Coluna Vitor Vogas
Professor que abordar “gênero” sem permissão dos pais poderá ser punido no ES
Espírito Santo agora tem uma lei estadual que ameaça com punição qualquer educador, do ensino público ou privado, que tratar de questões relacionadas a “gênero” em sala de aula sem a autorização expressa, por escrito, dos pais ou responsáveis pelo aluno

Sala de aula. Foto: Arquivo/Tânia Rêgo/Agência Brasil
Você não leu errado. Por incrível que pareça, o Estado do Espírito Santo agora tem, em seu ordenamento jurídico, uma lei que ameaça com punição qualquer professor ou professora, do ensino público ou privado, que tratar de questões relacionadas a “gênero” em sala de aula sem a autorização expressa, por escrito, dos pais ou responsáveis pelo aluno.
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É o que estabelece a Lei Estadual 12.479/2025, promulgada pelo presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales), Marcelo Santos (União), e publicada na última segunda-feira (21) no Diário Oficial do Estado, após receber sanção tácita do governador Renato Casagrande (PSB). A partir de agora, oficialmente, o educador que realizar “atividades pedagógicas de gênero” dentro do território capixaba, sem consentimento prévio dos pais da criança, estará sujeito a penalidades (ainda a serem definidas pelo próprio Governo do Estado).
Nos termos da nova lei, promulgada sob silêncio conivente do governador, “atividades pedagógicas de gênero” são “aquelas que abordam temas relacionados à identidade de gênero, à orientação sexual, à diversidade sexual, à igualdade de gênero e a outros assuntos similares”.
Partindo dessa ampla definição, um docente poderá ficar impedido de abordar em sala de aula, por exemplo, questões como homofobia (orientação sexual), transfobia (identidade de gênero), o preconceito contra a comunidade LGBT e outras minorias (diversidade), o machismo estrutural da sociedade brasileira, as diversas formas de violência contra a mulher, a baixa representatividade de mulheres em posições de poder e até a desigualdade salarial entre homens e mulheres no mercado de trabalho (igualdade de gênero), a menos que tenha a permissão dos pais de seus alunos para falar de tais assuntos. Se o fizer sem permissão, violará a nova lei e correrá o risco de sofrer penalidades.
A “lei antigênero” tem origem em um projeto de autoria do deputado Alcântaro Filho (Republicanos), um dos mais fervorosos membros da bancada evangélica da Ales na atual legislatura. A proposição foi apresentada em junho de 2023. Antes de ser pautada para votação em plenário, recebeu parecer contrário da subcoordenadora da Setorial Legislativa, do subprocurador-geral legislativo, Vinicius Oliveira Gomes Lima, e do procurador-geral da Assembleia, Anderson Pedra.
Em outras palavras, todos os membros do corpo jurídico da Casa de Leis consultados, incluindo o chefe da Procuradoria, apontaram inconstitucionalidades formais no projeto e recomendaram seu arquivamento à Comissão de Constituição e Justiça – principalmente, por invasão de competência privativa da União para legislar sobre o tema.
Mesmo assim, no dia 24 de junho deste ano, o Projeto de Lei 482/2023 foi votado apressadamente – como tem sido frequente na Ales –, após aprovação de requerimento de urgência apresentado pelo deputado Coronel Weliton (PRD), líder do bloco independente formado por três partidos de direita: Republicanos, PL e PRD. A proposição do deputado Alcântaro foi aprovada em plenário, em votação simbólica, com voto contrário da deputada Camila Valadão (PSol).
O projeto foi aprovado com uma emenda do próprio autor. Em sua redação original, o texto já especificava as punições aplicáveis em caso de descumprimento da norma, crescentes conforme a gravidade ou a reincidência da instituição de ensino. Alcântaro propunha multa de R$ 4,7 mil ao docente, por aluno participante da atividade. Assim, se uma professora tratasse, digamos, da violência doméstica contra as mulheres como aquilo que realmente é (uma manifestação da “violência de gênero”), em uma turma com 30 alunos, sem pedir a permissão dos pais, estaria sujeita, em tese, a pagar uma multa de quase R$ 150 mil.
O projeto também previa a suspensão das atividades da escola por três meses e, no limite, a cassação da licença de funcionamento da instituição.
