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Coluna Vitor Vogas

O polêmico projeto de Vidigal para regularização de imóveis na Serra

Oposicionistas alegam que falta ao projeto transparência e maior detalhamento quanto aos potenciais beneficiários

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Sergio Vidigal é prefeito da Serra. Foto: Reprodução Facebook

Após longo impasse e a menos de três meses da campanha eleitoral, a Câmara da Serra aprovou na última segunda-feira (28) projeto de lei do prefeito Sérgio Vidigal (PDT) que permite a um número indeterminado de particulares regularizar a situação dos seus imóveis junto à Prefeitura da Serra. Os potenciais beneficiários, não especificados no projeto, receberam da Prefeitura, antes de 2002, imóveis pertencentes ao município, usados e explorados por eles desde então, mas em situação tecnicamente irregular desde o começo da vigência do atual Código Civil Brasileiro.

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Conforme a ementa, o projeto de lei municipal “institui a política pública de regularização de imóveis urbanos de propriedade do município da Serra dados em aforamento, em enfiteuse ou em emprazamento e dá outras providências”. Vidigal mandou o projeto para a Câmara no dia 7 de março e já o fez pedindo pressa: “Aguardo sua provação em regime de urgência”, anotou o prefeito, na justificativa.

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No entanto, o presidente da Câmara, Saulinho da Academia (PDT), aliado e correligionário de Vidigal, precisou de um tempo bem maior para pautar o projeto, por falta de acordo político e pela relação delicada vivida atualmente pela Prefeitura com a Câmara. No momento, dos 23 vereadores, apenas 15 podem ser considerados seguramente da base do prefeito. Os demais ou são aliados do ex-prefeito Audifax Barcelos (PP), ou do deputado estadual Pablo Muribeca (Republicanos) – ambos pré-candidatos a prefeito da Serra –, além do vereador Igor Elson (PL) – ele mesmo, também pré-candidato.

Para ser aprovado, o projeto em questão (PL 69/2024) precisava de quórum qualificado, isto é, do voto favorável de dois terços do plenário – pelo menos 16 dos 23 parlamentares. No último dia 15, por falta de um voto, o Executivo sofreu retumbante derrota na Câmara na votação de outro projeto de Vidigal que precisava do mesmo quórum. Dessa vez, os articuladores políticos do prefeito foram mais cautelosos.

Há pelo menos duas semanas, a Mesa Diretora vinha querendo e tentando pautar o projeto da reforma fundiária em regime de urgência, mas não havia a certeza dos 16 votos. Na última quarta-feira (22), em nova tentativa frustrada, o secretário-chefe do gabinete do prefeito, Alessandro Comper (PDT), chegou a ir pessoalmente à Câmara para negociar com os vereadores, inclusive com os da oposição. Os últimos dias foram de intensas negociações, o que permitiu ao presidente da Casa enfim pautar o controverso projeto na última segunda-feira, em regime de urgência proposto pela Mesa Diretora.

Por 19 votos a 3, o projeto foi aprovado em plenário, contra os votos dos oposicionistas Anderson Muniz (Agir), Professor Alex Bulhões (PP) e Raphaela Moraes (PP) – os três, aliados de Audifax. Igor Elson, presente à sessão, saiu do plenário antes da votação.

Vereadores de oposição criticam o projeto. Alegam falta de detalhamento e de transparência quanto aos ocupantes desses imóveis, hoje em situação irregular, que serão beneficiados.

Disputa eleitoral à parte, eles têm um argumento relevante. De fato, o projeto aprovado, que agora segue para a sanção de Vidigal, contém alguns pontos opacos e poderia ser melhor detalhado. É o que passo a explicar a seguir.

O projeto é bastante complexo e repleto de termos técnicos que chegam a assustar um leigo. Buscarei ser o mais didático possível, para o leitor compreender o que realmente está em jogo, começando pela definição dos conceitos de “enfiteuse”, “aforamento” ou “emprazamento”.

Regularização fundiária: do que trata o projeto

A enfiteuse é como se fosse a alocação de um imóvel público para um particular por prazo indeterminado. Também denominada aforamento ou emprazamento, é o negócio jurídico pelo qual o proprietário (senhorio) transfere ao adquirente (enfiteuta), em caráter perpétuo, a posse direta, o uso, o gozo e o direito de disposição sobre bem imóvel, mediante o pagamento de uma renda anual (foro).

Criada pelo Código Civil de 1916, a enfiteuse foi muito usada por prefeituras municipais ao longo do século XX para fomentarem a urbanização. Por meio de um contrato de enfiteuse, o particular recebia do município o título de determinado imóvel público e o direito de ocupar e explorar esse imóvel. Para isso, ficava obrigado a pagar anualmente à Prefeitura (o senhorio) um valor, denominado foro, e, em caso de transferência do imóvel a terceiros, teria de pagar à Prefeitura uma taxa sobre a transação (o laudêmio).

A modalidade de que estamos tratando aqui é a “enfiteuse civil”, constituída sobre bens particulares e públicos (exceto os da União) e regulada pelo Código Civil de 1916.

