Coluna Vitor Vogas
Pó preto: Findes perde ação no TJES e Vitória volta a ter Lei da Qualidade do Ar
Lei municipal que estabelece padrões rígidos de controle à poluição atmosférica foi sancionada em dezembro de 2023, mas estava suspensa liminarmente a pedido dos industriais

Montes de pó de minério. Foto: Divulgação
Em dezembro de 2023, a Câmara de Vitória aprovou e o prefeito Lorenzo Pazolini sancionou a Lei Municipal nº 10.011, que “estabelece política, normas e diretrizes de proteção da qualidade do ar atmosférico no âmbito do município de Vitória e dá outras providências”. A lei foi fruto de projeto apresentado pelo então vereador André Moreira (PSol). O texto fixa, para todo o território da cidade, “valores de metas intermediárias e padrões finais de qualidade do ar”, ou seja, parâmetros de poluição atmosférica considerados aceitáveis e metas a serem perseguidas pelo poder público.
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Como parte especialmente interessada no assunto, a Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes) entrou imediatamente com uma ação direta de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do Estado (TJES), impugnando a lei municipal e pedindo, liminarmente, a suspensão dos efeitos da norma. Por ironia, a federação era então presidida pela atual vice-prefeita de Vitória, Cris Samorini (PP).
Naquela oportunidade, em pleno recesso forense, o desembargador plantonista, Fernando Zardini, concedeu a liminar pleiteada pela entidade. A lei, então, ficou suspensa, durante toda a tramitação do processo no TJES, até o término do julgamento do mérito da ação da Findes no Pleno do tribunal.
Na última quinta-feira (15), esse dia finalmente chegou. O julgamento foi finalizado, e a Findes perdeu a causa. Por unanimidade, os desembargadores do TJES reconheceram a constitucionalidade da Lei 10.011/2023, que agora volta a vigorar oficialmente na capital do Espírito Santo.
Apresentado em 29 de maio deste ano, o voto do relator da ação, desembargador Fábio Brasil Nery, foi no sentido de prover só parcialmente o pedido da Findes. Na realidade, ele só considerou inconstitucional um pequeníssimo trecho da caudalosa lei: um pedaço do § 3º do artigo 3º. A expressão suprimida está em negrito:
§ 3º O Órgão Gestor Competente deverá, após decorrido prazo de um ano, contados a partir da data de publicação desta Lei, apresentar ao Conselho de Defesa do Meio Ambiente de Vitória (COMDEMA) uma proposta de resolução que estabelecerá limites de emissão de poluentes atmosféricos para fontes fixas presentes no município, tendo por base estudo prévio da capacidade da atmosfera da região receber os remanescentes das fontes emissoras de forma a serem alcançados os padrões ambientais e os diversos usos dos recursos naturais.
Para o relator, essa parte era inconstitucional porque o legislador não pode impor obrigação administrativa ao Poder Executivo, tampouco fixar prazo para o cumprimento de uma nova obrigação.
Afora esse pormenor, o relator manteve na íntegra a redação da lei tal como aprovada e sancionada, considerando-a em conformidade com o texto constitucional.
Após sucessivos pedidos de vista (Fernando Zardini, o decano Pedro Valls Feu Rosa, o ex-presidente do TJES Fabio Clem), a ação voltou a ser pautada para julgamento no Pleno na sessão da última quinta-feira (15). Todos os desembargadores, inclusive os que haviam pedido vista, acompanharam integralmente o voto de Fábio Brasil Nery, tornando inconstitucional tão somente aquele trecho, pelo motivo já exposto.
O voto condutor, seguido por todos, também revoga a liminar concedida, em pleno recesso forense, por Fernando Zardini. Este argumentou que concedera a liminar, durante plantão judiciário, em análise superficial própria desse tipo de situação, mas que, no exame de mérito, foi convencido pelos argumentos do relator.
“O voto de Sua Excelência, além de tratar de forma aprofundada e exauriente o tema Constitucional, traz a lume questões locais de altíssima relevância, em especial os problemas decorrentes da emissão de material particulado no ar ambiental, ou seja, o já conhecido ‘pó preto’”, afirmou Zardini.
