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Coluna João Gualberto

Apocalipse nos trópicos

Apocalipse nos Trópicos revela, por meio do documentário de Petra Costa, o impacto do movimento evangélico na política e nas eleições brasileiras recentes

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O documentário Apocalipse nos Trópicos, dirigido por Petra Costa e lançado na Netflix, traça o impacto do fenômeno evangélico nas eleições brasileiras. Foto: Reprodução/Netflix

O documentário Apocalipse nos Trópicos, dirigido por Petra Costa e lançado na Netflix, traça o impacto do fenômeno evangélico nas eleições brasileiras. Foto: Reprodução/Netflix

Petra Costa, diretora premiada por outras realizações, lançou, pela Netflix, um documentário vigoroso e de ótima qualidade sobre o impacto do fenômeno evangélico nos campos político e eleitoral brasileiros. A produção traça a trajetória das eleições que levaram Jair Bolsonaro ao poder em 2018, seu mandato presidencial e, finalmente, sua derrota – jamais aceita – em 2022 para o atual presidente, Luís Inácio Lula da Silva.

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O fio condutor da narrativa de Petra é o papel dos evangélicos nesse contexto, começando pela unção de Jair Messias como candidato das direitas em 2018, processo que o levou ao poder. À opção majoritária desse setor por sua candidatura conservadora aliou-se o seu discurso claramente colado ao imaginário social dos evangélicos no Brasil. Esse fio condutor deixa muito clara a força desse segmento na construção de uma direita de novo formato.

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Sempre ressaltei o papel do discurso evangélico para a direita brasileira; acho mesmo que quem dá consistência e densidade ao movimento é o papel dos evangélicos. Na Argentina, por exemplo, onde eles não têm a mesma expressão do que no Brasil, o governo de direita de Millei tem que se apoiar muito mais em ações econômicas. Aqui não funcionou assim. A guerra cultural, o combate a um comunismo fantasioso, e quase inexistente nos dias atuais, foram a grande munição gasta na guerra contra a esquerda.

Os evangélicos votam por princípios, entram na cabine eleitoral com uma construção coletiva na cabeça, e votam a partir dela. É um dos poucos segmentos no Brasil que age assim e que pode, portanto, ser conquistado de forma mais ampla e genérica. Além disso, é um setor que se sujeita à liderança inconteste dos pastores, os quais, se não dirigem seus votos, dirigem muitas de suas escolhas morais, que acabam por determinar suas inclusões no mundo, daí resultando, obviamente, opções políticas.

Para dar materialidade a esse percurso eleitoral no seio dos evangélicos, Petra escolheu um ator privilegiado: Silas Malafaia. É certo que, ao lhe dar um protagonismo algo exagerado, faz com que ele sai um pouco maior do que realmente foi em 2018. Mas de uma coisa não temos dúvida: foram os pastores os maiores responsáveis pela ascensão de Jair Bolsonaro. Malafaia, em Apocalipse nos Trópicos, mostra como esses pastores midiáticos agiram para transformar um obscuro deputado federal de extrema direita em um dos maiores fenômenos eleitorais da história política brasileira.

Levando sua estupenda capacidade verbal, mesclada a práticas de convencimento através dos evangelhos para a cena política, Malafaia conseguiu ajudar a construir o mito, um novo messias na política brasileira. Ele afirmou, dois dias após a eleição de Bolsonaro, em sua presença, que ele era um representante dos “loucos, fracos, vis e desprezíveis” – numa linguagem claramente bíblica. Assim, ressaltou a ausência de qualidades que fez dele um eleito por Deus para ser um fraco entre os fortes, provavelmente como cada um dos evangélicos que ouviram tais palavras também assim se sentiram.

A posição da diretora do documentário é claramente a de quem denuncia a prática de manipulação da fé em favor de projetos pessoais de lideranças religiosas. Esse tom se expressa com força no filme e pode até criar rejeição por parte de alguns espectadores, mas não tira a força do que vemos na tela, nem tira a verdade nua e crua que nos é mostrada.

Outra questão que salta aos nossos olhos é que várias lideranças não foram retratadas no documentário e que, obviamente, as opiniões de Silas Malafaia não expressam todas as que existem no seio do movimento evangélico. Ele chega a ser quase caricato, de tanta ênfase que dá a seu poder e a sua capacidade de influência junto a Bolsonaro. Tudo o que o filme retrata, porém, tem cunho de verdade. Ademais, é sempre bom lembrar que cinema não é sociologia, não se trata de trabalho científico ou de investigação. É arte.

E, como arte, é convincente e mostra, de forma quase assustadora, como os bastidores do poder se movimentam no Brasil, como chegam ao STF e como uma certa consciência ingênua pode servir de massa de manobra para planos de poder que levam em conta elementos que desconhecemos. A quem não viu o filme, sugiro que veja, para construir seu próprio julgamento. É para isso, afinal, que serve a arte feita com responsabilidade: para provocar discussões e fazer avançar nossas reflexões sobre o Brasil.

João Gualberto

João Gualberto é professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA). Também foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018. João Gualberto nasceu em Cachoeiro do Itapemirim e mora em Vitória, no Espírito Santo. Como pesquisador e professor, o trabalho diário de João é a análise do “Caso Brasileiro”. Principalmente do ponto de vista da cultura, da antropologia e da política.

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