Coluna Vitor Vogas
Justiça Estadual vai desmembrar cartórios em Vitória e Linhares
Na prática, TJES pretende abrir cinco novas serventias extrajudiciais para registro de imóveis. Objetivo é desconcentrar o serviço e os lucros. Projeto desperta enorme atenção por um motivo simples: a exploração dos serviços cartoriais é uma atividade extremamente lucrativa. Debate é atravessado por grandes interesses e pressões políticas e econômicas. Bola está com a Assembleia. Saiba o que está em jogo
Em busca de maior eficiência na prestação do serviço ao público e de maior equilíbrio na arrecadação de receitas, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) está determinado a desmembrar cartórios de registro de imóveis nos municípios de Vitória e de Linhares. Na prática, a gestão do presidente Samuel Meira Brasil Jr. pretende abrir três novas serventias extrajudiciais na Capital e mais duas no maior município do norte do Estado. Com essa finalidade, o presidente do tribunal mandou para a Assembleia Legislativa, em junho, o Projeto de Lei nº 375/2024, que reestrutura os serviços das serventias extrajudiciais no Espírito Santo.
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O projeto que chegou à Assembleia foi fruto de ampla discussão entre os desembargadores. Nos meses anteriores ao envio, a minuta foi objeto de discussões em reuniões a portas fechadas e em sessões administrativas do Pleno do TJES. Agora, o projeto enfim está prestes a ser votado no Legislativo Estadual, já tendo sido lido pelo presidente Marcelo Santos (União) no expediente da sessão plenária da última segunda-feira (2).
A possibilidade de desmembramento de cartórios desperta enorme atenção por um motivo simples: a exploração dos serviços cartoriais é uma atividade extremamente lucrativa. O tema, portanto, é atravessado por grandes interesses e pressões políticas e econômicas.
Se o projeto for aprovado na Assembleia e sancionado pelo governador Renato Casagrande (PSB) tal como proposto pelo TJES, o atual Cartório de 1º Ofício da 3ª Zona de Vitória será desmembrado em outros três, totalizando quatro serventias no mesmo espaço territorial.
Hoje, o referido cartório abrange toda a região continental da Capital. Com o desmembramento proposto, essa “comarca” dentro de Vitória, hoje totalmente concentrada pelo Cartório de 1º Ofício da 3ª Zona, será dividida em quatro “circunscrições” menores. Na prática, o território continental de Vitória será dividido em quatro partes, e onde hoje só opera um cartório passarão a operar quatro.
Os três futuros cartórios resultantes do desmembramento serão o Cartório de 1º Ofício da 4ª Zona de Vitória, o Cartório de 1º Ofício da 5ª Zona de Vitória e o Cartório de 1º Ofício da 6ª Zona de Vitória.
No caso de Linhares, a lógica é a mesma. Em todo o município, hoje, existe apenas o Cartório de 1º Ofício prestando o serviço de registros imobiliários. No que concerne a tal serviço, de certo modo, essa serventia exerce um monopólio em um município com mais de 160 mil habitantes. O que o TJES está propondo é que a comarca seja repartida em três “jurisdições” menores, com o único cartório existente se desmembrando em outros dois.
O atual Cartório de 1º Ofício passará a se chamar Cartório de 1º Ofício da 1ª Zona, enquanto as duas serventias originadas do desmembramento serão o Cartório de 1º Ofício da 2ª Zona e o Cartório de 1º Ofício da 3ª Zona.
No futuro, assim, onde hoje só opera um cartório passará a operar um total de três. Naturalmente, assim como em Vitória, o que se projeta com isso é uma divisão da clientela, da prestação dos serviços e, por conseguinte, dos lucros. E aqui passamos a responder à pergunta fundamental nesta matéria: por que a direção do TJES quer promover tal desmembramento?
A chave da resposta está numa palavra com que abrimos este texto: equilíbrio. O entendimento prevalente no TJES é que, atualmente, tanto o Cartório de 1º Ofício da 3ª Zona de Vitória como o Cartório de 1º Ofício de Linhares representam “serviços registrais que estão fora do ponto de equilíbrio máximo e mínimo da viabilidade econômica, observados os critérios econômicos e sociais da localidade” – como registra o presidente do tribunal na justificativa do projeto para os deputados estaduais.
