Coluna Vitor Vogas
Arcebispo de Vitória se posiciona sobre Lei de Gênero. Pastores firmam carta
A controversa Lei Estadual nº 12.479/2025 (“Lei Antigênero”) virou uma bola de neve tão grande que forçou o arcebispo de Vitória, Dom Ângelo Mezzari, a se posicionar pessoalmente. “Nota de Repúdio” do Vicariato gerou reações contrárias de alas católicas bem mais conservadoras. Enquanto isso, pastores firmaram epístola em defesa da lei

Dom Ângelo Mezzari
A controversa Lei Estadual nº 12.479/2025 (“Lei Antigênero”) virou uma bola de neve tão grande que forçou o arcebispo de Vitória, Dom Ângelo Ademir Mezzari, a se posicionar pessoalmente. Em uma “Nota de Esclarecimento”, o arcebispo saiu em defesa do Vicariato para a Ação Social, Política & Ecumênica e repudiou veementemente “as tentativas de manipulação e deslegitimação” da atuação pastoral e do posicionamento da Arquidiocese de Vitória.
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Reafirmando o compromisso da Igreja Católica com a defesa da dignidade humana, Dom Ângelo veio a público “esclarecer o conteúdo integral” da “Nota de Repúdio” divulgada no dia 23 de julho pelo Vicariato da Arquidiocese de Vitória, “devido às deturpações e ilações que passaram a circular nas redes sociais”.
Sob contestação no STF, a lei em questão tem origem em projeto de lei apresentado em 2023 pelo deputado estadual Alcântaro Filho (Republicanos), expoente da Bancada da Bíblia na Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales). Após sanção tácita do governador Renato Casagrande (PSB), a lei foi promulgada pelo presidente da Ales, Marcelo Santos (União), e publicada no dia 21 de julho.
A norma impede educadores, em todas as escolas do Espírito Santo, tanto públicas como privadas, de realizar “atividades pedagógicas de gênero” – nos termos da lei, “aquelas que abordam temas relacionados à identidade de gênero, à orientação sexual, à diversidade sexual, à igualdade de gênero e a outros assuntos similares” –, a menos que tenham autorização prévia por escrito dos pais ou responsáveis pelos alunos.
Na prática, as escolas só poderão abordar um dos temas especificados na redação da lei, ou “outros assuntos similares”, após autorização expressa dos pais dos estudantes, “sob pena de serem responsabilizadas civil e penalmente, conforme o caso”.
No dia 23, o Vicariato da Arquidiocese de Vitória, representado pelo Padre Kelder José Brandão Figueira, divulgou uma “Nota de Repúdio” à nova lei, intitulada “Um Ataque à Educação e à Diversidade”. O texto é assinado pelo Padre Kelder, como vigário episcopal. A íntegra pode ser lida neste post.
Lembrando que a educação foi o tema da Campanha da Fraternidade em 2022, o vigário citou trecho do Manifesto em Defesa da Educação com Fraternidade, publicado na celebração de abertura da campanha naquele ano. No documento, a Arquidiocese de Vitória, então sob a liderança de Dom Dario Campos, fez a seguinte conclamação aos fiéis:
“Queremos Educação para todos e todas, que contribua para fortalecer as relações igualitárias entre homens e mulheres, com reconhecimento, respeito pelas diferenças, melhoria da qualidade de vida e inclusão para todos/as (negros, indígenas, quilombolas, educação do campo, jovens e adultos, educação prisional, LGBTQIA+ e a concretização do Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos”.
Em seguida, em nome do Vicariato, o padre expressou “veemente repúdio” à promulgação da lei, classificando-a como “um grave retrocesso”.
“Sob a falaciosa justificativa de assegurar o direito dos pais de alunos, ela representa um grave retrocesso que atenta contra os princípios fundamentais da educação, da diversidade e dos direitos humanos. Ao permitir que pais e responsáveis vetem a participação de crianças e adolescentes em ‘atividades pedagógicas de gênero’, a lei impõe um cerceamento inaceitável ao ambiente escolar e perpetua a ignorância e o preconceito.”
Nos termos da nota, “a verdadeira intenção da lei” é “silenciar o debate sobre a diversidade e impedir que as escolas cumpram seu papel fundamental na formação de cidadãos conscientes, críticos e respeitosos”. Citando dados alarmantes de registros de mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ no Brasil, assassinadas meramente por sua orientação sexual, o religioso conclui ser “inadmissível que o Poder Legislativo crie ferramentas para alimentar ainda mais o preconceito”.
Para o representante do Vicariato, “a lei reforça estereótipos prejudiciais e perpetua a discriminação, colocando em risco a saúde mental e física de jovens LGBTQIA+”. Além disso, “é uma lei que, em vez de proteger, expõe crianças e adolescentes à ignorância e à perpetuação de violências, aumentando ainda mais a sua vulnerabilidade”. A nota conclui: “A educação é a ferramenta que temos contra a intolerância, e não podemos permitir que ela seja silenciada por legislações retrógradas”.
Reações contrárias: “ideologia satânica”
A nota do Vicariato despertou reações, algumas bem intensas, nas redes sociais. No próprio post original, alguns internautas criticaram a posição assumida por esse braço da Arquidiocese de Vitória, enquanto outros chegaram a questionar ou até duvidar que aquela fosse verdadeiramente a posição da Igreja Católica no Espírito Santo.
