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Coluna Vitor Vogas

Casagrande veta projeto que restringe participação esportiva de trans

Veja os argumentos do governador e os do autor do projeto, Capitão Assumção. Justificativa do deputado é técnica, mas contém dois imensos paradoxos

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Capitão Assumção é autor de projeto vetado por Renato Casagrande.

O governador Renato Casagrande (PSB) vetou totalmente o projeto de lei do deputado Capitão Assumção (PL) que estabelece o sexo biológico como único critério para definição do gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no Espírito Santo. Na prática, se o projeto virar lei estadual, pessoas trans não poderão disputar competições esportivas em equipes e categorias correspondentes a sua identidade de gênero. 

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Com um projeto similar do deputado Vandinho Leite (PSDB) anexado, a proposição de Assumção foi aprovada pela Assembleia Legislativa, em regime de urgência e por votação simbólica, no último dia 12. O projeto recebeu parecer favorável (pela constitucionalidade) da Comissão de Constituição e Justiça. Já na Comissão de Direitos Humanos, o parecer oral da relatora e presidente do colegiado, Camila Valadão (PSol), foi contrário ao projeto e acompanhado pela maioria dos membros, pelo placar de 3 a 2. 

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Casagrande enviou o veto total à Assembleia nessa quinta-feira (27). 

Seguindo parecer da Procuradoria Geral do Estado (PGE) e sem entrar na polêmica relacionada à conceituação de “identidade de gênero”, o governador concluiu que o projeto de Assumção fere o princípio da autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações quanto a sua organização e funcionamento, consagrado no artigo 217, inciso I, da Constituição Federal. É, portanto, inconstitucional, na avaliação da PGE e do governador. 

Agora, cabe aos deputados estaduais deliberar em plenário sobre o veto de Casagrande, que poderá ser mantido ou derrubado por eles, quando for pautado pelo presidente da Assembleia, Marcelo Santos (Podemos). 

O que diz o projeto

De acordo com a redação do projeto de lei de Assumção, “fica determinado que o sexo biológico é o único critério definidor para a organização das equipes quanto ao gênero dos competidores em partidas esportivas oficiais no Estado do Espírito Santo, sendo vedada a atuação de transgêneros em tais equipes”.

O projeto define que “transgênero é a pessoa que tem identidade de gênero, ou expressão de gênero diferente do sexo biológico”.

“Aos transgêneros”, dispõe o projeto, “fica garantida a participação apenas em equipes que correspondam ao seu sexo biológico”.

A federação, entidade ou clube de desporto que descumprir tais proibições sofrerá multa equivalente a 5.000 VRTE (aproximadamente R$ 21,5 mil, em valores atuais).

Se o projeto virar lei, os clubes de desporto deverão se adequar a essas normas no prazo de 180 dias.

Os argumentos de Assumção

O cerne da argumentação do deputado bolsonarista é a questão da isonomia necessária em se tratando do universo do desporto. 

Por uma questão de natureza física (pessoas nascidas com o sexo biológico masculino basicamente são mais fortes que as nascidas com sexo feminino), mulheres trans que disputam competições em equipes femininas podem levar, segundo ele, vantagem física sobre as demais, comprometendo o necessário equilíbrio nas disputas esportivas. 

Na justificativa, sem nominar a atleta, Assumção cita o exemplo da jogadora Tiffany, primeira e única atleta trans do vôlei feminino profissional brasileiro: “É de conhecimento público que uma jogadora transexual passou a integrar uma equipe feminina de vôlei em 2018”.

“Tal situação vem se repetindo em diversas modalidades esportivas, em que pessoas do sexo biológico masculino, após cirurgias de redesignação sexual, alteração do nome social, implantes mamários, gluteoplastias de aumento e ininterruptos tratamentos hormonais, passam a integrar equipes femininas”, registra o projeto. “Apesar de todos os procedimentos descritos, é fato comprovado pela medicina que, do ponto de vista biológico, a formação orgânica não muda.”

Assumção cita uma entrevista concedida ao UOL pela ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel, notória apoiadora de Jair Bolsonaro, assim como o próprio deputado do PL.

O proponente, então, passa à questão da quebra da igualdade de condições:

“Pelo fato de terem nascido homens, o corpo [dessas atletas] foi moldado com auxílio do hormônio masculino testosterona. Já as mulheres atletas não têm esse direito de uso do referido hormônio masculino para aumento de capacidade corporal, pois são monitoradas constantemente por exame antidoping. Caso as atletas sejam pegas com alto nível de testosterona no sangue, elas serão punidas até mesmo com a perda dos títulos conquistados anteriormente.”