No entanto, para fazer o projeto passar, Alcântaro apresentou sua emenda, deixando a cargo do Governo do Estado a definição das sanções cabíveis. A contar da publicação da lei, o Executivo Estadual tem 90 dias para fazê-lo.
A sanção tácita de Casagrande: quem cala consente…
A matéria seguiu, então, para análise do governador Renato Casagrande.
À luz da Constituição Estadual, o chefe do Executivo teve 15 dias para vetar ou sancionar o projeto. Casagrande deixou transcorrer o prazo sem se posicionar, o que corresponde, na prática, à chamada “sanção tácita”: “Decorrido o prazo de quinze dias, o silêncio do Governador do Estado importará sanção”, diz a lei maior do Estado (Art. 66, § 1º). No Diário Oficial, o presidente da Assembleia registrou: “Faço saber que a Assembleia Legislativa aprovou, o governador do Estado […] sancionou, e eu, Marcelo Santo, seu Presidente, […], promulgo a seguinte Lei”.
Após o encaminhamento do projeto para o gabinete do governador, a Secretaria de Estado de Educação (Sedu) foi chamada a opinar sobre a matéria – como é praxe –, por se tratar de legislação afeta à área, para subsidiar a decisão final do governador. Segundo o secretário estadual de Educação, Vitor de Angelo, a Sedu opinou contrariamente à sanção do projeto. Apesar da manifestação interna do secretário, o governador preferiu não vetar o projeto.
Como também é praxe, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) também foi chamada a dar parecer técnico-jurídico sobre a constitucionalidade e o interesse público da proposição. Segundo a assessoria da PGE, o documento está classificado como sigiloso.
Também procuramos a assessoria do governador para saber por que ele não vetou o projeto. Não houve resposta até a publicação deste texto.
O que diz a lei que ameaça os professores
Conforme a própria redação, a Lei Estadual 12.479/2025 visa assegurar, aos pais e responsáveis, o direito de proibir a participação de seus filhos ou dependentes em “atividades pedagógicas de gênero”, realizadas em instituições de ensino públicas e privadas. Para tanto, compreende que tais atividades são “aquelas que abordam temas relacionados à identidade de gênero, orientação sexual, diversidade sexual, igualdade de gênero e outros assuntos similares”.
Nessa linha, as instituições de ensino passam a ter a obrigação de “informar aos pais ou responsáveis sobre quaisquer atividades pedagógicas de gênero que possam ser realizadas no ambiente escolar, sob pena de serem responsabilizadas civil e penalmente, conforme o caso”.
A norma estabelece que “os pais ou responsáveis deverão manifestar expressamente sua concordância ou discordância quanto à participação de seus filhos ou dependentes em atividades pedagógicas de gênero, por meio de documento escrito e assinado, a ser entregue à instituição de ensino”. As escolas ficam obrigadas a cumprir “a vontade dos pais ou dos responsáveis”.
No texto original proposto em 2023 por Alcântaro Filho, o projeto previa que, em caso de descumprimento da “ordem dos pais”, as escolas ficariam sujeitas às seguintes penalidades:
- I – Advertência por escrito, com prazo para regularização da conduta;
- II – Multa de 1000 (mil) VRTEs (atualmente, R$ 4,7175), por aluno participante, a ser aplicada em caso de reincidência;
- III – Suspensão temporária das atividades da instituição de ensino por até 90 dias;
- IV – Cassação da autorização de funcionamento da instituição de ensino.
Entretanto, com a emenda de Alcântaro aprovada, o artigo em questão deixou em aberto as sanções, cabendo ao governo determiná-las: “O Poder Executivo deverá regulamentar as sanções aplicáveis em caso de descumprimento desta Lei no prazo de até 90 (noventa) dias contados da data de sua publicação”.
Foi uma forma de fazer o projeto passar, já que deputados não podem criar obrigações ao Poder Executivo.
Opinião do colunista: ilegalidade é só o primeiro problema
Antes de tudo, é preciso dizer: a nova lei estadual, que ameaça todos os educadores do Espírito Santo em sua atividade docente, é gritantemente inconstitucional. Não é preciso ser um gênio do Direito Constitucional para perceber, logo na primeira leitura, os flagrantes defeitos e vícios de forma do projeto surpreendentemente transformado em lei, a começar pelo acintoso vício de iniciativa.