Assim, a Lei da Qualidade do Ar volta a vigorar em Vitória, com aquele único trecho suprimido.
O QUE DIZ A LEI
A Lei nº 10.011/2023 estabelece política, normas e diretrizes de proteção da qualidade do ar atmosférico, no âmbito de Vitória, mais rigorosas que aquelas estabelecidas nos níveis federal e estadual.
Em seu artigo 1º, a lei estabelece “as diretrizes, os parâmetros de aferição, as ações prioritárias, os padrões de qualidade do ar, índices de qualidade do ar e os níveis de atenção, alerta e emergência para poluentes e suas concentrações para o Município de Vitória e cria a Rede Municipal de Monitoramento da Qualidade do Ar”.
Por sua vez, o artigo 2º traz definições acerca da qualidade do ar, padrão, parâmetros de qualidade do ar, lavagem de vias, varrição mecanizada, poluentes atmosféricos (primários e secundários), emissão de poluentes atmosféricos, padrão de qualidade do ar, monitoramento de qualidade do ar, plano de controle de emissões atmosféricas, índice de qualidade do ar, entre outros.
No respectivo § 1º, consta disposição no sentido de que os “valores de concentração, quando superiores aos padrões estabelecidos, serão investigados com objetivo de se identificar as fontes emissoras responsáveis”.
Por sua vez, o § 2º indica que “os empreendimentos responsáveis pelas fontes emissoras causadoras do não atendimento do padrão serão penalizados em acordo com a legislação vigente”.
Na sequência, o artigo 12 define valores de metas intermediárias e padrões finais de qualidade do ar, para o Município de Vitória.
O QUE ALEGAVA A FINDES
Na ADI patrocinada pela Findes, a entidade representante das indústrias alegava que, em alguns pontos do ato normativo municipal, foram fixados parâmetros mais restritivos que aqueles constantes em decreto e resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Do ponto de vista jurídico, o principal argumento da entidade era que a lei municipal impugnada extrapolava a competência legislativa do município, invadindo a esfera de disposição da União e do Estado.
CARACTERÍSTICAS ÚNICAS: O VOTO DO RELATOR
Em seu voto condutor, o desembargador Fábio Brasil Nery desmontou a tese de invasão de competências, demonstrando que municípios podem legislar sobre o tema da proteção ao meio ambiente de maneira suplementar à legislação dos estados e da União.
Quanto à alegação de que os padrões fixados na lei municipal são mais exigentes e restritivos do que os nacionais, o relator pôs o dedo na ferida, enfatizando a gravidade da poluição atmosférica, de forma muito específica, justamente no caso de Vitória – sem paralelo no Brasil inteiro por se tratar de uma ilha, com pequena área geográfica, elevada densidade demográfica, um porto, um aeroporto e um complexo industrial com empresas emissoras do famigerado “pó preto”.
Segundo ele, o próprio STF já garantiu aos municípios o direito de editar normas próprias mais protetivas em função de peculiaridades do contexto local e “na preponderância de seu interesse”. Em outras palavras, a realidade de uma cidade onde a poluição atmosférica é mais drástica pede, consequentemente, medidas mais drásticas que a combatam.
Seguem trechos do voto:
Com efeito, a Constituição da República conferiu competência concorrente à União, aos Estados e ao Distrito Federal para legislar sobre proteção ao meio ambiente e o combate à poluição em qualquer das suas formas (art. 24, inciso VI), competindo à primeira estabelecer normas gerais e aos últimos complementar ou suprir a legislação federal, atendendo aos seus comandos gerais (§§ 1º ao 3º, do art. 24).
Os Municípios, por sua vez, têm legitimidade para legislar supletivamente (competência suplementar) àqueles entes sobre o meio ambiente, no que couber, e para atender aos assuntos de interesse local, consoante estabelecem os incisos I e II do art. 30 da Carta Magna, reproduzidos nos incisos I e II do art. 28 da Constituição do Estado do Espírito Santo.
