Coluna Vitor Vogas
Prefeitura quer derrubar projeto que veta moradores de rua em Vitória
Se projeto do aliado Luiz Emanuel for aprovado em plenário, Pazolini terá de se equilibrar no meio-fio, entre pessoas em situação de rua, a Igreja Católica e boa parte do seu eleitorado. Para evitar o beco sem saída política, prefeito e sua equipe trabalham para que a proposta seja enterrada debaixo da marquise do plenário. Nesta segunda, um movimento da base por pouco não levou a isso…
O projeto de lei do vereador Luiz Emanuel (Republicanos) que trata da população em situação de rua pode deixar Lorenzo Pazolini (Republicanos) em um beco sem saída política. O próprio prefeito e sua equipe não têm interesse na aprovação do projeto do aliado na Câmara de Vitória. Preferem que a proposição seja morta e enterrada no plenário mesmo, sem nem sequer seguir para a análise do prefeito, poupando-o, assim, de uma armadilha. Se o projeto for aprovado na Casa, Pazolini se verá diante daquela típica situação em que não há via de escape positiva. Qualquer que seja o caminho escolhido, ele perderá por um lado.
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Por isso, sob orientação dos emissários da Prefeitura de Vitória, a própria base de Pazolini está trabalhando nos bastidores para derrubar em plenário o PL 57/2023, proposto por Luiz Emanuel, um dos mais experientes vereadores de Vitória, recém-eleito para o quarto mandato consecutivo. A princípio, o projeto está previsto para ir a votação na próxima quarta-feira (13). Mas, na sessão ordinária realizada na manhã desta segunda-feira (11), por muito pouco o projeto não foi colocado em votação em regime de “urgência urgentíssima”, por iniciativa de vereadores da base.
Se isso tivesse ocorrido, o projeto fatalmente teria sido rejeitado no voto em plenário – e o objetivo da movimentação foi exatamente esse. A estratégia só não se concretizou porque o próprio Luiz Emanuel, autor da matéria, ausentou-se do plenário, e não voltou mais para a sessão, o que tecnicamente impediu que o projeto fosse votado em urgência na mesma sessão.
O PL 57/2023 desperta a resistência não só de vereadores de oposição, mas também de segmentos sociais e, agora, até da Igreja Católica, representada no caso pela Arquidiocese de Vitória. No último sábado (9), o arcebispo de Vitória, Dom Dario Campos, emitiu uma nota pública condenando de maneira contundente o projeto de lei, classificado pela autoridade máxima dos católicos no Espírito Santo como uma “prática higienista que, ao invés de promover soluções dignas, reforça a marginalização e o preconceito”.
O teor do projeto do aliado de Pazolini é detalhado mais adiante neste texto. Mas, naquilo que é essencial, o projeto “veda [isto é, proíbe] a ocupação, por qualquer pessoa, para fins de moradia e quaisquer atividades habituais, providas de assistência social, nos logradouros públicos situados no município de Vitória”. Não cabe outra interpretação: pessoas em situação de rua que ocupam esses espaços públicos não poderão ali permanecer; terão de ser retiradas compulsoriamente pelo poder público.
Em primeira análise, até para quem não é especialista, o projeto soa inconstitucional, pois colide com alguns direitos fundamentais de todo cidadão em solo brasileiro (incluindo as calçadas de Vitória), consagrados pela Constituição Federal de 1988. O mais elementar é o próprio direito de ir e vir, ou, mais especificamente, o de se locomover por vias públicas.
Em leitura preliminar – sumária como o próprio projeto –, caso a iniciativa vire lei municipal, essas pessoas hoje em situação de rua simplesmente terão negado o direito de, simplesmente, estar ali. Na prática, a presença desses indivíduos em logradouros públicos será vetada pelo poder público municipal, o que evidentemente se choca com o arcabouço legal federal.
Ainda do ponto de vista técnico, há aparente vício de iniciativa: o projeto obviamente cria obrigações para o Poder Executivo Municipal, que deverá assegurar o cumprimento da lei, o que aliás nos remete a outro grande problema cuja solução não se extrai das linhas da propositura: quem ficará encarregado de dar cumprimento à lei e, o que é mais importante, como isso será feito?
Se essas pessoas forem sumariamente retiradas dali, para onde serão levadas? E se elas quiserem retornar? E se não houver vagas em abrigos? E se outras surgirem no lugar? “O projeto não resolve o problema e cria outros três”, resume uma fonte do Executivo Municipal ouvida pela coluna, sob anonimato. Poderíamos acrescentar: sugere uma solução simples demais (logo, ilusória) para um problema por demais complexo e multifacetado.
Nos corredores jurídicos e administrativos da Prefeitura de Vitória, a percepção predominante é mesmo a de que o projeto é mesmo “inconstitucional”, além de “mal elaborado”.