Qualquer segundanista do pior curso de Direito sabe disto: deputados estaduais não podem legislar sobre currículo educacional – muito menos meter-se a dizer o que professores podem ou não podem ensinar aos seus alunos na rede escolar. Trata-se de legislação federal; matéria, portanto, de competência da União. Deputados federais e senadores podem legislar sobre o tema. Deputados estaduais, não.
A lei em questão fere afrontosamente a Lei de Diretrizes e Bases (1996). Agora, no Espírito Santo, professores não podem abordar, sem o consentimento expresso dos pais, alguns temas que fazem parte do currículo oficial da rede estadual (Sedu), o qual se inspira no Plano Nacional de Educação (PNE), resultante, por sua vez, de amplo debate social entre especialistas e agentes diretamente envolvidos com o tema da educação e integrados ao ecossistema escolar. É preciso frisar este ponto: agora, na letra fria da lei, professores em atuação no Espírito Santo correm o risco de ser punidos por tratar de temas previstos nos currículos oficiais, temas que eles, portanto, na verdade precisam abordar. Está estabelecido o paradoxo.
Poderíamos prosseguir aqui a apontar inconsistências formais da nova lei – sublinhadas, aliás, por todos os procuradores da própria Assembleia. Formalmente, ela é inconstitucional. Não resistiria, em qualquer tribunal, à primeira ação direta de inconstitucionalidade, até porque já há jurisprudência farta do STF. Só por isso, a nova lei é uma excrescência, antes mesmo de entrarmos no seu mérito.
Mas entremos agora no mérito da iniciativa, pois aqui se encontram os pontos mais graves.
Se nos atemos à ementa e ao primeiro artigo da lei, deparamos com algo muito vago: “vedar a participação de seus filhos ou de seus dependentes em atividades pedagógicas de gênero”.
Sem trocadilho, dá-se ao complexo conceito de “gênero” um tratamento por demais genérico. O que o deputado proponente estaria a chamar de “atividades de gênero”? Uma aula de Língua Portuguesa sobre gêneros textuais acaso de enquadraria à definição?
Mas então vem o artigo segundo, no qual encontramos uma tentativa de delimitação… E é aí que mora a grande armadilha do texto.
Mais um dos muitos projetos afins apresentados país afora nos últimos anos na linha “Escola sem Partido”, “Escola sem Doutrinação” etc., a iniciativa de Alcântaro deve ser compreendida dentro do contexto da cruzada de parlamentares conservadores, majoritariamente evangélicos, contra o que classificam, de maneira genérica (e equivocada), como “ideologia de gênero”.
Quando você ouve com atenção os discursos de alguns desses legisladores, percebe de pronto que, do ponto de vista deles, o conceito pode ser bastante elástico: sob o rótulo “ideologia de gênero”, cabe tudo o que não se coadune com os dogmas religiosos professados por tais parlamentares (subsumidos no que eles mesmos definem como os “valores cristãos”).
Mas o projeto em questão não fala, como tantos outros já derrubados na Justiça, de “ideologia de gênero”. Impetuosamente, avança sobre conceitos bem mais específicos: “identidade de gênero”, “orientação sexual”, “igualdade de gênero”. Tudo isso é vedado, até segunda ordem (dos pais).
Ora, se uma professora propuser, à sua turma de ensino médio, uma discussão sobre “equidade de gênero”, especificamente sobre a importância de medidas para contratação e promoção de mulheres em empresas privadas e no poder público, acaso estará a promover a “ideologia de gênero” e a “doutrinar os nossos filhos” valendo-se de seu público cativo? Não creio. Mas sem dúvida estará a tratar, fundamentalmente, do tema da “igualdade de gênero”… E isso agora fica especificamente vedado, salvo mediante autorização prévia dos pais. É muito grave.
Mais grave ainda, aliás, quando descemos aos exemplos mais palpáveis. A letra da lei, no papel, pode parecer por demais distante da realidade.
