Coluna Vitor Vogas
Casagrande responde: por que não vetou lei que ameaça professores?
Lei Estadual 12.479/2025 foi promulgada após sanção tácita do governador. Proibindo educadores de tocarem em questões relacionadas a gênero sem a prévia autorização dos pais, nova norma é clamorosamente inconstitucional, além de representar riscos reais para professores e para a própria educação

Sala de aula. Foto: Divulgação/Governo do Espírito Santo
O governador Renato Casagrande (PSB) enfim responde a uma pergunta que não cala desde o último dia 21: por que não vetou o projeto de lei que, na prática, proíbe professores e professoras de abordar questões relacionadas a gênero em sala de aula, em qualquer escola, pública ou privada, do Espírito Santo, senão com consentimento dos pais? Segundo o governador, ele preferiu não vetar o projeto por orientação da Casa Civil – atualmente comandada pelo secretário Junior Abreu (PDT). Trata-se da secretaria responsável pela articulação política do Governo do Estado, principalmente com os deputados estaduais. Um órgão político.
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“Tive a orientação da Casa Civil para poder deixar a Assembleia cuidar desse tema, desse assunto. Foi isso que fiz. Mas eu já vi também que já teve gente aí, teve entidade que está movendo ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade]. Então foi essa a orientação da Casa Civil”, afirmou Casagrande.
A nova lei permite que os pais e responsáveis proíbam a participação de seus filhos ou dependentes em “atividades pedagógicas de gênero”, realizadas em instituições de ensino públicas e privadas do Espírito Santo e definidas como “aquelas que abordam temas relacionados à identidade de gênero, à orientação sexual, à diversidade sexual, à igualdade de gênero e a outros assuntos similares”.
Nos termos da lei, sancionada tacitamente pelo governador, as escolas só poderão abordar esses temas mediante a prévia autorização por escrito dos pais, “sob pena de serem responsabilizadas civil e penalmente, conforme o caso”.
De autoria do deputado Alcântaro Filho (Republicanos), o projeto de lei em questão foi aprovado pela Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales), em votação simbólica, no fim de junho – apesar de todos os pareceres de procuradores da Casa terem sido contrários, sublinhando a inconstitucionalidade da proposição. O projeto, então, seguiu para o gabinete do governador, que, nos termos da Constituição Estadual, teve 15 dias para sancioná-lo ou vetá-lo.
Durante a tramitação, segundo o próprio secretário estadual de Educação, Vitor de Angelo, a Sedu foi consultada e opinou contrariamente à sanção da lei. Perguntamos a Casagrande qual foi o parecer técnico da Procuradoria-Geral do Estado (PGE). Ele disse achar que foi contrário à sanção (isto é, a favor do veto). “A PGE… não me lembro aqui, mas acho que foi parecer contra. Mas a orientação política da Casa Civil foi essa que eu falei”.
Não tivemos acesso ao parecer – a assessoria da PGE informou que está sob sigilo –, mas podemos afirmar: como órgão de assessoria jurídica, no estrito cumprimento do dever de fazer o exame técnico dos projetos, a PGE dificilmente teria deixado de apontar as ilegalidades (aliás, flagrantes) dessa iniciativa de lei. A fala do governador evidencia: na decisão final – segundo ele, por orientação da Casa Civil –, prevaleceu o critério político (como analisamos melhor aqui).
O governador “lavou as mãos”, preferindo não apor veto ou sanção. Nesse caso, decorrido o prazo de 15 dias sem um posicionamento do chefe do Executivo, coube ao presidente da Assembleia, Marcelo Santos (União), promulgar a nova lei, como ordena a Constituição Estadual. Segundo a lei maior do Estado, isso corresponde à “sanção tácita” (silenciosa, que dispensa palavras) por parte do governador. Assim, o projeto de Alcântaro se transformou na Lei Estadual 12.479/2025, agora no ordenamento jurídico do Estado do Espírito Santo.