Bem, isso do ponto de vista mais técnico. Mas voltemos à análise política.
O problemão para Pazolini
Se o PL for aprovado em plenário, seguirá para análise de Pazolini, que terá diante de si três opções: vetar o projeto, sancioná-lo ou deixar transcorrer o prazo legal e devolvê-lo à Câmara sem se posicionar (o que corresponde à chamada “sanção tácita”).
A priori, seguindo um muito provável parecer da Procuradoria Municipal com esta recomendação, Pazolini não terá escolha senão vetá-lo por motivos técnicos (de novo: como é que um ente público pode proibir um cidadão, quem quer que seja, de estar num logradouro público, e qual procurador que se preze deixaria de apontar os vícios e inconsistências legais de tal iniciativa?).
Porém, se vetar o projeto, Pazolini ficará com o ônus político do veto, pois será cobrado pelas pessoas de classe média e alta de Vitória que, com fundada indignação, não aguentam mais a presença de moradores em situação de rua nas praças, esquinas e calçadas bem em frente a suas residências. Noutras palavras, se fizer isso, ele contrariará boa parte do seu eleitorado, sequioso por uma “solução urgente”.
Por outro lado, se sancionar o projeto (ainda que tacitamente), além de fazer vista grossa para prováveis ilegalidades da proposta, o prefeito baterá de frente até com a Igreja Católica, que entrou pesadamente no debate, podendo receber a pecha de “higienista” e “discriminatório”…
Isso, é bom lembrar, pouco tempo após ter saído vitorioso de uma campanha à reeleição na qual pregou uma “Vitória da paz e da união” e repetiu à exaustão o discurso de que, no atual governo, construiu uma cidade mais igual, “derrubou muros” e reduziu desigualdades entre as várias regiões da Capital.
Alguém poderia lhe questionar: esse tão propalada “união” não alcança os moradores de mais baixa renda e em situação de rua? Como a “derrubada de muros” se coaduna com a expulsão de pessoas que dormem debaixo de marquises? Reduzir as diferenças entre os morros e o asfalto por acaso exclui as calçadas? De maneira gritante, o discurso ainda fresco de campanha não combinaria nem um pouco com a ação de governo, neste caso.
Em resumo, esse PL é um abacaxi político para Pazolini e equipe, que, exatamente por isso, preferem descascá-lo ali na Câmara mesmo, onde a atual administração goza de ampla maioria.
Vale dizer: o governo Pazolini prefere que o polêmico projeto seja sepultado no plenário, mesmo que isso signifique contrariar os dois vereadores do partido do prefeito (o vereador Davi Esmael, também do Republicanos, não atendeu à coluna, mas, segundo fonte da PMV, é um dos que apoia o projeto).
O ensaio de derrubada do projeto em plenário pela base
Na sessão plenária desta segunda-feira (11), a própria base de Pazolini realizou uma movimentação, no fim das contas frustrada, com o intuito de colocar o PL 57/2023 para ser votado e rejeitado na mesma sessão, em “urgência urgentíssima”.
Parece redundância, mero jogo de palavras ou alguma figura de linguagem, mas o novo Regimento Interno da Câmara de Vitória, vigente desde o início do ano passado, realmente contém esse raro dispositivo regimental.
Para pedir que um projeto não constante da pauta da sessão seja pautado em regime de urgência, vereadores precisam apresentar à Mesa Diretora um requerimento de urgência. Até aí, tudo normal. O presidente da Mesa, então, submete o pedido ao plenário.
Aí é que vem a inovação: se o requerimento de urgência for apresentado por cinco dos 15 vereadores (1/3 do plenário) e aprovado por, pelo menos, dez vereadores (2/3 do plenário), a matéria entra automaticamente em regime de “urgência urgentíssima”, devendo ser pautada e votada em plenário não na sessão seguinte, mas naquela mesma sessão.
Foi precisamente isso que vereadores da base tentaram realizar na manhã dessa segunda-feira (11). O movimento envolveu, por exemplo, o vereador Anderson Goggi (PP), também aliado de Pazolini e provável futuro presidente da Câmara de Vitória, a partir de janeiro. A orientação partiu diretamente da prefeitura e – segundo um vereador – de Erick Musso, presidente estadual do Republicanos e provável futuro secretário municipal de Governo.
Vereadores, incluindo Goggi, chegaram a reunir as cinco assinaturas necessárias e estavam determinados a levar o plano adiante. O plano só foi abortado por uma questão de ordem prática: antes das 10 horas, Luiz Emanuel se ausentou do plenário e – quiçá pressentindo o movimento – não voltou mais para a sessão.
Goggi e companhia, então, desistiram de pedir a votação em regime de urgência. De acordo com o Regimento Interno, mesmo se o requerimento fosse votado e aprovado por dez votos, configurando a “urgência urgentíssima”, o projeto não poderia ser votado na mesma sessão, devido à ausência do vereador proponente. O movimento perdeu a razão de ser.