Assumção cita o nível de testosterona considerado normal pela medicina no corpo de um homem e no de uma mulher. “A diferença é muito grande.”

A justificativa também traz uma explicação científica do fisiologista Turíbio Barros, colaborador do Eu Atleta. Segundo ele, a testosterona é um anabolizante natural que faz com que a massa muscular do homem seja maior que a da mulher, influenciando na velocidade, na força e na potência do indivíduo. “O homem produz oito vezes mais testosterona que a mulher.”

Ainda nos termos da justificativa, o tratamento hormonal diminui consideravelmente os níveis de testosterona no organismo da mulher trans, mas não a ponto de ela se igualar a uma atleta com sexo biológico feminino, pois a primeira “carrega parte da herança de anos de crescimento com níveis masculinos de testosterona”. “Então, ao [se] comparar com uma atleta que nasceu mulher, ela tem notória vantagem”.

Paradoxos gritantes

A argumentação do projeto de Assumção é preponderantemente técnica. Concentra-se no verdadeiro cerne desta discussão sobre a possibilidade ou não da participação de atletas trans em equipes correspondentes à sua identidade de gênero.

O ponto nodal realmente é se tais atletas, mesmo após tratamento hormonal, preservam vantagem física e biológica sobre as outras competidoras “nascidas em corpo de mulher”, o que em tese pode violar o princípio ético da igualdade de condições para todos os competidores e competidoras, fundamental no universo desportivo. 

Por outro lado, não posso deixar de registrar o que vejo como dois enormes paradoxos entre a argumentação técnico-científica da justificativa de Assumção e o discurso político constantemente enunciado pelo próprio deputado. 

Ora, assim como aliados, apoiadores e correligionários, o deputado sempre rechaça e até ridiculariza o conceito de “identidade de gênero”, apesar da vasta literatura acadêmica sobre o tema, tratando-a como se não existisse e como se tudo não passasse, na verdade, de “ideologia de gênero”. 

O projeto, porém, não apenas reconhece como explica o conceito de identidade de gênero, bem como o de “transgêneros”. Mais que isso: a base do projeto é o reconhecimento de ambos os conceitos. 

O projeto só existe porque o proponente admite que existe identidade de gênero e, portanto, existem pessoas trans, nascidas em um corpo biológico masculino, mas que se reconhecem como mulheres segundo o critério de gênero. Está escrito na justificativa do projeto. 

Os artigos do projeto e sua justificativa não dizem ei, isso na verdade não existe, e sim existe, é real, o conceito é este, mas a participação dessas atletas não é justa nessas condições por tais e tais argumentos.

O outro grande paradoxo, a meu ver, é que a justificativa do projeto, insisto, fundamenta-se em argumentos científicos, notadamente extraídos do campo da medicina esportiva. 

Ora, é algo no mínimo inesperado, surpreendente até, partindo de um parlamentar que se notabilizou durante a pandemia por colocar em xeque, assim como o então presidente Jair Bolsonaro (PL), verdades científicas consolidadas desde o século XX, como a eficácia da vacinação e os comprovados benefícios do isolamento social como forma de mitigar as taxas de contágio da Covid-19 e de óbitos causados pela doença contagiosa.

Para não ir muito longe, não custa lembrar que o ex-deputado Carlos Manato (PL), correligionário e candidato ao governo apoiado por Assumção, chegou a declarar que “a pandemia foi uma farsa”, no debate final contra Renato Casagrande (PSB) no segundo turno eleitoral. 

Quer dizer, conforme a conveniência, a mesa do discurso se inverte… Quando interessa, a ciência é negada; quando convém, é utilizada.

Vitor Vogas

Nascido no Rio de Janeiro e criado no Espírito Santo, Vitor Vogas tem 39 anos. Formado em Comunicação Social pela Ufes (2007), dedicou toda a sua carreira ao jornalismo político e já cobriu várias eleições. Trabalhou na Rede Gazeta de 2008 a 2011 e de 2014 a 2021, como repórter e colunista da editoria de Política do jornal A Gazeta, além de participações como comentarista na rádio CBN Vitória. Desde março de 2022, atua nos veículos da Rede Capixaba: a TV Capixaba, a Rádio BandNews FM e o Portal ES360. E-mail do colunista: [email protected]

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