Nos termos da nova lei, aprovada na Assembleia, promulgada e publicada no dia 21 de julho no Diário Oficial do Estado, cabe agora ao Poder Executivo regulamentá-la. Em prazo de 90 dias, o Governo do Estado deverá estabelecer as “sanções cabíveis” aos professores e às escolas que descumprirem as “ordens” dos pais e responsáveis (sim: isso está mesmo no texto legal). Perguntamos, então, a Casagrande, como isso funcionará.
“Aí a equipe da Secretaria de Educação, junto com a Procuradoria-Geral do Estado, vai apresentar uma proposta para mim. Não tenho ainda nenhum início de trabalho nessa direção. Acho que tem aí ações diretas [de inconstitucionalidade] que o Poder Judiciário vai ter que julgar nesse tempo de três meses.”
Como se percebe, o próprio governador parece agora se agarrar ao Judiciário, esperando que o terceiro Poder desta história anule o mais rápido possível os efeitos da nova lei, por inconstitucional, antes que seu governo precise enfrentar o pepino (sejamos francos: criado pelo próprio governo) de “fixar as punições cabíveis aos professores” (uma verdadeira bizarrice). Sejamos francos 2: o governador espera agora que a Justiça corrija o equívoco dele mesmo e de sua equipe. É o que resta a ele e a todos que se preocupam com os efeitos deletérios da lei para a própria educação.
À Justiça, não faltarão oportunidades para fazer essa devida correção. Desde a semana passada, como já era esperado, a Lei 12.479/2025 suscitou não só uma justificada revolta entre educadores, sindicatos e organizações que representam minorias como também ensejou uma chuva de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), tanto no Tribunal de Justiça do Estado (TJES) como no Supremo Tribunal Federal (STF).
Dois partidos já tomaram tal iniciativa: o PSol, representado na Assembleia pela deputada Camila Valadão (que votou contra, na acelerada votação em plenário), e o PT, por meio da direção estadual e da direção nacional. Algumas ONGs fizeram o mesmo junto ao STF, entre elas a Aliança Nacional LGBTI+, a Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH) e a Fonatrans.
Na última terça-feira (29), até o Ministério Público de Contas (MPC) pediu a suspensão imediata da norma ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES). Segundo o órgão, a Lei 12.479/2025 apresenta vícios de inconstitucionalidade, compromete a liberdade pedagógica e pode gerar prejuízos à gestão da educação pública. O pedido será analisado pelo conselheiro Rodrigo Chamoun.
Opinião do colunista: ilegalidade é só o primeiro problema
Antes de tudo, é preciso dizer: a nova lei estadual, que ameaça todos os educadores do Espírito Santo em sua atividade docente, é clamorosamente inconstitucional. Não é preciso ser um gênio do Direito Constitucional para perceber, logo na primeira leitura, as flagrantes irregularidades do projeto surpreendentemente transformado em lei, a começar pelo acintoso vício de iniciativa.
Qualquer segundanista do pior curso de Direito sabe disto: deputados estaduais não podem legislar sobre currículo educacional – muito menos meter-se a dizer o que professores podem ou não podem ensinar aos seus alunos na rede escolar. Trata-se de legislação federal; matéria, portanto, de competência exclusiva da União. Deputados federais e senadores podem legislar sobre o tema. Deputados estaduais, não.
A lei estadual em questão fere afrontosamente a Lei de Diretrizes e Bases (1996) – uma lei maior, federal. Agora, no Espírito Santo, professores não podem abordar, sem o consentimento expresso dos pais, alguns temas que fazem parte do currículo oficial da rede estadual (Sedu), o qual se inspira no Plano Nacional de Educação (PNE, de 2014), resultante, por sua vez, de amplo debate social entre especialistas e agentes diretamente envolvidos com o tema da educação e integrados ao ecossistema escolar. É preciso frisar este ponto: agora, na letra fria da lei, professores em atuação no Espírito Santo correm o risco de ser punidos por tratar de temas previstos nos currículos oficiais, temas que eles, portanto, na verdade precisam abordar. Está estabelecido o paradoxo.
