Coluna Vitor Vogas
O quanto Casagrande está nas mãos da bancada conservadora na Assembleia?
Alerta foi aceso pelo episódio da sanção tácita do governador à nova lei estadual que obriga professores do Espírito Santo a pedir autorização dos pais para realizar “atividades pedagógicas de gênero” (uma concessão sem precedentes à ala evangélica). Coluna analisa

Casagrande recebe os membros da atual Mesa Diretora, no Palácio Anchieta, após eleição na Ales (03/02/2025). Foto: Hélio Filho
O episódio da sanção tácita do governador Renato Casagrande (PSB) à nova lei estadual que obriga professores do Espírito Santo a pedir autorização dos pais para realizar “atividades pedagógicas de gênero” dá muito o que pensar do ponto de vista político. Mostra, no mínimo, que o governador está mais refém da bancada conservadora da Assembleia Legislativa (Ales) do que poderíamos imaginar. E muito mais predisposto a fazer concessões a essa numerosa bancada do que se supunha, conforme o ano eleitoral se acerca e a tensão pré-eleitoral se eleva.
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Casagrande tem um governo a encerrar (entregando-o a Ricardo Ferraço) e um projeto eleitoral a cumprir: eleger-se senador e fazer seu sucessor na pessoa do vice-governador. Precisa não só do apoio dos deputados da direita conservadora na Assembleia, mesmo aqueles mais xiitas, para seguir obtendo a aprovação dos projetos mais estratégicos para o Executivo na reta final do mandato como almeja o apoio eleitoral de tais deputados para Ricardo. Dentro desse contexto, a última coisa que deseja é se indispor com parlamentares da base, ou “quase da base”.
Aliás, cumpre registrar: fala-se tanto em “governo de esquerda”, mas a maior parte da base aliada no Legislativo Estadual é composta, justamente, por deputados conservadores. Eles são a maioria em plenário. E formam a maioria da base governista.
Mas a concessão política desta vez passou do ponto. Deu origem a uma aberração legal. E a uma revolta fundada entre os professores em atividade do Espírito Santo, tanto os da rede pública como os da privada – todos alcançados pela nova lei em questão. Esta é oriunda de projeto do deputado Alcântaro Filho (Republicanos), expoente da bancada evangélica ultraconservadora na atual legislatura. Sua redação foi amplamente detalhada aqui.
A lei é inconstitucional. Gritantemente inconstitucional.
O primeiro e mais óbvio problema: conforme a divisão das competências dos Poderes, das esferas e dos agentes políticos, consagrada pela Constituição Federal, Estados não podem legislar sobre diretrizes e bases da educação. Simples assim. Trata-se de legislação federal. Significa dizer que nem mesmo o Governo do Estado tem competência para legislar sobre o tema. Muito menos deputados estaduais.
Por esse e outros motivos, tais como a liberdade de cátedra e o direito de aprender (inclusive sobre os temas agora vedados), a lei fere a Constituição Federal (1988), a Constituição Estadual (1989), o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a Lei de Diretrizes e Bases (1996), o Plano Nacional de Educação (2014), o currículo oficial da Secretaria de Estado da Educação (Sedu) e a jusrisprudência do STF, que já estabeleceu: estados e municípios não podem editar leis que impeçam discussões escolares sobre assuntos como diversidade sexual e igualdade de gênero.
Durante a tramitação na Assembleia, os três procuradores que opinaram sobre o projeto, após detido exame jurídico, foram unânimes em classificá-lo como inconstitucional, apontando uma série de vícios formais na iniciativa de lei. Fiquemos com um trecho conclusivo do parecer técnico lavrado pelo procurador-adjunto, Gustavo Merçon:
“[…] trata-se de ausência de competência legislativa do próprio Estado do Espírito Santo para editar lei sobre a matéria. Na divisão de competência estabelecida pela Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, inc. XXIV da CF)”.
Como tem ocorrido com frequência, na votação acelerada em plenário, os argumentos técnicos foram ignorados. Já no âmbito do governo, depois que o projeto foi remetido ao Palácio Anchieta, a Sedu foi consultada, por se tratar de tema afeto à educação. Como ele próprio afirmou à coluna, o secretário Vitor de Angelo opinou contrariamente ao projeto.
