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Coluna Vitor Vogas

Supersalários: o efeito cascata, de cima para baixo, no Judiciário, no MP e nos tribunais de contas

A concessão da tal “licença compensatória”, em tribunais e outros órgãos país afora e no ES, é um caso exemplar de como, nos andares superiores do poder público, um privilégio pode se espalhar a partir da ideia de que, “se o vizinho tem direito a determinada regalia, eu também preciso tê-la”

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As sedes do TCES, do TJES e do MPES

As sedes do TCES, do TJES e do MPES

Imagine que, no seu emprego, você acumule funções e tenha demandas em excesso para dar conta. Exatamente por esse acúmulo de tarefas, a cada três dias de serviço, você ganha um dia de folga, num total de até dez por mês. Melhor ainda: se assim preferir, você pode “vender” esses dias de descanso remunerado para sua empresa. Em vez de desfrutá-los, você receberá uma indenização por cada um desses dias, proporcional ao seu salário. No fim do mês, em seu contracheque, você receberá um “adicional” de 1/3 sobre o seu salário, correspondente às dez folgas adquiridas, mas vendidas à empresa. Algo como um “terço de folgas”, todo mês.

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Parece bom, não parece? Mas, certamente, é um privilégio inalcançável para você… A menos que você seja membro vitalício de determinadas instituições do poder público federal ou estadual.

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No Brasil, essa regalia existe, há alguns anos, no âmbito do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos tribunais de contas, cujos membros têm vencimentos, benefícios e vantagens equiparados pela Constituição Federal. Em tribunais e órgãos ministeriais de todo o país, a chamada “licença compensatória” é concedida a juízes, desembargadores, promotores e procuradores de Justiça, conselheiros e procuradores de contas.

No Espírito Santo, a vantagem já é paga, desde 2023, a membros do Ministério Público Estadual (MPES) e, desde 2024, aos membros do 1º e do 2º grau da Justiça Estadual – juízes e desembargadores, respectivamente.

Como o penduricalho tem caráter indenizatório, ele não incide no Imposto de Renda e não está sujeito ao teto constitucional, que é vinculado ao subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), no valor de R$ 46,3 mil a partir de fevereiro deste ano.

Na última terça-feira (28), os sete conselheiros do Tribunal de Contas do Estado (TCES) aprovaram, em reunião do Conselho Superior de Administração do órgão, a concessão do mesmo bônus para eles mesmos e para os procuradores de contas que atuam junto ao tribunal. A resolução que regulamenta o benefício foi publicada no dia seguinte no Diário Oficial.

Assim, a cada três dias de serviço acumulando cargos, funções ou acervo processual, o conselheiro ou procurador de contas poderá ter o salário do mês turbinado proporcionalmente.

Um conselheiro de contas titular já recebe o salário bruto de R$ 39.717,69, assim como um membro do Ministério Público de Contas. Já um conselheiro substituto recebe R$ 37.731,81. Os salários correspondem aos dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado (TJES) e aos dos procuradores de Justiça, já que, constitucionalmente, as carreiras são equiparadas, ou seja, membros dos tribunais de contas fazem jus aos mesmos vencimentos e benefícios dos membros da magistratura e do Ministério Público.

É exatamente essa equiparação que está no centro da questão aqui.

O penduricalho agora criado pelo TCES já existe, em termos similares, na Justiça Estadual e no Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES). E a remuneração de alguns promotores e procuradores de Justiça, juízes e desembargadores, já ultrapassa o teto constitucional com a ajuda da licença compensatória “convertida em pecúnia”.

No preâmbulo da resolução do TCES, assinada pelos sete conselheiros, eles destacam “a equiparação constitucional existente entre os membros da magistratura nacional e os membros dos tribunais de contas do Brasil, bem como com os membros do ministério público brasileiro”.

A cronologia da regalia. Ou como furar o teto constitucional, em dez etapas

A bem da verdade, a concessão dessa “verba fura-teto” país afora para membros do Judiciário e do Ministério Público é um efeito cascata que começou no andar de cima, em Brasília, e se espalhou de cima para baixo.

Trata-se de um caso exemplar de como, neste país, nos andares superiores do poder público, um privilégio pode se alastrar a partir da ideia de que, “se o vizinho tem direito a determinada regalia, eu também preciso tê-la”.

Abaixo, incluindo lei por lei, portaria por portaria, resolução por resolução, recapitulamos como a “licença compensatória” ganhou caráter indenizatório e se difundiu, nos últimos anos, pela magistratura e pelo Ministério Público, chegando com força no Espírito Santo.

1. Por meio da Recomendação nº 75, de 10 de setembro de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) autorizou os tribunais do país a regulamentar o direito à compensação por acúmulo de acervo processual. Assim, o bônus pelo exercício cumulativo foi autorizado pelo Judiciário em 2020, mas ainda tinha caráter expressamente remuneratório, ou seja, era considerado uma parte integrante do salário, sujeita, portanto, à regra do teto.

