Coluna Vitor Vogas
Troca-troca: Machado de Assis explica a política capixaba atual
Recentes mudanças partidárias e surpreendentes guinadas políticas de Audifax, Neto Barros, Ramalho e outros mais são genialmente explicadas pelo Bruxo
Com o brilhantismo que marca sua obra literária, Machado de Assis foi um grande e arguto observador da cena política brasileira nas últimas décadas do Brasil Império e nas duas primeiras da República. Com o humor e a elegante ironia que lhe são tão peculiares, o Bruxo do Cosme Velho foi um cronista político de seu tempo não só em seus textos jornalísticos, mas também em alguns de seus contos e romances. Um deles é Esaú e Jacó (1904).
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Penúltimo romance machadiano, a obra conta a história de Paulo e Pedro, irmãos gêmeos antagônicos nas paixões políticas, mas apaixonados pela mesma moça, Flora. Ambientada em meados dos anos 1880, a trama é situada nos últimos e agonizantes momentos do regime monárquico no Brasil, antes de a Família Real ser mandada de volta a Portugal e o país se tornar uma República, em 1889. Por trás do desenvolvimento do enredo romântico, o pano de fundo é o cenário político da época.
No Parlamento, o Brasil então estava dividido entre conservadores e liberais, que se alternavam no poder de influenciar os rumos do país. O pai de Flora, Batista, era um típico político carreirista, filiado à ala dos conservadores, mas sem convicções muito sólidas. O que mais lhe importava mesmo eram as relações estabelecidas com os colegas de partido, com vistas a galgar a uma posição de destaque: a presidência de uma província, quem sabe até um ministério…
Os planos do arrivista Batista sofrem um sobressalto quando a correlação de forças subitamente se inverte nos estertores da Monarquia: os liberais (a priori, seus adversários) retornam à situação, deixando-o, assim, muito mais longe do poder. Com ele de volta ao fim da fila, a tão sonhada nomeação teria de aguardar mais alguns anos. Só lhe resta se resignar.
Eis que Dona Cláudia, sua astuta esposa e confidente, tem uma repentina inspiração. Fazendo as vezes de “conselheira política” do marido, ela expõe a Batista a sua ideia, que lhe cai como uma revelação:
Na verdade, diz Cláudia ao marido, ele nunca tivera nada de conservador. Sempre fora, isto sim, um “liberalão”.
Seduzido pelos argumentos da mulher (e, mais ainda, pela expectativa de poder no curto prazo), Batista passa os instantes seguintes em conflito interior, dividido entre o oportunismo e o que hoje chamaríamos de “fidelidade partidária”. De um lado, a conveniência de trocar de partido e campo ideológico como quem troca de roupa para poder ascender mais rapidamente na carreira política; do outro, os resquícios morais que o impeliam a conservar a lealdade ao partido e aos antigos companheiros.
Acompanhemos o desenrolar da cena no texto original de Machado (com grifos nossos):
Batista passeava, as mãos nas costas, os olhos no chão, suspirando, sem prever o tempo em que os conservadores tornariam ao poder. Os liberais estavam fortes e resolutos. As mesmas ideias pairavam na cabeça de D. Cláudia. Este casal só não era igual na vontade; as ideias eram muitas vezes tais que, se aparecessem cá fora, ninguém diria quais eram as dele, nem quais as dela, pareciam vir de um cérebro único. Naquele momento nenhum achava esperança imediata ou remota. Uma só ideia vaga… E foi aqui que a vontade de D. Cláudia fincou os pés no chão e cresceu. Não falo só por imagem; D. Cláudia levantou-se da cadeira, rápida, e disparou esta pergunta ao marido:
— Mas, Batista, você o que é que espera mais dos conservadores?
Batista parou com um ar digno e respondeu com simplicidade:
— Espero que subam.
— Que subam? Espera oito ou dez anos, o fim do século, não é? E nessa ocasião você sabe se será aproveitado? Quem se lembrará de você?
— Posso fundar um jornal.
— Deixe-se de jornais. E se morrer?
— Morro no meu posto de honra.
D. Cláudia olhou fixa para ele. Os seus olhos miúdos enterravam-se pelos dele abaixo, como duas verrumas pacientes. Súbito, levantando as mãos abertas:
— Batista, você nunca foi conservador!