Ocorre que tudo mudou, radicalmente, a partir de 2002, com o início da vigência do novo Código Civil, que proibiu esse tipo de negócio jurídico. Desde então, não é mais possível constituir enfiteuse civil no Brasil, seja por ato entre pessoas vivas, seja por testamento, tampouco registrar os contratos ou testamentos constitutivos de enfiteuse anteriores ao atual Código Civil.

Para que o leitor ou leitora entenda melhor a situação, pensemos num caso hipotético. Suponhamos que você, morando na Serra desde décadas passadas, tenha recebido da Prefeitura Municipal, nos idos dos anos 1980, o título de um terreno público localizado no bairro Laranjeiras, por meio de contrato de enfiteuse.

Desse ponto em diante, você se tornou o “enfiteuta”, passando a gozar do direito de ocupar e explorar esse imóvel pertencente ao município, mediante o pagamento anual de determinado valor à Prefeitura. Pagando ano após ano esse valor pelo uso do terreno, você construiu ali um hospital particular. Até que chegamos a 2002, e a enfiteuse ficou proibida. Você e o terreno ocupado caíram, então, em um limbo jurídico.

Basicamente, os enfiteutas não puderam mais acessar o Cartório de Registro de Imóveis. “Você tem o imóvel, mas não tem o título de propriedade do imóvel”, resume um especialista em Direito Urbanístico e Fundiário, preferindo o anonimato. “De 2002 em diante, todo mundo no Brasil inteiro caiu nesse limbo. Você não consegue resolver a situação dessa propriedade. Não consegue remir, ir lá e pagar, nem transferir esse título de propriedade de jeito nenhum”, explica o mesmo advogado.

Com a sanção do novo Código Civil, a situação desses imóveis objetos de contratos de enfiteuse anteriores a 2002 se tornou indeterminada. A nova legislação proibiu novos contratos de enfiteuse, mas os beneficiários de contratos anteriores também não conseguem mais registrar o título do imóvel no cartório. “A pessoa tinha o título, mas o título não pode mais ser remido nem registrado no Cartório de Registro de Imóveis. A pessoa fica com aquele ‘crédito’, como se fosse uma moeda velha”, explica o especialista ouvido pela coluna.

Uma das formas de resolver o impasse é precisamente por meio de leis como essa que a Prefeitura da Serra está fazendo agora: uma Lei de Regularização Fundiária Urbana (Reurb). Iniciativas similares têm sido tomadas por municípios de todo o Brasil. No Espírito Santo, alguns exemplos são Guarapari e Linhares. A lei municipal regulamenta uma possibilidade já facultada pela legislação federal.

A Reurb tem duas modalidades. A primeira é a regularização fundiária de interesse específico, quando o próprio particular promove essa regularização. A segunda, que é o caso em questão, é a Reurb de interesse social. Nesse caso, cada município define o que é “interesse social”.

A justificativa do projeto da Prefeitura da Serra deixa claro que o objetivo é criar uma política que proporcione aos antigos enfiteutas (adquirentes de terrenos dos municípios) uma oportunidade para eles regularizarem sua situação junto à Prefeitura, adquirindo o título em definitivo e tornando-se o proprietário definitivo do terreno. Para tanto, os interessados terão de procurar a prefeitura e cumprir uma série de exigências, entre elas a quitação de eventuais débitos relativos ao imóvel.

Ressalvas

Por mais meritória que seja a iniciativa, de fato cabem algumas ressalvas e ponderações. A primeira delas é que a redação do projeto é, efetivamente, muito vaga e genérica.

Pouco detalhado, o projeto não especifica quais terrenos poderão ser contemplados pela nova lei de regularização fundiária nem quem são os potenciais beneficiários. O texto nem mesmo estabelece o limite mínimo das áreas que poderão ser regularizadas, ou o tamanho dos imóveis ou das localidades a serem regularizadas.

O projeto tampouco define qual é o “interesse social”, para a coletividade, esperado com essa regularização. Claro está que um determinado número de particulares, se atenderem às condições exigidas, poderão regularizar a situação do imóvel ocupado e utilizado, tornando-se o proprietário definitivo. Não está tão claro qual o interesse público a ser gerado.

“Um projeto de regularização fundiária urbana serve para o município pegar uma área que foi ocupada irregularmente e fazer a ocupação correta, construir ali um bem público, tirar pessoas de áreas de risco. A Reurb é muito mais que te dar o título jurídico do imóvel e dizer que agora você é o proprietário, mas serve para o ente público resolver um problema urbano, para levar a determinadas comunidades equipamentos públicos, esgotamento, água, iluminação, mobilidade. Uma Reurb certa implica fazer um mapeamento antes, identificando as áreas que se quer regularizar, delimitando onde tem equipamentos públicos…”, opina o especialista consultado, sempre sob anonimato.