O artigo 3º dizia: “A compensação terá natureza remuneratória, não podendo o seu acréscimo ao subsídio mensal do magistrado implicar valor superior ao subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal”.

2. Com a Resolução 256, de 27 de janeiro de 2023, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) disciplinou o bônus por cumulação de acervo processual, procedimental ou administrativo no âmbito do Ministério Público da União (MPU).

Reza o artigo 9º da resolução, assinada pelo então procurador-geral da República e presidente do CNMP, Augusto Aras:

“Observada a disponibilidade financeira e orçamentária, os ramos do Ministério Público da União, por ato do respectivo Procurador-Geral, poderão indenizar os dias de licença compensatória adquiridos com base na aplicação desta Resolução”.

Ao adotar a licença compensatória em forma de indenização, o MP desconsiderou a obrigação de o pagamento ser parte do salário e ficar dentro do limite remuneratório estabelecido pela Constituição. Foi isso que desencadeou o efeito cascata de aumento nos contracheques das duas categorias país afora.

3. A concessão para os membros do MP foi regulamentada pelo Ato Conjunto nº 1 da Procuradoria Geral da República (PGR) com o Conselho de Assessoramento Superior do Ministério Público da União (CASMPU), de 17 de maio de 2023.

4. O Judiciário, então, reagiu. Entendendo que a magistratura havia ficado “em desvantagem” em relação ao Ministério Público, o CNJ aprovou a Resolução 528/23, abrindo caminho para que o Judiciário de todo o país também adotasse a licença compensatória conversível em verba indenizatória. A resolução afirma que “os direitos e deveres validamente atribuídos aos membros da Magistratura ou do Ministério Público aplicam-se aos integrantes de ambas as carreiras”.

Além da equiparação constitucional entre a magistratura e o Ministério Público, o CNJ alegou “a necessidade de manter o mesmo grau de atratividade para ambas as carreiras”.

5. Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou a Resolução STJ/GP 35, de 8 de novembro de 2023, equivalente à Resolução 256/2023 do CNMP. Com isso, o Judiciário também transformou o benefício em verba indenizatória. A bonificação passou a ser paga aos magistrados livre de descontos, ou como dia de descanso.

6. Com vencimentos e vantagens equiparados aos do Judiciário e do MP, o Tribunal de Contas da União (TCU) também quis entrar na brincadeira. Em 29 de novembro de 2023, o Diário Oficial publicou a Resolução 361, assinada pelo então presidente do TCU, Bruno Dantas, e equivalente à Resolução STJ 35/2023.

Percebem o efeito dominó?

7. Então o efeito começou a se espalhar pelos estados. No Espírito Santo, a Assembleia Legislativa aprovou e o governador Renato Casagrande sancionou a Lei Complementar Estadual 1.047, de 27 de junho de 2023, que garantiu a aplicação, no MPES, da licença compensatória por acúmulo de acervo processual, procedimental e administrativo.

O projeto de lei complementar foi apresentado um dia antes pela então procuradora-geral de Justiça, Luciana Andrade, e aprovado pelos deputados estaduais em regime de urgência, requerido pelo presidente da Assembleia, Marcelo Santos (União).

O artigo 5º dessa lei é um clássico “jabuti”, enfiado no meio de um projeto enorme que dispõe sobre uma série de outras alterações relacionadas aos mais variados aspectos estruturais e administrativos do MPES. Diz o seguinte: “Ao plantão e ao acúmulo de acervo processual, procedimental e administrativo, aplica-se, no que couber, os arts. 93, inciso IX, e 104-A da Lei Complementar nº 95, de 28 de janeiro de 1997”.

A Lei Complementar nº 95/1997 é a Lei Orgânica do Ministério Público Estadual. Seu artigo 104-A foi incluído pela Lei Complementar nº 916/2019, também de autoria do então chefe do MPES, o hoje desembargador Eder Pontes, a qual determina o seguinte:

“O desempenho cumulativo de cargos ou de funções, qualquer que seja o número de acumulações, conferirá direito a 1 (um) dia de licença compensatória a cada tríduo [três dias consecutivos], dividido em partes iguais entre os membros designados.

Parágrafo único. A licença compensatória, devidamente regulamentada por ato do Procurador-Geral de Justiça, poderá ser convertida em pecúnia indenizatória, a critério da administração”.

8. Por meio da Portaria PGJ nº 813, de 2 de outubro de 2023, a cúpula do MPES regulamentou a concessão da licença compensatória para promotores e procuradores de Justiça.

9. Em seguida, foi a vez da Justiça Estadual. Por meio da Resolução nº 083/2024, o TJES regulamentou a concessão do mesmo benefício aos juízes de 1º grau e aos desembargadores.

Nos termos da resolução, a licença compensatória é tratada como um “mecanismo para aumentar a produtividade dos magistrados”, “com escopo no princípio da eficiência”. A resolução é extremamente detalhada, especificando dezenas de hipóteses em que um juiz ou desembargador fará jus ao benefício, com o número de dias correspondentes em cada caso.

10. Agora, o TCES baixa sua própria resolução, equiparando-se a MPES e TJES.