De todo modo, a movimentação de vereadores da própria base é mais um indicativo forte de que a gestão de Pazolini trabalha pela derrubada do PL.
Querem mais um? O vereador Duda Brasil (PRD), ninguém menos que o líder de Pazolini, é contra a iniciativa.
Argumentos contrários
Até a semana passada, três vereadores já haviam discursado em plenário contra o projeto de Luiz Emanuel: Karla Coser (PT), André Moreira (PSol) e Chico Hosken (Podemos). Os dois primeiros são oposicionistas, assim como o vereador Vinicius Simões (PSB), enquanto Hosken pertence à base.
Na sessão dessa segunda, mais alguns vereadores pertencentes à base de Pazolini se pronunciaram contra o projeto.
Falando à coluna sob condição de anonimato, um parlamentar leal a Pazolini criticou a matéria:
“Como é que alguém ou a Guarda Municipal vai tirar a pessoa de forma forçada se tem outra lei que proíbe essa retirada, uma lei federal que garante que eles fiquem onde quiserem? Esse projeto é inconstitucional. Tem que ser dado um outro caminho ao problema, não de forma municipal. Já pensou se esse projeto vira mesmo lei municipal? Se vira lei, as pessoas vão cobrar o cumprimento. E como é que o prefeito daria cumprimento a essa lei municipal, com a população cobrando?”
O que diz exatamente o projeto
Dispõe sobre o uso adequado das praças e vias públicas de Vitória e garante segurança nesses locais.
Art. 1º É vedada a ocupação, por qualquer pessoa, para fins de moradia e quaisquer atividades habituais, providas de assistência social, nos logradouros públicos situados no município de Vitória.
§ 1º Considera-se atividades habituais todas aquelas congregadas ao cotidiano humano, tais como culinária, higienização e necessidades fisiológicas, dentre outras que incorrem na constante usurpação dos bens públicos de uso comum do povo e na liberdade, tranquilidade e vida privada da população.
§ 2º Considera-se assistência social qualquer mecanismo propício a ressocializar as pessoas, de forma que estas não se encontrem em posição de marginalidade e tampouco se sujeitem a praticar infortúnios aos(às) demais munícipes, a contemplar abrigos para moradia, tais quais munidos de condições de habitação, alimentação, higienização, dentre todos os recursos essenciais para a subsistência humana.
Art. 2º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas nas Leis 8.696, de 29 de julho de 2014 e 6.080, de 29 de dezembro de 2003, quando couber, o infrator é obrigado a indenizar ou recuperar os danos causados ao meio ambiente e aos bens de uso comum do povo, afetados por sua atividade.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
A justificativa oficial do projeto
A justificativa oficial do PL 57/2023 é bastante confusa. Os problemas de pontuação e coesão dificultam a compreensão. Mas dá para entender, por exemplo, que um dos argumentos é o risco do aparecimento de “epidemia”, por conta dos moradores de rua, e a consequente “redução da expectativa de vida populacional”.
Abaixo, reproduzimos a íntegra da justificativa, tal como protocolada no dia 27 de março de 2023:
Almejamos coadunar a ressocialização das pessoas em situação de rua à segurança pública da população de modo generalizado, ou seja, não se trata de nenhuma prática de discriminação, exterminação ou marginalização dessa classe.
Isso porque, o nosso escopo primário é verificar se há abrigamento a ser oferecido perante a municipalidade, o que, em caso negativo, fomentamos o afastamento dos sujeitos que se apresentam desabrigados, por estarem estes, incorrendo em abuso de direito excedendo manifestamente os fins sociais conforme reza o artigo 187 do Código Civil, à medida que, ao efetuarem práticas cotidianas cerceiam a liberdade de ir e vir e a integridade moral das pessoas que habitam e trafegam nos ambientes usurpados pela coletividade em comento, ante o fato de a marginalização desta propender a prática de ilícitos penais como já ocorre em diversas comunidades do município.
Outrossim, cumpre aludir que a moradia e prática de atos diários em tais bens imputados como de uso comum do povo, enseja uma farta lesão ao meio ambiente, à saúde e à incolumidade pública, na medida em que se observa a cada dia, tornado os espaços urbanos em más condições de salubridade propiciando o aparecimento de doenças, até mesmo, uma epidemia e, em decorrência disso, a redução da expectativa de vida populacional.
Portanto não há outra iniciativa, além desta proposição, sob o fito de sanar ou atenuar todo esse descompasso social que assola exorbitantemente o ambiente urbano e os(as) habitantes da capital do Espírito Santo. Razão pela qual, suplico, respeitosamente aos meus eminentes pares, a aprovação deste projeto.
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