Para o mesmo especialista, outro problema do projeto é que deixa toda a responsabilidade a cargo do particular interessado em regularizar sua situação junto à Prefeitura. Por outro lado, a não especificação de potenciais beneficiários, sem direcionar o projeto para um ou para outro, pode ser também encarada como um aspecto positivo: “O projeto não estabelece local, mas se torna viável para todos que tenham interesse em resolver a questão. A Prefeitura está dizendo ‘quem tem esse título de enfiteuse, venha até mim…’.”

Até 2002, como explicado acima, os enfiteutas tinham de pagar uma taxa anual à Prefeitura. De lá para cá, a Prefeitura seguiu tendo o direito de cobrar esse pagamento, pois a relação jurídica entre o município e o beneficiário foi mantida. Agora, para obter a regularização, o ocupante do imóvel terá de quitar eventuais débitos relativos ao imóvel junto à Fazenda Pública Municipal para remir o foro (em valor a ser calculado pela Prefeitura).

Tudo quitado e aprovado, ele receberá a Certidão de Regularização Fundiária (CRF). A partir daí, passará a ser o real proprietário, em definitivo, não precisando pagar um centavo a mais ao município – a não ser o IPTU anual, como todo mundo, e o ITBI em caso de venda do imóvel.

O que diz textualmente o projeto

O projeto institui a Política Pública de Regularização de imóveis urbanos de propriedade do município da Serra dados em aforamento, em enfiteuse ou em emprazamento, assim compreendidos: “aqueles cujo domínio útil o município atribuiu a outrem, estabelecendo à pessoa beneficiada o dever de pagamento ao senhorio direto, ou foro, anual, certo e invariável”.

O projeto diz que “a regularização prevista nesta lei é de interesse público e social” e poderá ser concedida nas seguintes hipóteses:

I – imóveis cuja enfiteuse foi conferida ao enfiteuta mediante título, mas que não foi registrada no Cartório de Registro de Imóveis;

II – imóveis dados em enfiteuse de forma regular, mas alienados a terceiros de boa-fé sem a devida anuência da Administração Municipal;

III – imóveis dados em enfiteuse de forma regular, mas transferidos aos herdeiros de enfiteuta falecido, mediante sucessão hereditária;

IV – imóveis cujos encargos da enfiteuse, ou quaisquer outros encargos estipulados no termo que a conferiu, não foram adimplidos pelo enfiteuta.

O projeto foi aprovado com emenda de autoria do vereador Wellington Alemão (Rede), assinada por outros dez vereadores, que acrescentou uma quinta hipótese:

V – imóveis em uso com área superior a 5.000m² (cinco mil metros quadrados) que tenham benfeitorias, memorial descritivo e planta há mais de 5 (cinco) anos;

Também foi aprovado com uma segunda emenda, dos cinco membros da Mesa Diretora, que prevê, ainda, uma sexta hipótese:

VI – áreas remanescentes de enfiteuse, que tenham benfeitorias, desde que tenham mais de 5 (cinco) anos.

Após sancionada, a lei será regulamentada por decreto a ser editado pelo prefeito, detalhando o trâmite do procedimento administrativo de regularização fundiária.

Os enfiteutas inadimplentes só poderão regularizar seus imóveis mediante cumprimento dos encargos que, se financeiros, deverão estar devidamente atualizados e corrigidos monetariamente no momento do pagamento.

Os interessados na regularização deverão apresentar requerimento no protocolo geral da Prefeitura direcionado ao Departamento de Patrimônio dentro do período estipulado no edital de convocação.

A decisão final acerca da regularização é de competência do Departamento de Patrimônio. Anunciada a decisão pela autoridade competente, o requerente deverá pagar os débitos relativos ao imóvel, especialmente os relativos ao foro, em até 30 dias após a notificação, sob pena de perda do direito à regularização, de forma imediata ou parcelada.

A Certidão de Regularização Fundiária só poderá ser emitida após a quitação total das verbas e a respectiva remição do foro. Após a emissão da certidão, o enfiteuta terá prazo de 60 dias para efetuar o registro no Cartório de Registros de Imóveis e cientificar o município.

A justificativa oficial

Na justificativa oficial, após resgatar as mudanças instituídas pelo Código Civil de 2002, o prefeito Sergio Vidigal registra que, na Serra, “há dezenas de imóveis sobre os quais foi instituída a enfiteuse, e esses imóveis precisam ser regularizados”.

“Como todo direito real, é necessário que se viabilize o registro imobiliário de tais bens para que o ato seja perfectibilizado. Para isso, o município precisa tratar uma série de situações que não foram contempladas em decretos anteriores ao Código Civil de 2022”, argumenta Vidigal.

Ele conclui explicitando que a lei se faz necessária por uma questão de segurança jurídica:

“Em razão disso, a fim de se garantir a regularização de patrimônio público municipal, bem como viabilizar a consolidação da transmissão de bens já realizadas sob o agasalho do Código Civil anterior, conferindo segurança às relações jurídicas derivadas de tais atos, é que a edição de uma nova lei municipal se demonstra necessária. O objetivo da presente lei é, pois, regularizar os imóveis urbanos de propriedade do município da Serra dados em aforamento, em enfiteuse ou em emprazamento, por ocasião da vigência do Código Civil de 2002”.


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