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A luta das famílias autistas contra os planos de saúde
Casos de famílias de pessoas com autismo expõem os limites da judicialização e evidenciam falhas na efetivação do direito à saúde no Brasil

No Brasil, famílias de pessoas com autismo travam batalhas judiciais contra planos de saúde para garantir o direito à saúde. Foto: Freepik
No Brasil, o direito à saúde é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, assegurado pelo artigo 196 da Constituição Federal, que estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. No entanto, para milhares de famílias que convivem com alguém portador de Transtorno do Espectro Autista (TEA), esse direito tem se transformado em um verdadeiro campo de batalha, em que a Justiça se tornou a única via possível para garantir o mínimo necessário: acesso às terapias essenciais para o desenvolvimento de seus filhos.
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O TEA é uma condição do neurodesenvolvimento marcada por alterações na comunicação social, no comportamento e, frequentemente, no processamento sensorial, o que faz com que pessoas autistas reajam de forma atípica aos estímulos do ambiente. Embora o autismo seja uma condição permanente e sem cura, estudos científicos demonstram de forma consistente que intervenções precoces, intensivas e baseadas em evidências podem promover avanços significativos no desenvolvimento, atenuando os impactos das características do transtorno e ampliando a autonomia e a qualidade de vida dos indivíduos.
Exatamente por tudo isso, crianças com diagnóstico de autismo necessitam, por orientação médica e consenso científico, de tratamentos intensivos e contínuos, realizados por equipes multidisciplinares. Terapias como fonoaudiologia, psicopedagogia, psicoterapia, terapia ocupacional, integração sensorial, musicoterapia, equoterapia e ABA (Análise do Comportamento Aplicada) são fundamentais para que essas crianças desenvolvam habilidades cognitivas, sociais, de linguagem e comportamento.
Ainda assim, o que se vê é a negativa sistemática dessas coberturas pelas operadoras de saúde, sob justificativas frágeis e frequentemente ilegais. São comuns as seguintes justificativas: o número de sessões está limitado a um teto anual previsto no contrato; determinadas abordagens terapêuticas não estão incluídas no Rol de Procedimentos da ANS; o tratamento prescrito não tem comprovação científica (mesmo quando respaldado por laudos médicos detalhados e por diretrizes clínicas amplamente reconhecidas). Ou seja, a negligência dos planos de saúde diante dessas demandas é tão frequente quanto cruel.
Ocorre que a Lei nº 9.656/98, que regula os planos de saúde, já foi interpretada diversas vezes pelo Judiciário no sentido de que tais negativas configuram violação ao direito do consumidor e ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Foi o que ocorreu, por exemplo, nos autos do recurso especial 2.043.003/SP. No caso julgado, o beneficiário, menor de idade, ajuizou ação contra a Amil pretendendo a cobertura do tratamento multidisciplinar prescrito, sem limite de sessões, bem como o reembolso integral das despesas.
O juízo de primeira instância atendeu o pedido quanto ao tratamento sem limite de sessões, mas excluiu a musicoterapia, que foi reincluída pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) no julgamento da apelação. No recurso ao STJ, a Amil alegou que os tratamentos não tinham cobertura contratual nem constavam da RN 465/2021 da ANS.
Porém, a ministra Nancy Andrighi entendeu que a musicoterapia fora incluída no Sistema Único de Saúde por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, sendo, portanto, reconhecida pelo Ministério do Trabalho. Logo, a musicoterapia passou a integrar o tratamento multidisciplinar do TEA, devendo ser obrigatoriamente coberta pelos planos de saúde quando prescrita por médico.
O caso teve um desfecho feliz, mas somente após essa longa batalha judicial. Um caminho que, embora legítimo, é doloroso, exaustivo e caro. Segundo levantamento do CNJ, o número de processos judiciais sobre saúde aumentou mais de 130% nos últimos anos, com grande parte deles relacionados a demandas de pessoas com TEA. O tempo que deveria ser dedicado ao cuidado e à evolução da criança passa a ser dividido com audiências, petições, perícias, liminares e embates processuais.
E há um custo humano nisso tudo. São mães que deixam o emprego para acompanhar sessões de terapia, pais que se desdobram para arcar com tratamentos que ultrapassam em muitas vezes o valor do salário mínimo brasileiro. São famílias endividadas, esgotadas emocionalmente, porque o sistema de saúde suplementar insiste em recusas desproporcionais.
Se os planos falham, a omissão do Estado também é eloquente. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), embora tenha ampliado a cobertura obrigatória para casos de TEA nos últimos anos, ainda se mostra tímida na fiscalização e morosa nas sanções. Operadoras reincidentes continuam negando cobertura com base em argumentos padronizados, pois sabem que o custo de uma demanda judicial ainda é inferior ao custo de prestar o serviço corretamente.
É inaceitável que o acesso a tratamentos para o autismo ainda dependa de uma sentença judicial. O Judiciário tem feito sua parte e, felizmente, em muitos casos, tem decidido em favor dos pacientes. Contudo, o que isso revela é um sistema disfuncional, em que o direito à saúde só se concretiza quando alguém é obrigado judicialmente a cumpri-lo.
Quando o Poder Judiciário compreende o autismo, ele deixa de ser apenas um julgador e passa a ser um verdadeiro garantidor de direitos. evolução desse tema é relevante, e cada vez mais se observam decisões fundamentadas na ciência, na empatia e na legalidade.
Neste cenário, embora louvável por um lado, por outro o Judiciário se tornou a única porta, mas que não deveria ser. A porta principal deveria ser a da dignidade, do respeito e da ética contratual. O tratamento de uma criança com TEA não é luxo, não é capricho. É direito. E um direito que, para ser negado, custa caro demais para as famílias e para a sociedade.
Este texto expressa a opinião do autor e não traduz, necessariamente, a opinião do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Espírito Santo.
*Teuller Pimenta é Advogado, Especialista em Direito e Processo Tributário, membro do Núcleo de Tributação Empresarial do IBEF-ES e do IBEF Academy.
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