Poderíamos prosseguir aqui a apontar inconsistências formais da nova lei – sublinhadas, aliás, por todos os procuradores da própria Assembleia. Como previmos aqui desde o início, ela já nasce condenada a ser derrubada, em qualquer tribunal, na análise da primeira ADI, até porque já há jurisprudência farta do STF sobre o tema: leis municipais e estaduais simplesmente não podem impedir discussões sobre questões de gênero na escola. Só por isso, a nova lei é uma excrescência, antes mesmo de entrarmos no seu mérito.
Mas entremos agora no mérito da iniciativa, pois é aqui que se encontram os pontos mais graves.
Se nos atemos à ementa e ao primeiro artigo da lei, deparamos com algo muito vago: “vedar a participação de seus filhos ou de seus dependentes em atividades pedagógicas de gênero”.
Sem trocadilho, dá-se ao complexo conceito de “gênero” um tratamento por demais genérico. O que o deputado proponente estaria a chamar de “atividades de gênero”? Uma aula de Língua Portuguesa sobre gêneros textuais porventura se encaixaria na definição?
Mas então vem o artigo segundo, no qual encontramos uma tentativa de delimitação… E é aí que mora a grande armadilha do texto.
Mais um dos muitos projetos apresentados país afora nos últimos anos na linha “Escola sem Partido”, “Escola sem Doutrinação” etc., a iniciativa de Alcântaro deve ser compreendida dentro do contexto da cruzada de parlamentares conservadores, majoritariamente evangélicos, contra o que classificam, de maneira genérica (e equivocada), como “ideologia de gênero”.
Quando você ouve com atenção os discursos de alguns desses legisladores, percebe de pronto que, do ponto de vista deles, o conceito pode ser bastante elástico: sob o rótulo “ideologia de gênero”, cabe tudo o que não se coadune com os dogmas religiosos professados por tais parlamentares, subsumidos no que eles mesmos definem como os “valores cristãos”.
Mas o projeto em questão não fala, como tantos outros já derrubados na Justiça, de “ideologia de gênero”. Impetuosamente, avança sobre conceitos bem mais específicos: “identidade de gênero”, “orientação sexual”, “igualdade de gênero”. Tudo isso agora é vedado, até segunda ordem (dos pais). Sem falar nos tais “outros assuntos similares” (???).
Alguns exemplos práticos
A letra da lei, no papel, pode parecer por demais distante da realidade. É mais fácil entender seus perigos quando passamos a exemplos palpáveis.
Se uma professora propuser, à sua turma de ensino médio, uma discussão sobre “equidade de gênero”, especificamente sobre a importância de medidas para contratação e promoção de mulheres em empresas privadas e no poder público, acaso estará a promover a “ideologia de gênero” e a “doutrinar os nossos filhos” valendo-se de seu público cativo? Não creio. Mas sem dúvida estará a tratar, fundamentalmente, do tema da “igualdade de gênero”… E isso agora fica expressamente vedado, salvo mediante autorização prévia dos pais. É muito grave.
Mais grave ainda se imaginarmos outros exemplos.
Vamos supor que, em determinada escola de ensino médio de uma comunidade periférica, muitos alunos vivenciem casos de violência doméstica, rotineiramente, no próprio ambiente familiar. Vamos supor que agressões verbais, físicas e psicológicas contra mulheres sejam uma constante no cotidiano daquela comunidade… A professora sabe disso, testemunha diariamente como o problema extraclasse afeta não só o comportamento como inclusive o desempenho de seus alunos. Acaso tal professora não poderá tratar do tema, espontaneamente, com sua turma, sob o risco e o medo de ser punida se assim fizer?
