Coluna Vitor Vogas
Aprovada distribuição gratuita de remédios à base da Cannabis no ES
Assembleia aprovou nesta segunda política de fornecimento de medicamentos à base do canabidiol (“maconha medicinal”) pelo SUS. Projeto partiu de bispo
A Assembleia Legislativa aprovou em sessão plenária na tarde desta segunda-feira (23), em regime de urgência, a implantação de uma política de fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol, substância extraída da planta da maconha, na rede pública de saúde estadual, para pacientes que sofrem de dezenas de doenças. Proposto pelo deputado Bispo Alves (Republicanos) em fevereiro, o projeto de lei foi aprovado por unanimidade e agora segue para sanção ou veto do governador Renato Casagrande (PSB).
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Inspirado em lei sancionada em janeiro em São Paulo pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o projeto visa democratizar e desburocratizar o acesso à “Cannabis medicinal” no Espírito Santo para pacientes que necessitam fazer uso dos medicamentos à base da substância, mas não têm condições de pagar por tais remédios porque são importados e caros.
Como se trata de tema cercado de muito preconceito e desinformação, o primeiro ponto a se enfatizar desde o início é que o projeto trata exclusivamente do uso terapêutico e medicamentoso de algumas substâncias encontradas na Cannabis sativa (nome científico da planta da maconha). Não tem nada a ver com o uso recreativo da maconha – que é toda uma outra discussão.
Também chamado no meio médico de CBD, o canabidiol é uma das muitas dezenas de substâncias químicas canabinoides encontradas na Cannabis sativa. Constitui boa parte da planta, chegando a representar mais de 40% de seus extratos.
Na Assembleia Legislativa, o autor do projeto surpreendeu. Em seu primeiro mandato político no Espírito Santo, Benedito Alves, o Bispo Alves, é pastor evangélico licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e já foi deputado estadual no Rio de Janeiro. Seu partido, o Republicanos, se intitula “o mais conservador do Brasil”. Mas não nesse tema, esclarece o autor da matéria, por se tratar unicamente do uso medicinal de substâncias da planta, com benefícios cientificamente comprovados.
Ao projeto do Bispo Alves foi juntado outro com a mesma finalidade, apresentado por um segundo deputado conservador de direita, o Delegado Danilo Bahiense (PL). “Um bispo e um delegado de polícia defendendo a mesma coisa”, não deixou passar, durante a votação, o presidente da Assembleia, Marcelo Santos (Podemos).
O projeto pôde ser votado nesta segunda-feira após aprovação, no último dia 16, de requerimento de urgência apresentado pelo deputado Coronel Weliton (PTB), líder do bloco de direita formado por PTB, PL e Republicanos – em mais uma evidência de que o tema uniu progressistas e conservadores na Assembleia.
Antes da deliberação em plenário, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) já havia aprovado, por unanimidade, parecer pela constitucionalidade da proposição, com uma emenda. A CCJ é formada, entre outros, pelos deputados Capitão Assumção (PL) e Lucas Polese (PL).
Na sessão desta segunda-feira, em reunião conjunta das comissões de Finanças e de Saúde, os membros dos dois colegiados aprovaram, também unanimemente, parecer do presidente da primeira, o vice-líder do governo, Tyago Hoffmann (PSB), favorável à aprovação da matéria.
Em seguida, o projeto foi submetido ao plenário, seguiu para aprovação da redação final na CCJ e, novamente, no plenário. Tudo foi aprovado por unanimidade.
Durante a votação, deputados chegaram a mencionar casos de familiares que têm sido pessoalmente beneficiados pelo tratamento à base de canabidiol. Bahiense citou uma irmã de 91 anos que sofre do Mal de Alzheimer. Tyago Hoffmann fez menção a uma criança em sua família que, por uma rara doença, tinha expectativa de vida de um ano. Graças ao tratamento com substâncias extraídas da Cannabis, já está com 12.