Não conseguimos obter o parecer da Procuradoria-Geral do Estado (PGE). Segundo a assessoria do órgão, o documento está sob sigilo – o que, por si, já diz muito. Custa muito imaginar que os procuradores do Estado, no estrito cumprimento de seu dever, tenham deixado de apontar as irregularidades do projeto.
Não obstante todo o exposto acima, Casagrande preferiu… deixar passar. Em vez de vetar o projeto devolver a bomba para a Assembleia, deixou estourar o prazo, restando ao presidente do Legislativo, Marcelo Santos (União), o dever de promulgar a nova lei. Note-se: em casos assim, o chefe do Legislativo não tem nem escolha. A Constituição Estadual não deixa dúvida: “Decorrido o prazo de quinze dias, o silêncio do Governador do Estado importará sanção”.
A pergunta que grita, então, é: por quê? Por que Casagrande deixou passar tal anomalia?
Só há uma resposta possível, e é aquela dada acima: “contingências políticas”. O governador do Estado não quis contrariar a robusta bancada conservadora, nem o eleitorado representado por ela.
Mas uma decisão como essa tem um custo – inclusive político. Ganha-se por um lado, perde-se por outro. O governo assim agrada – ou deixa de descontentar – a bancada evangélica e parte do eleitorado idem. Mas ataca, solidariamente, um universo de profissionais da educação, voltando a categoria contra o próprio governo. Neste caso, deixar passar o ataque é ser cúmplice do ataque, ou, no mínimo, conivente. A não tomada de posição já é uma tomada de posição.
No entender deste colunista, a decisão é bem ruim. Acima, nem adentramos no mérito da nova lei, mas seu teor, com cheiro acre de censura, é péssimo para todos que acreditam numa educação plural e inclusiva, voltada para o combate a toda forma de discriminação e para a formação de cidadãos capazes de respeitar as diferenças, sob uma perspectiva de valorização dos direitos humanos.
A nova lei reforça preconceitos. Distancia as famílias das escolas. Acentua ruídos, desentendimentos e desconfianças entre pais e educadores. Estigmatiza professores, contribuindo para sua aviltamento e sua desvalorização, para a construção de uma imagem distorcida dos mestres como vilões, em vez de aliados dos pais na educação dos seus filhos.
A emenda de Alcântaro
O projeto foi aprovado na Assembleia e promulgado com uma emenda crucial apresentada pelo próprio autor. O texto original já especificava uma relação de punições “em caso de descumprimento da ordem dos pais”, as quais iam (pasmem) de multas pesadas para os professores até a cassação da licença de funcionamento da escola em questão. A redação original dá uma ideia da dimensão, beirando as raias do absurdo, a que pode chegar a cruzada de perseguição aos professores – se não houver quem a freie.
Alcântaro, porém, dispôs-se a emendar esse artigo, deixando a cargo do próprio Executivo a definição das “penas aplicáveis”. O governo tem 90 dias para fazê-lo, o que lhe dá margem de manobra. Poderá empurrar tudo com a barriga ou, no fim, estabelecer penas simbólicas – o que, na prática, tornará inócua a “Lei Antigênero”. Isso pode ter sido sopesado na opção pela vista grossa.
Mas o estigma ficará. A lei agora existe. Está no ordenamento jurídico estadual. Oficialmente, deve ser cumprida.
Na letra fria da lei, o Espírito Santo agora é um estado – quiçá o único do país – em que uma professora terá de pedir o aval dos pais se quiser perguntar aos seus alunos se eles concordam que uma mulher ganhe menos que um homem para exercer o mesmo cargo na mesma empresa.
Afinal, qual é o real tamanho da base de Casagrande na Ales?
O governo Casagrande tem maioria folgada na Assembleia? Sim e não. Normalmente, sim. Eventualmente, não. Depende do teor do projeto e do tema em discussão. Quando se trata da pauta de costumes, a força numérica da base do governador costuma se diluir bastante.