Não se pode perder de vista que o art. 23 da Carta Constitucional dispõe ser de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde (inciso II), bem como proteger o meio ambiente e combater a poluição (inciso VI).
Por seu turno, a Constituição deste Estado prevê no art. 186, em simetria ao art. 225 da CRFB, que o Estado e os Municípios possuem o especial dever de promover a todos um meio ambiente ecologicamente saudável e equilibrado, zelando por sua preservação, conservação e recuperação, em benefício das gerações atuais e futuras.
Assim, embora nem toda a matéria disposta no art. 24 da Carta Política – o qual trata da competência concorrente entre a União, Estados e Distrito Federal – seja passível de ingerência municipal, em se tratando de defesa do meio ambiente, dentre outros, é viável a suplementação municipal das legislações federal e estadual, desde que pertinente a assuntos que sejam também de interesse local.
Seguindo essa ordem de ideias, o art. 6º, §§ 1º e 2º, da Lei Federal nº 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) estabelece que os Municípios poderão elaborar normas relacionadas com o meio ambiente, observadas as normas e os padrões federais e estaduais.
Na específica situação do Município de Vitória, a Câmara Municipal apontou nas informações prestadas que esta “é uma capital ‘sui generis’ com necessidades peculiares e locais como nenhuma outra cidade da federação, haja vista que, além de ser uma ilha e capital de um estado (só existem três em todo país), nela está contido um porto, um aeroporto e um complexo industrial de grande magnitude inserido bem no coração da cidade entre bairros populosos e uma praia de grande circulação popular e turística”, tendo acrescentado, ainda, recentes matérias jornalísticas sobre o aumento do “pó preto” na cidade.
Nesse cenário, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF n° 567, admitiu “em matéria de proteção da saúde e do meio ambiente, que os Estados e Municípios editem normas mais protetivas, com fundamento em suas peculiaridades regionais e na preponderância de seu interesse”
Desse modo, vê-se que o Município de Vitória, ao editar a norma impugnada, de forma alguma invadiu a competência da União ou do Estado para legislar sobre proteção ambiental, notadamente acerca dos parâmetros e padrões de qualidade do ar, mas apenas exerceu sua competência para legislar sobre a preservação do meio ambiente local, de forma mais rigorosa, em razão dos prejuízos suportados com a poluição advinda do complexo industrial aqui instalado, responsável pela emissão do chamado “pó preto”, o qual, há décadas, tem causado relevantes danos aos munícipes, devendo ser considerada, ainda, sua peculiar geografia e dimensão, predominantemente insular.
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Conforme apontado alhures, a cidade de Vitória possui peculiaridades que justificam as medidas mais rigorosas propostas na legislação analisada, sendo constante a reclamação da população com os problemas advindos da alta taxa de emissão do multicitado “pó preto”.
Mister evidenciar que no mês de setembro do ano de 2024 foi noticiado em veículo local de grande circulação que o Ministério Público de Contas (MPC-ES) encaminhou ao Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE-ES) proposta de intensa fiscalização sobre o “pó preto”, em razão de indícios de que empresas poluidoras não estariam cumprindo compromissos ambientais anteriormente firmados, havendo evidência de que “a emissão de poeira sedimentável, conhecida popularmente como ‘pó preto’, aumentou na Grande Vitória, superando os níveis registrados antes da assinatura dos acordos ambientais pelas empresas responsáveis”.
PEDRO VALLS E ZARDINI
Em seu voto preliminar, Pedro Valls Feu Rosa afirmou que algumas das indústrias localizadas na capital “são as reais causadoras da baixa qualidade do ar da cidade”.
Já Fernando Zardini destacou que “é fato que a Grande Vitória sofre há décadas com a poluição decorrente, em grande medida, da atividade industrial aqui instalada”. “E, como muito bem abordado no voto condutor, a situação tem se agravado com o tempo, demandando uma regulamentação que atenda de forma mais individualizada o Município de Vitória, sobretudo em função das características únicas de nossa Capital”.