O próprio Bispo Alves decidiu protocolar o projeto – o primeiro apresentado por ele – por inspiração de um caso real vivido em sua família. “Tenho uma filha com um probleminha de saúde, que sentiu melhoras após passar a utilizar o medicamento. Não só ela, mas todas as pessoas que tomam”, contou ele em entrevista à coluna, publicada no dia 27 de fevereiro.
Após a aprovação do projeto em plenário, Marcelo Santos elogiou o Bispo Alves pela coragem, “num tema tão delicado”.
Além de agradecer aos colegas pela aprovação do projeto, Bispo Alves ressaltou a importância da iniciativa para a saúde pública do Espírito Santo:
“Esse projeto é de suma importância para garantir o acesso da população menos favorecida a esse tipo de medicamento. Eu sei a dificuldade que as pessoas que necessitam desses remédios enfrentam para garantir o uso desses medicamentos. O uso medicinal do canabidiol já foi aprovado pela Anvisa, ou seja, é cientificamente comprovada a sua eficácia para o tratamento de mais de 25 doenças crônicas. Dessa forma, a aprovação desse projeto é um grande avanço para a saúde pública do estado do Espírito Santo, ficando garantido o fornecimento gratuito no Sistema Único de Saúde dos remédios à base do canabidiol. Tenho certeza que todos nós estamos ganhando com a aprovação desse projeto.”
O que diz o projeto do Bispo
O projeto de lei apresentado pelo Bispo Alves “institui [no Espírito Santo] a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos formulados de derivado vegetal à base de canabidiol, em associação com outras substâncias canabinoides, incluindo o tetrahidrocanabidiol em caráter de excepcionalidade, pelo Poder Executivo nas unidades de saúde pública estadual e privada conveniada ao Sistema Único de Saúde – SUS”.
Além de facilitar o acesso à “Cannabis medicinal”, o projeto pretende popularizar informações corretas sobre o tema.
Um de seus objetivos específicos é “promover políticas públicas de debate e fornecimento de informação a respeito do uso dessas substâncias para fins medicinais através de palestras, fóruns, simpósios, cursos de capacitação de gestores e demais atos necessários para o conhecimento geral da população acerca dos benefícios desse tratamento, realizando parcerias público-privadas com entidades, de preferência sem fins lucrativos”.
A implantação da política prevista no projeto ficará a cargo da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa). Em caso de sanção por parte do governador, a Sesa terá 30 dias, a partir da publicação da lei, para criar comissão de trabalho com esse fim, incluindo técnicos e representantes de associações sem fins lucrativos de apoio e pesquisa ao canabidiol e de associações representativas de pacientes.
Se sancionada por Casagrande, a lei entrará em vigor 90 dias após a data de sua publicação.
A justificativa oficial
Na justifica do projeto, o Bispo Alves argumenta:
“Remédios à base de canabidibiol em associação com outras substâncias canabinoides, incluindo o tetrahidrocanabidiol, têm se mostrado cientificamente eficazes para o tratamento de alguns quadros de diversas doenças e síndromes, como a epilepsia refratária, convulsões, autismo, câncer, depressão, ansiedade, insônia, dependência química, dores crônicas, esquizofrenia, fibromialgia, náuseas, artrite, asma, síndrome de Dravet, síndrome de Tourette, Transtorno de Estresse Pós-Traumático, esclerose múltipla, glaucoma, estresse, inflamações, Parkinson e Alzheimer”.
O deputado ressalta que, apesar de tais medicamentos serem comprovadamente necessários no tratamento de muitos pacientes, são também inacessíveis para grande parte deles, por custarem muito caro.
“Especificamente, esse projeto tem por objetivo viabilizar o acesso para o tratamento com esses medicamentos, sem a necessidade de provocação do Poder Judiciário, que na atualidade surge como única alternativa para que seja possível a salvaguarda e a efetivação do direito ao acesso a esse tipo de tratamento. Cumpre salientar que o assunto vem sendo debatido no âmbito do Congresso Nacional, inclusive com a realização de audiências públicas para discutir o tema”, conclui o proponente.
Literatura médica: os efeitos benéficos
A literatura científica indica que o uso de medicamentos à base do canabidiol gera efeitos terapêuticos muito úteis no tratamento de várias doenças que atingem o sistema nervoso central do ser humano.