De forma mais específica, esse “desequilíbrio” é verificado no aspecto financeiro. As duas serventias em questão, que o TJES quer desmembrar, estão acima do “ponto de equilíbrio máximo”: concentram lucros exorbitantes, já que, basicamente, monopolizam a oferta do serviço de registros imobiliários para um contingente populacional superior a 100 mil pessoas.
Com o desmembramento, o que se busca é, precisamente, uma desconcentração, uma diluição da prestação do serviço e das receitas auferidas por essa prestação; uma divisão mais justa e mais equânime.
Os números trazidos pelo TJES na justificativa do projeto provam isso. Hoje, por exemplo, calcula-se que o Cartório de 1º Ofício da 3ª Zona de Vitória fature, em média, R$ 721,4 mil por mês com o pagamento de emolumentos. O mesmo cartório tem um gasto médio mensal de R$ 145,3 mil. Isso significa um lucro de R$ 576,1 mil.
Com o desmembramento desse mesmo cartório em outros três, cada um dos quatro passará a ter receitas bem menores. O Cartório de 1º Ofício da 3ª Zona de Vitória passará a ter receita média mensal estimada em R$ 171,2 mil, para uma despesa média mensal de R$ 43,2 mil. O lucro, hoje perto dos R$ 600 mil por mês, deve cair para cerca de R$ 130 mil/mês.
Os três novos cartórios resultantes do desmembramento devem atingir números parecidos com esses, com faturamento médio mensal entre R$ 141,3 mil e R$ 198,2 mil. E a prestação do serviço tende a melhorar, pois será ampliada, multiplicada por quatro.
Mesma lógica se aplica ao Cartório de 1º Ofício de Linhares, cuja receita média hoje chega a R$ 476,8 mil – com lucro de R$ 352,4 mil. Se o desmembramento se confirmar, essa mesma serventia deve passar a captar uma receita de R$ 157,3 mil por mês – com lucro de R$ 107,6 mil. Isso com base nas projeções do TJES.
Concurso público à vista
A Corte também está seguindo uma meta estipulada e uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em inspeção realizada na Justiça Estadual do Espírito Santo em fevereiro de 2019.
Aqui é preciso fazer um breve recuo para dar uma explicação importante.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, os titulares de serventias extrajudiciais têm de ser, necessariamente, selecionados por concurso público. O concursado é, então, delegado pelo tribunal, tornando-se o “delegatário” (algo como um “concessionário”, o detentor de uma “outorga”). Ganha o direito de explorar comercialmente aquela serventia, oferecendo ali os serviços “auxiliares” à Justiça, conferindo legalidade a atos, com a fé pública que lhe é outorgada.
O titular deve arcar com as despesas de operação do cartório (custeio, pessoal, gastos com o imóvel etc.); em contrapartida, tem o direito de cobrar do público, pela prestação dos serviços, as taxas legais fixadas e fiscalizadas pela Corregedoria-Geral de Justiça (via Regimento de Custas do Estado do Espírito Santo); uma parte do que o cartório arrecada com a cobrança dos emolumentos é repassada ao Poder Judiciário, por meio dos dois fundos mantidos pelo TJES, enquanto o resto da arrecadação fica com ele, para sua própria remuneração e para a manutenção do serviço cartorário. Esse é o titular.
Há casos, porém, em que o cargo de titular fica vago (porque ele morre, por exemplo). Neste caso, quem assume o cartório, interinamente, é um substituto nomeado pelo tribunal (em geral, alguém que é titular de outro cartório, por conta da experiência). Diferentemente do titular, o interino só pode reter uma remuneração limitada ao teto legal, correspondente ao subsídio de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). O resto da receita arrecadada é recolhida aos cofres públicos do Estado.
Voltando ao fio da meada, o desmembramento de cartórios é uma questão urgente para o TJES até por conta de outro fator que está aí, batendo à porta: o tribunal está na iminência de colocar na rua um concurso público para seleção e nomeação de futuros titulares de serventias extrajudiciais da Justiça do Espírito Santo cuja titularidade no momento está em aberto.
