fonte, a cultura relatada acima já estava ali, instituída, desde os tempos em que ele lá atuou, décadas atrás, muito antes de a Serra se tornar a potência que viria a se tornar: município mais populoso do Espírito Santo, maior colégio eleitoral, maior PIB e maior parcela no rateio do ICMS estadual.
A Serra cresceu, tornou-se o coração econômico do Estado; proporcionalmente, cresceu sua importância política para o Espírito Santo. Mas a Câmara Municipal parou no tempo: replica, constata nossa fonte, as mesmas práticas provincianas e não republicanas que ele já observava de perto nos anos 1990.
O segundo, o assessor do presente, com trânsito na atual Mesa Diretora, deixou-nos o seu depoimento. Por incrível que pareça, segundo ele, passado aquele primeiro impacto da bomba que foi a revelação da denúncia na semana passada, a Câmara da Serra viveu uma semana de relativa tranquilidade – afora um protesto popular realizado em frente à sua sede por conta da denúncia. Essa, como canta o Rappa, é “aquela paz que não quero seguir admitindo”.
É a “paz” da reacomodação dos interesses e da impunidade.
Alentador, segundo a mesma fonte, foi o despacho editado pelo juiz responsável pelo caso bem no início da semana.
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Na segunda-feira, o titular da 2ª Vara Criminal da Serra, na qual tramita o processo, não acolheu a denúncia nem o pedido de afastamento cautelar reclamado pelo MPES. Nem os acolheu nem os negou. Antes de tomar sua decisão (numa espécie de anticlímax), o juiz pediu à titular da ação, a promotora que representa o MPES no caso, para manifestar se, no seu entendimento, caberia ou não a oferta de acordo de não persecução penal aos seis denunciados.
Na peça acusatória, a promotora nem sequer mencionara tal possibilidade; e, de acordo com o juiz, a ausência de manifestação específica quanto a isso poderia configurar um “vício procedimental” no processo, ou seja, uma falha técnica, à luz do “Pacote Anticrime” que alterou o Código de Processo Penal, em vigor desde 2019.
Pelo que apuramos com a aludida fonte, a decisão foi celebrada (discretamente) pelos vereadores na berlinda (e outros mais) como uma grande vitória. Na interpretação dos edis, o despacho do juiz seria evidência de que a denúncia é falha e inconsistente.
Na verdade, a decisão foi mal compreendida na Câmara, pelos próprios vereadores acusados. Eles entenderam que o juiz teria mandado a representante do MPES propor o acordo de não persecução penal, como se isso fosse uma ordem, uma obrigação, mas em momento algum ele fez isso – até porque não poderia. Ao contrário, o juiz escreveu que o MPES não era obrigado a propor um acordo. Com efeito, não era.
O que fez o juiz, na verdade, foi simplesmente perguntar se o MPES queria ou não oferecer um acordo dessa natureza (que permite a aplicação de punições mais brandas aos investigados, mediante o cumprimento de algumas condições, entre elas a confissão dos crimes):
“Olha só, prezado MPES, constatei aqui que, na denúncia que chegou para mim, vocês nem sequer mencionaram se entendem que cabe ou não cabe um acordo… Então, antes de tomar uma decisão, estou lhes perguntando: o que acham? Querem propor um acordo do tipo?”. Foi só isso.
Em resposta, a proponente da ação do MPES informou: “Não, não quero propor acordo de não persecução penal. Entendo que não cabe, porque nenhum dos acusados confessou nada na fase investigatória, durante seus depoimentos, e porque as condutas imputadas a eles são gravíssimas, tanto do ponto de vista legal como do ponto de vista moral. Um acordo como esse não bastaria para repreender o que constatamos ali. Reitero meu pedido para que o senhor receba a denúncia, instaure a ação penal e afaste os quatro vereadores do mandato”.
Isso em termos mais simples, traduzidos aqui por nós. E foi isso. Segue o jogo. Segue o processo. E a bola agora está com o juiz.
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“Ah, é só um áudio”… Mas que áudio, senhoras e senhores! Batom na lapela e em toda a roupa
Outra percepção colhida pela coluna na Câmara da Serra esta semana, justificando certo alívio e até certa confiança de que a denúncia “não dará em nada”, tem a ver com o elemento probatório principal em que se baseia a ação do MPES.