Agora suponhamos que, em outra escola, do outro lado da cidade, esta particular e com alunos de famílias de alta renda, seja constatada uma “epidemia de bullying”, de cunho notadamente homofóbico. Suponhamos que, nessa mesma escola, determinado aluno, por sua aparência e comportamento divergente da norma (não heteronormativo), seja implacavelmente perseguido por colegas, vivendo uma rotina insuportável no ambiente escolar.
O corpo de educadores não poderá fazer nada a respeito (palestras de conscientização, campanha antibullying, debates em sala de aula), a menos que todos os pais e responsáveis dos alunos concordem? E se só uma parte concordar? Os filhos dos discordantes terão de ser separados no momento da atividade? E se for aparteado quem mais precisava refletir sobre aquela questão???
Agora suponhamos que essa mesma escola nada faça e o bullying siga escalando até que, no ápice, aquele rapaz perseguido sofra agressões físicas de colegas no recreio ou na saída da escola (como tão comumente acontece). O pedagogo ou professor daquela turma não poderá abordar imediatamente o fato, nem tocar na questão da discriminação por orientação sexual ou por identidade de gênero? À luz da nova lei, a resposta é não: por incrível que pareça, ele não poderá tocar no tema. Ficará de mãos atadas. Mas, do ponto de vista ético, ele não só poderia como deveria fazê-lo.
Aliás, a maior perversidade da lei está no fato de dizer que os mestres não podem fazer o que eles, na realidade, devem fazer, pela própria responsabilidade inerente à sua missão de educar.
Caça às bruxas contra os educadores
A lei tem outros problemas de natureza ética, política e pedagógica. Ajuda a reforçar a sanha punitiva e persecutória contra os professores em geral, jogando as famílias contra esses profissionais, tomando-os por vilões em vez de aliados dos pais na educação das nossas crianças e adolescentes. Mais uma vez, o professor é colocado no papel de lobo em pele de cordeiro, de alguém sempre ponto a “doutrinar e desvirtuar nossas crianças”, “desencaminhá-las”, “erotizá-las precocemente”. Eis o subtexto do projeto tornado lei.
Isso só faz distanciar os pais dos mestres, as famílias da comunidade escolar, quando o ideal seria que o processo educacional se desse em ambiente de integração e mútua colaboração – aberto a críticas e a constante aperfeiçoamento, mas sem esse tipo de censura e desconfiança.
No lugar dessa incansável caça às bruxas, impulsionada por ideias paranoicas, quem tem legítimas preocupações poderia buscar dialogar mais, entender melhor o currículo, a proposta pedagógica da escola. Assim como médicos estudam para atender a pacientes, professores estudam (e muito) para estar ali a lecionar e educar, em que pesem serem tão desvalorizados em um país como o nosso, em contraste com outros muito mais desenvolvidos – talvez exatamente por isso. Merecem mais respeito e menos desconfiança.
Além disso, assim como o ensino em uma escola é oferecido por pessoas que estudaram para dar aulas, currículos são elaborados por pessoas que dedicaram a vida à educação (e a pesquisar a educação). Causa espécie que tantos deputados se sintam em condições de substituir especialistas na área, arrogando-se uma competência que não possuem e o direito de determinar o que os professores devem ou não abordar em sua própria área de saber e atuação.
Há, ainda, alguns fios soltos, lacunas práticas deixadas pela lei: quem vai fiscalizar e determinar que esse ou aquele professor tenha descumprido a norma? Como será operacionalizada, no dia a dia, essa dinâmica de pedir autorização dos pais para tudo?
Por fim, não estranha, espanta nem admira que, numa Assembleia dominada por deputados altamente conservadores, projeto semelhante tenha passado. O que causa mesmo espanto é que o governador do Estado, por “orientação política”, tenha feito vista grossa para projeto tão manifestamente contrário aos profissionais da educação, incluindo os do próprio Estado… por maior que seja a dependência política do governo em relação a uma base parlamentar formada majoritariamente por conservadores como Alcântaro.
Aliás, tal dependência atualmente, pelo jeito, é bem maior do que poderíamos supor…