A presidente da comissão desse concurso é a desembargadora Eliana Junqueira Munhós Ferreira. A banca examinadora já foi definida: será a Fundação Getúlio Vargas (FGV).
É o caso tanto do atual Cartório de 1º Ofício da 3ª Zona de Vitória como do atual Cartório de 1º Ofício de Linhares. Os dois estão com vacância na posição de titular. Além disso, os cinco futuros cartórios resultantes do desmembramento, obviamente, ainda não têm titular.
Por isso, o TJES quer resolver a questão do desmembramento antes de lançar o concurso, de modo que possa incluir, já nesse certame, o provimento das vagas de titular em todas essas serventias envolvidas – inclusive para evitar problemas futuros.
Tentativa “barrada” pela Assembleia em 2021
Esta não é a primeira vez que o TJES tenta desmembrar o Cartório de 1º Ofício da 3ª Zona de Vitória em um total de quatro e o Cartório de 1º Ofício de Linhares em um total de três.
Isso era rigorosamente o que previa o Projeto de Lei 113/2021, mandado para a Assembleia em março de 2021, ainda na gestão Erick Musso. O presidente do TJES na época era o agora aposentado desembargador Ronaldo Gonçalves de Sousa.
Além de alguns desmembramentos, o projeto em questão também propunha desdobramentos, anexações e desativações de serventias extrajudiciais. O projeto acabou aprovado e sancionado por Casagrande, dando origem à Lei Estadual 11.438, de 15 de outubro de 2021.
No entanto, alvo de grandes interesses e pressões políticas e econômicas, o texto original do TJES acabou desconfigurado durante a tramitação na Assembleia. No que toca aos desmembramentos em Linhares e em Vitória, o intento não foi atingido como o TJES gostaria naquela oportunidade.
É o que o próprio presidente Samuel Meira Brasil Jr. dá a entender logo nas primeiras linhas do novo projeto de lei (uma nova tentativa de emplacar o almejado desmembramento):
“Durante a tramitação do processo legislativo que ensejou a Lei n. 11.438/2021, foram promovidas alterações de iniciativa parlamentar na proposição inicial desta Corte de Justiça que, respeitosamente, reapresentamos para análise desta augusta Casa de Leis”.
Mais desmembramentos podem estar a caminho
Nos corredores e gabinetes do TJES, há muito se tem discutido uma possível ampliação do processo de reestruturação das serventias extrajudiciais da Justiça do Espírito Santo. O objetivo, apoiado por muitos desembargadores, é desmembrar cartórios em outras comarcas, como Cachoeiro de Itapemirim e, principalmente, a Serra, cidade mais populosa do Estado, palco de um boom demográfico nas últimas três décadas. A tese, pelo que apuramos, é defendida pela desembargadora Eliana Munhós, presidente da comissão que está a organizar o concurso.
Internamente, porém, decidiu-se adiar para depois das eleições municipais, encerradas em outubro, a discussão sobre possível desmembramento do cartório de registros de imóveis da Serra. Mas isso tem chances de voltar à tona agora.
Justificativa oficial
Em linhas bem gerais, a reestruturação dos cartórios obedece a fatores geográficos, demográficos, econômicos e sociais.
Na mensagem enviada aos deputados com o projeto de lei, anota o presidente Samuel Meira Brasil Jr.:
É preciso destacar que a necessidade de reestruturação se faz presente, periódica e permanentemente, em razão da evolução demográfica, do crescimento da renda per capita, do aumento ou da evolução do volume de receita arrecadada, do aumento ou da redução do volume dos atos praticados e do perfil socioeconômico das localidades às quais se destinam as serventias […].
Esses indicadores revelam potencialmente a necessidade de ampliar ou reduzir a atividade extrajudicial em determinadas localidades, mediante o estabelecimento de tendências, de acordo com a demanda e o volume do serviço.
O resultado financeiro de uma serventia é atrelado ao desempenho econômico.
O crescimento da economia, a construção de novos empreendimentos imobiliários, a inadimplência no comércio, a realização de novos negócios, o aumento da renda per capita são fatores que influenciam a arrecadação da serventia.
Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça recomenda a reestruturação periódica. E, no caso do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, determinou a reestruturação como condição antecedente ao próximo concurso público.
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