Na verdade, grande parte dos deputados que se consideram da base governista são do campo mais conservador. Isso apesar de o próprio Casagrande ser um governador, grosso modo, de centro-esquerda. Dentre os conservadores da base de Casagrande, há, inclusive, muitos evangélicos (Vandinho, Gandini, Hudson Leal, Bispo Alves…).
Quando se trata de temas mais sensíveis ao eleitorado desse campo – temas que tocam de algum modo na agenda de costumes, “família”, “valores cristãos” etc. –, muitos desses deputados simplesmente não votam com o governo. A base real se atrofia, a maioria fica muito estreita, e o Palácio Anchieta precisa contar cada voto. Mais de uma vez, o governo já se viu em apuros, por exemplo, para garantir a manutenção de vetos apostos por Casagrande a projetos apresentados por conservadores da Assembleia e aprovados a toque de caixa, mas claramente inconstitucionais.
Hoje, opositores mesmo, praticantes, só existem três, todos eles da bancada do PL: Callegari, Polese e Capitão Assumção (mas este último, frise-se, tem pegado leve com o governo, bem diferentemente do mandato passado). Em tese, então, o governo goza de maioria ampla na Casa… Mas nem sempre é bem assim. Quem manda mesmo na Assembleia, hoje, são os conservadores de direita, no plenário mais conservador do Espírito Santo em muito tempo, saído das urnas em 2022.
Para fins explanatórios, se dividirmos os 30 deputados atuais em grupos de cinco, teremos seis blocos: 6 x 5 deputados = 30 deputados. São seis peças de montar, como num jogo de Lego.
Quando se trata de matéria não envolta em grande polêmica, o governo possui, tranquilamente de 20 a 25 deputados. Sua base, então, é formada por quatro ou cinco dos seis blocos (de 4/6 a 5/6). É maioria folgada do plenário. Se o governo manda para a Casa um projeto para criar um órgão para atrair investimentos, ou pedindo autorização para contrair um empréstimo, o projeto será aprovado, sem dificuldades, por essa margem.
Mas, se o que está em votação, por exemplo, é o veto a um projeto inconstitucional que proíbe “invasores de terra” de receber benefícios do governo e participar de concursos públicos, aí os votos seguros do governo despencam criticamente. Os blocos passam a ser no máximo quatro, quiçá três (4/6 ou somente 3/6 do plenário). Em vez de ter assegurados de 20 a 25 votos, o governo passa a ter de 20 a 15, talvez menos – ou seja, menos da metade.
Flerta perigosamente, então, com a perda da maioria absoluta do plenário. Precisa contar com a maioria simples, negociando voto a voto – e se beneficiando, por exemplo, de discretas “saidinhas do plenário” no momento da votação. Em pelo menos uma ocasião neste mandato, o governo foi “socorrido” a olhos vistos pelo presidente Marcelo Santos, que procedeu a rito e contagem sumários e rapidamente declarou o “veto mantido”.
Dessa vez, nem veto houve.
Alcântaro Filho
O próprio Alcântaro é um exemplo da situação política sui generis, meio esquizofrênica, que é a relação do atual governo com grande parte de sua base.
O deputado às vezes vota com o governo, participa de entregas em seu reduto (Aracruz), reconhece méritos na administração de Casagrande, mas diverge do governo em tudo o que diz respeito a seus “valores cristãos”.
Adicionalmente, antes da promulgação da lei, Alcântaro vinha fazendo duras críticas em plenário a Ricardo Ferraço, por “uso da máquina em pré-campanha”, e defendendo a união dos dois principais concorrentes eleitorais do vice-governador: os prefeitos Arnaldinho Borgo (sem partido), de Vila Velha, e Lorenzo Pazolini (Republicanos), de Vitória.
Atenção: vem mais por aí…
Na mesma linha desse projeto que agora virou lei, há muitos outros na fornalha, tramitando na Assembleia, muitos deles propostos pelo mesmo autor. A vista grossa de Casagrande nesse caso há de encorajar a bancada mais conservadora.
Vale manter a atenção para como se portará o governador em casos similares daqui para a frente, na linha de chegada de seu governo.
O precedente foi aberto.