Mas vamos supor que, em determinada escola de ensino médio de uma comunidade periférica, muitos alunos vivenciem casos de violência doméstica, rotineiramente, dentro do ambiente familiar. Vamos supor que agressões verbais, físicas e psicológicas contra mulheres sejam uma constante no cotidiano daquela comunidade… A professora sabe disso, testemunha diariamente como o problema extraclasse afeta não só o comportamento como inclusive o desempenho de seus alunos. Acaso tal professora não poderá tratar do tema, espontaneamente, com sua turma, sob o risco e o medo de ser punida se assim fizer?
Agora suponhamos que, em outra escola, do outro lado da cidade, esta particular e com alunos de famílias de alta renda, seja constatada uma “epidemia de bullying”, de cunho notadamente homofóbico. Suponhamos que, nessa mesma escola, determinado aluno, por sua aparência e comportamento divergente da norma (não heteronormativo), seja implacavelmente perseguido por colegas, vivendo uma rotina insuportável. O corpo de educadores não poderá fazer nada a respeito (palestras de conscientização, campanha antibullying, debates em sala de aula), a menos que todos os pais e responsáveis dos alunos concordem? E se só uma parte concordar? Os filhos dos discordantes terão de ser separados no momento da atividade?
Agora suponhamos que essa mesma escola nada faça e o bullying siga escalando até que, no ápice, aquele rapaz perseguido sofra agressões físicas de colegas no recreio ou na saída da escola (como tão comumente acontece). O pedagogo ou professor daquela turma não poderá abordar imediatamente o fato, nem tocar na questão da discriminação de gênero, por orientação ou identidade sexual? À luz da nova lei, a resposta é não: por incrível que pareça, ele não poderá tocar no tema. Ficará impedido. Mas, do ponto de vista ético, ele não só poderia como deveria fazê-lo.
Aliás, a perversidade da lei está no fato de dizer que os mestres não podem fazer o que eles, na realidade, devem fazer, pela própria responsabilidade inerente à sua missão de educar.
A lei tem outros problemas de natureza ética, política e pedagógica. Ajuda a reforçar a sanha punitiva e persecutória contra os professores em geral, jogando as famílias contra esses profissionais, tomando-os por vilões em vez de aliados dos pais na educação das nossas crianças e adolescentes. Mais uma vez, o professor é colocado no papel de lobo em pele de cordeiro, de alguém sempre ponto a “doutrinar e desvirtuar nossas crianças”, “desencaminhá-las”, “erotizá-las precocemente”. Eis o subtexto do projeto tornado lei.
Isso só faz distanciar os pais dos mestres, as famílias da comunidade escolar, quando o ideal seria que o processo educacional se desse em ambiente de integração e mútua colaboração – aberto a críticas, mas sem esse tipo de censura e desconfiança.
No lugar dessa incansável caça às bruxas, impulsionada por ideias paranoicas, quem tem legítimas preocupações poderia buscar dialogar mais, entender melhor o currículo, a proposta pedagógica da escola. Assim como médicos estudam para atender a pacientes, professores estudam (e muito) para estar ali a lecionar e educar, em que pesem serem tão desvalorizados em um país como o nosso, em contraste com outros muito mais desenvolvidos – talvez exatamente por isso. Merecem mais respeito e menos desconfiança.
Além disso, assim como o ensino em uma escola é oferecido por pessoas que estudaram para dar aulas, currículos são elaborados por pessoas que dedicaram a vida à educação (e a estudar a educação). Causa espécie que tantos deputados se sintam em condições de substituir especialistas na área, arrogando-se uma competência que não possuem e o direito de determinar o que os professores devem ou não devem abordar em sua própria área de saber e atuação.
Há, ainda, alguns fios soltos, lacunas práticas deixadas pela lei: quem vai fiscalizar e determinar que esse ou aquele professor tenha descumprido a norma? Como será operacionalizada, no dia a dia, essa dinâmica de pedir autorização dos pais para tudo?
Por fim, não estranha, espanta nem admira que, numa Assembleia dominada por deputados altamente conservadores, projeto semelhante tenha passado. O que causa mesmo espanto é que o governador do Estado tenha feito vista grossa e deixado passar projeto tão manifestamente contrário aos profissionais da educação, incluindo os do próprio Estado – por maior que seja a dependência política do governo em relação a uma base parlamentar formada majoritariamente por conservadores como Alcântaro.