Falando em uma “ideologia de gênero nefasta e satânica”, um perfil chamado “Educar para o Céu” postou:
“Gravíssimo! A @arquivitoria precisa esclarecer a postura inadmissível de seu Vigário Episcopal, Padre Kelder José Brandão Figueira, que, por meio de nota de repúdio assinada de próprio punho, se coloca favorável ao ensino de ideologia de gênero nas escolas e contrário ao direito dos pais e famílias que não querem que seus filhos sejam doutrinados por essa ideologia nefasta e satânica. Padre Kelder coloca a Arquidiocese e seus Bispos na mesma condição dos coletivos gays que se manifestaram contra o PL 12.479/2025.”
O post questiona a Arquidiocese de Vitória e reclama uma manifestação dos bispos: “A Arquidiocese de Vitória, através do Vicariato, também está nesta aliança ideológica????? […] Os Srs. Bispos têm o dever moral de se manifestarem contra esse posicionamento que fere os valores da vida e da família, além de contrapor diretamente o ensino da Santa Igreja em relação a esta nefasta ideologia”.
Com 118 mil seguidores – entre eles, os deputados Lucas Polese (PL) e Evair de Melo (PP) –, o perfil se alinha à ala mais ortodoxa e ultraconservadora do catolicismo. Em suas postagens, o perfil afirma, por exemplo, que é preciso combater a Teologia da Libertação, que a festa de Halloween é satanismo e que o governo Lula quer implantar uma “ditadura comunista” no Brasil.
A resposta de Dom Ângelo
Diante das proporções adquiridas pela história, o arcebispo metropolitano de Vitória emitiu uma “Nota de Esclarecimento” aberta com um versículo retirado do Evangelho segundo João (ironicamente, muito citado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro): “A verdade vos libertará” (Jo 8,32). O grifo é nosso:
“A Igreja não se afasta do seu Magistério e expressa, com fidelidade ao Evangelho, o seu compromisso de condução pastoral dos fiéis. A Arquidiocese de Vitória-ES reafirma sua missão de defender a dignidade da pessoa humana e de promover uma cultura de paz com justiça social, sempre à luz da Doutrina Social da Igreja e da fé cristã, reafirmando que cabe ao Magistério da Igreja a interpretação justa da Doutrina Social e as orientações de aplicação. Por isso, a Arquidiocese de Vitória repudia veementemente as tentativas de manipulação e deslegitimação de sua atuação pastoral e pronunciamentos sempre que estes sejam necessários à defesa da vida e preservando sua integridade institucional”, afirma o chefe da Igreja no Espírito Santo.
“Nesse espírito, rogamos a intercessão de Nossa Senhora, modelo de acolhimento e sabedoria, para que nos ajude a manter firme o compromisso com a verdade, a justiça e a comunhão, mesmo diante de incompreensões e desejos de posicionamentos contrários à Doutrina Cristã”, conclui Dom Ângelo, na nota.
A Epístola dos Pastores para Casagrande
A título de exercício comparativo, creio que é no mínimo curioso trazer aqui também o texto de uma carta assinada por 22 pastores evangélicos, por conta do ululante contraste na maneira de encarar o assunto. A missiva, reproduzida parcialmente abaixo (em itálico), foi apresentada pelo deputado Alcântaro, autor da iniciativa de lei, em discurso no plenário da Ales, na última segunda-feira (3).
Também falando em “ideologia de gênero”, os pastores – principalmente de convenções da Assembleia de Deus e Cristo Verdade que Liberta – clamavam ao governador Renato Casagrande para que ele defendesse a manutenção da lei, em sua resposta ao STF, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade que tramita na Corte, sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia. O apelo não surtiu o menor efeito, pois Casagrande, em resposta à intimação recebida da ministra, defendeu que a lei na verdade é inconstitucional e assim deve ser declarada pelo Supremo – de certo modo, revendo sua própria posição neste debate.
Em todo caso, vale a pena ler e confrontar os argumentos desse grupo de pastores com os da Arquidiocese de Vitória. Enquanto esta manifesta repúdio à lei, aqueles expressam o seu “apoio irrestrito”. Enquanto a Arquidiocese classifica a lei como um “grave retrocesso”, os líderes evangélicos em questão consideram que ela representa “um marco de equilíbrio e respeito à autoridade familiar” e “a voz do povo cristão e conservador do Espírito Santo”:
Nós, abaixo-assinados, representantes de convenções, federações, conselhos e lideranças das igrejas evangélicas do Estado do Espírito Santo, manifestamos nosso apoio integral à Lei nº 12.479/2025, de autoria do Deputado Estadual Alcântaro Filho. […]
Consideramos esta legislação um marco de equilíbrio e respeito à autoridade familiar, um direito garantido tanto pela Constituição Federal quanto por tratados internacionais, como o Pacto de San José da Costa Rica. Este pacto reconhece o direito preferencial dos pais na formação religiosa e moral de seus filhos. A lei em questão não impede o ensino nem impõe censura, mas garante ao pai o direito de escolher, com transparência e responsabilidade, a exposição de seus filhos a conteúdos que possam interferir em sua formação moral e religiosa. […]
Diante destece cenário, apelamos respeitosamente:
Ao Governador do Estado: Que não se omita e se posicione com clareza e firmeza, por meio da Procuradoria-Geral, em defesa da constitucionalidade da lei, que reflete o desejo legítimo das famílias capixabas. […]
Esta legislação representa a voz do povo conservador e cristão do Espírito Santo, que anseia por uma educação que respeita a fé, a moral e os valores familiares. Reiteramos que mexer nesta lei é mexer com a dignidade das famílias capixabas. […]
Firmamos esta nota em unidade, como igrejas que oram pelo bem do Espírito Santo e que agora se levantam em defesa da verdade, da família e das nossas crianças.
Reparem que eles se arvoram em porta-vozes das “famílias capixabas”. De todas as famílias capixabas.