Trata-se de um arquivo de áudio, de uma conversa gravada por outro então vereador (o denunciante da trama), durante “reunião de emergência” realizada pelos parlamentares interessados em “levar um por fora”, no dia da votação do aludido projeto. Em mais uma gritante evidência de que os edis ali, de há muito, perderam o respeito e o pudor de negociar propina sempre que o conseguem, a reunião foi realizada dentro das dependências da Câmara.
Assim diz quem minimiza a denúncia: “Só está lastreada em um áudio. Não há provas. Isso é tudo que eles têm”.
Mas, meninos e meninas, que áudio!
Para quem não o ouviu nem leu as transcrições do diálogo, contidas na denúncia do MPES: é, simplesmente, bombástico. Um banquete de evidências; buffet de falas comprometedoras e auto-incriminatórias de alguns vereadores.
Sem o mínimo resquício de pudor ou de medo de serem pegos – nem falarei de “postura republicana” –, os vereadores em questão falam abertamente em obter vantagem indevida pela aprovação do projeto de lei e de aproveitar não só aquela chance, mas todas que se apresentarem, para se beneficiarem.
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Teria sido assim no referido projeto (o de regularização de imóveis); teria sido assim, de igual modo, anteriormente, durante a tramitação do Plano Diretor Municipal (PDM) – prato cheio para quem quer lucrar por fora, pois também muito interessa a empresários. E seria assim também, com base no mesmo áudio, em um futuro projeto de lei a ser encaminhado pelo Executivo.
O áudio foi periciado pela Polícia Civil. Sua autenticidade foi comprovada. Os próprios vereadores acusados confirmaram ser deles as vozes no registro. Mais que isso, só se tivessem confessado a corrupção passiva – o que nenhum deles fez.
Na conversa, diz o vereador Cleber Serrinha (PDT), usando um termo substituto para “propina” ou “suborno” que nos faz até recordar o “pixuleco”, da Operação Lava Jato: “Mas é o miguelai cair pra todo mundo”.
Já o vereador Wellington Alemão (Rede), autor da emenda, avisa logo: “Se vocês não quiserem votar hoje e quiser que dá em dinheiro eu vou atrás do cara também”.
O presidente da Câmara (vou repetir: presidente da Câmara) manda o “sincericídio”: “Eu vou ser sincero pra vocês, nós passamos o que passamos no PDM (…) até hoje nada do (…) claro que não temos que aceitar o que vem na hora. […] O PDM até hoje sem dinheiro!”
Teilton Valim, na sequência, parece não querer ficar atrás no quesito “vou me incriminar”: “Um projeto desse tamanho (…) hein, um projeto desse tamanho, ir para o plenário por 5.000? Por que não senta em cima dele e segura essa porra aí, que se foda! […] Não tem só Moreira, não…”
Saulinho, o presidente, volta à carga, dando a diretriz geral e se complicando muito mais: “Então todo mundo tem que ir atrás então.”
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Aí Wellington vem com a frase que resume tudo, todo o grau de “naturalização” atingido por algo que jamais poderia nem sequer ser tolerado: “Concordo. Sim… Isso sempre foi feito…”
Mais à frente, o presidente Saulinho, presidente da Câmara e da reunião em questão, dá ao grupo a diretriz: “Nós não ganhamos porra nenhuma! Deixa o pau quebrar”.
“Venda da democracia”: a resposta incisiva do MPES
Em sua resposta à provocação do juiz da 2ª Vara Criminal da Serra, a representante do MPES no processo deu algumas declarações lapidares:
“Como, então, entender necessário e suficiente para a reprovação e prevenção de um crime quando os denunciados […] se mostraram dispostos a auferir vantagem indevida quando aparece uma oportunidade?”, registrou a promotora.
“Realmente, a gravidade desse tipo de crime envolvendo crimes de comprar legislação é compreendida pela população em geral como severa, porque envolve a venda ou a barganha do que há de mais essencial para a representatividade popular, que é o voto das medidas legislativas. Trata-se de vender 1a razão de ser legislador’”, pontuou a autora da denúncia, em defesa do interesse público.
“A prática de um ato de corrupção por parte de membros do Poder Legislativo é mais do que uma simples venda de votos ou de serviços (compra de legislação). É a venda da representatividade, é a venda da confiança a eles depositada pelo povo, é a venda da democracia.”
O que mais é preciso dizer?
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