Uma série de estudos desenvolvidos nas últimas quatro décadas relatam evidências desse potencial terapêutico em pessoas que sofrem, por exemplo, de algumas desordens neurológicas e psiquiátricas, como psicose, esquizofrenia, ansiedade e doenças neurodegenerativas, como esclerose múltipla e doença de Hutington.
Em 2014, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias de crianças e adolescentes refratários aos tratamentos convencionais, por meio da Resolução CFM 2113/2014.
Na exposição dos motivos, os médicos responsáveis registraram que, diferentemente do principal canabinoide psicoativo na maconha – o delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC) –, o canabidiol não gera efeito psicotrópico, não produz euforia nem intoxicação, além de não gerar dependência química nem abstinência.
No ano seguinte, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a importação para o Brasil de produtos medicinais fabricados a partir da Cannabis sativa. Até hoje, porém, na ausência de legislação específica, pacientes brasileiros só podem fazer uso desses medicamentos importados mediante autorização judicial.
Hoje, segundo dados da Anvisa, mais de 100 mil pacientes no país realizam algum tipo de tratamento que requer o uso do canabidiol. Só em 2021, mais de 66 mil fármacos à base da Cannabis foram importados para o Brasil. Em cinco anos, a importação da “Cannabis medicinal” cresceu 15 vezes no país.
O uso medicinal e industrial do canabidiol já é regulamentado em aproximadamente 50 países.
No Brasil, quem deu o primeiro passo nessa direção foi o estado de São Paulo.
O projeto sancionado por Tarcísio
Único governador filiado ao conservador Republicanos, Tarcísio de Freitas sancionou, no dia 31 de janeiro, o projeto de lei 1180/2019, de autoria do deputado paulista Caio França (por sua vez correligionário do governador Renato Casagrande, no PSB). O projeto foi aprovado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) em 21 dezembro do ano passado, servindo de molde para o projeto apresentado aqui pelo Bispo Alves.
Com a sanção da pioneira lei, ficou instituída em São Paulo a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos formulados de derivado vegetal à base de canabidiol. A medida beneficia pacientes autistas, esquizofrênicos e portadores de doenças raras como o mal de Parkinson e outras patologias.
A lei estadual também estabelece que, excepcionalmente, o paciente terá direito à substância tetrahidrocanabidiol (THC) fornecida pelo Governo de São Paulo, nas unidades de saúde pública estadual e nas unidades privadas conveniadas ao SUS.
Na véspera da sanção da lei por Tarcísio, o deputado Caio França reuniu-se com o governador e mostrou-lhe uma petição com mais de 40 mil assinaturas.
“A substância é uma das mais de 50 ativas na planta e não tem efeito psicotrópico (não ‘dá barato’, ou seja, não provoca alterações da percepção em quem fuma). Basicamente, ao entrar na corrente sanguínea e chegar ao cérebro, ela ‘acalma’ a atividade química e elétrica excessiva do órgão”, justificou, à época, o autor do projeto à reportagem do portal Poder 360.
Apesar da liberação da Anvisa para a importação desses medicamentos desde 2015, tais remédios ainda são inacessíveis para grande parte da população, devido ao custo elevado. O valor médio por mês varia de R$ 1,5 mil a R$ 2 mil.
A lei de São Paulo também visa desburocratizar o acesso gratuito aos medicamentos, que já eram fornecidos pelo governo estadual, mas somente mediante decisões judiciais. De 2015 a 2019, o número de processos obrigando o estado de São Paulo a fornecer remédios e produtos derivados da Cannabis cresceu quase 18 vezes, como informou reportagem do Poder 360.
Logo após sancionar a lei que garante o fornecimento gratuito de medicamentos à base da Cannabis pelo SUS em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas se emocionou ao falar sobre um sobrinho que sofre de síndrome de Dravet, doença considerada rara e que causa convulsões no paciente.
Tarcísio contou que o sobrinho ganhou qualidade de vida a partir da utilização do canabidiol: “É duro ver uma criança convulsionar”.
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