IBEF Academy
O Historicismo Jurídico e o Estado Democrático de Direito
Os desafios para a manutenção dos direitos naturais perante o Estado dotado de prerrogativas divinas
Muitos se espantam com o agigantamento do aparato estatal na sociedade contemporânea, mas poucos compreendem seus fundamentos. Por trás da confusão dos conceitos “Estado de Direito” e “Estado Democrático de Direito” esconde-se uma realidade muito mais profunda sobre como o Estado moderno vê a si mesmo não como uma instituição voltada para a satisfação dos interesses do povo e a promoção do bem comum, mas como um ser vivo, dotado de vontade própria e poder coercitivo.
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A ideia do “Estado de Direito” surgiu com o liberalismo. A necessidade de impor limites jurídicos à atuação do poder soberano, que era a marca dos governos absolutistas, conduziu à criação de conceitos como “cultura da legalidade”, “neutralidade”, “imparcialidade”, etc. Basicamente, o Estado serviria como um mediador entre os particulares, regulando as relações jurídicas e decidindo nos eventuais conflitos de interesse na sociedade. Os homens, dotados de direitos naturais, possuiriam um fim em si mesmo e seriam livres para tomarem as decisões que mais lhe aprouverem. Estes direitos são garantias perante o poder estatal, impedindo a invasão indiscriminada na autonomia individual. É essa a premissa básica do Estado de Direito: “viva e deixe viver”.
Hegel, um dos fundadores da Filosofia Ocidental, foi o responsável por inverter esta lógica. Hegel concebia o papel do Direito como “a encarnação da moral comunal que transcende qualquer moral privada”.¹ O Estado não é mais visto como uma construção formal, mas é elevado à categoria de um ser vivo, tal como um indivíduo, dotado de vontade e racionalidade própria, uma espécie de “organismo vivente”. Em seu livro “Philosophy of Law”, Hegel chega a descrever o Estado como “a manifestação do Divino na Terra” ou “a marcha de Deus pelo Mundo”.² Tal movimento de sacralização do Estado ficou conhecido como “Historicismo Jurídico”.
Augusto Zimmermann comenta que “Nesse historicismo jurídico, o Volk (povo) incorpora a Mente Eterna como encarnação de Deus no tempo e no espaço, embora se manifeste apenas pelo poder do Estado.”³ O jurista Otto von Gierke, discípulo de Hegel, aprofunda esta ideia, ao afirmar que: “O Todo não pode estar dentro de nós porque somos apenas partes do Todo. Indiretamente podemos deduzir (…) a conclusão de que os Todos Sociais têm uma natureza corpóreo-espiritual”.¹ O Estado passa, portanto, a ter prerrogativas divinas.
Nessa perspectiva, o papel do indivíduo é reduzido a nada. É uma mera célula no corpo do único ser real, o Estado. E o seu papel deixa de ser apenas permitir a coexistência pacífica dos indivíduos, mas o de tomar um papel ativo na transformação social, utilizando-se dos homens como simples peões num jogo de xadrez prontos para serem sacrificados em nome da vontade estatal, sempre reta e perfeita. A ideia de direitos naturais inatos perde sua significância e o poder soberano não encontra mais obstáculos jurídicos para o seu aumento.
E é esta a verdadeira essência por trás do termo “Estado Democrático de Direito”: um Estado que possui uma vontade própria, uma finalidade social a ser alcançada, concebida na mente iluminada daqueles capazes de enxergar o processo histórico se desenvolvendo e que, portanto, são legitimados a guiar o povo nessa jornada em vista da utopia política perfeita. Cabe aos indivíduos tomarem consciência desse processo e perceber que as constantes violações dos direitos e garantias fundamentais possuem raízes muito mais profundas, engajando-se, assim, na luta por seus direitos.
Este texto expressa a opinião do autor e não traduz, necessariamente, a opinião do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Espírito Santo.
*Carlos De’Carli Filho é estudante de Direito da FDV e membro do IBEF Academy.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do ES360.