O marido empalideceu e recuou, como se ouvira a própria ingratidão de um partido. Nunca fora conservador? Mas que era ele então, que podia ser neste mundo? Que é que lhe dava a estima dos seus chefes? Não lhe faltava mais nada… D. Cláudia não atendeu a explicações, repetiu-lhe as palavras, e acrescentou:
— Você estava com eles, como a gente está num baile, onde não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha. Batista sorriu leve e rápido; amava as imagens graciosas e aquela apareceu-lhe graciosíssima, tanto que concordou logo; mas a sua estrela inspirou-lhe uma refutação pronta.
— Sim, mas a gente não dança com ideias, dança com pernas.
— Dance com que for, a verdade é que todas as suas ideias iam para os liberais; lembre-se que os dissidentes na província acusavam a você de apoiar os liberais…
— Era falso; o governo é que me recomendava moderação. Posso mostrar cartas.
— Qual moderação! Você é liberal.
— Eu liberal?
— Um liberalão, nunca foi outra coisa.
— Pense no que diz, Cláudia. Se alguém a ouvir é capaz de crer, e daí a espalhar…
— Que tem que espalhe? Espalha a verdade, espalha a justiça, porque os seus verdadeiros amigos não o hão de deixar na rua, agora que tudo se organiza. Você tem amigos pessoais no ministério, por que é que os não procura?
Batista recuou com horror. Isto de subir as escadas do poder e dizer-lhe que estava às ordens não era concebível sequer. D. Cláudia admitiu que não, mas um amigo faria tudo, um amigo íntimo do governo que dissesse ao Ouro Preto: “Visconde, você por que é que não convida o Batista? Foi sempre liberal nas ideias. Dê-lhe uma presidência, pequena que seja, e…”
Batista fez um gesto de ombros, outro de mão que se calasse. A mulher não se calou; foi dizendo as mesmas coisas, agora mais graves pela insistência e pelo tom. Na alma do marido a catástrofe era já tremenda. Pensando bem, não recusaria passar o Rubicon; só lhe faltava a força necessária.
Saindo das páginas literárias de 120 anos atrás para chegarmos à realidade presente, podemos verificar uma série de casos análogos ao de Batista no atual contexto político nacional e, especificamente, capixaba.
Seja por conveniência, por pragmatismo, por estratégia, enfim, chame-se como quiser, a troca frívola de partidos como quem troca de trajes para o Baile da Nova República é a regra. Exceções, contáveis nos dedos, são aqueles que se mantêm firmes na mesma agremiação do início ao fim da vida pública e que o fazem por convicção, por verdadeiramente acreditarem no ideário daquele partido.
No Espírito Santo, podemos citar alguns casos bem recentes que certamente não esgotam a lista de “batistadas”, mas que bem servem para exemplificar o fenômeno. Em regra, todos têm se deslocado de um ponto A situado na esquerda ou na centro-esquerda para um ponto B localizado no campo direito. Todos numa mesma direção, num movimento quase coordenado, deslocando-se mais para a direita. E quem já estava na direita? Está indo para a extrema direita. Essa tendência obedece ao momento.
Essas coisas na política são cíclicas, e o ciclo atual – ao contrário do que vimos no romance de Machado – é de fortalecimento dos conservadores, da chamada “direita conservadora”. Assim, de olho na vontade do eleitor, muita gente está migrando para lá agora – assim como muita gente foi para o PT e outras siglas de esquerda quando o partido de Lula estava no auge, há duas décadas.
Um exemplo é Audifax Barcelos. Após ter militado a vida inteira por partidos de esquerda e centro-esquerda – nesta ordem: PT, PDT, PSB e Rede –, o ex-prefeito filiou-se, no fim do ano passado, ao direitista Progressistas (PP).
Em entrevista a este espaço e ao EStúdio 360, Audifax explicou assim a sua reorientação: “Se você olhar a minha trajetória de vida, verá que sempre fui um conservador”, afirmou, referindo-se, entre outros pontos, ao fato de ser cristão evangélico. Audifax é pré-candidato novamente à Prefeitura da Serra.
Outro exemplo que chama ainda mais a atenção é o de Neto Barros. Aos 47 anos, após ter militado a vida inteira no Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – hoje federado com o PT e o PV –, o ex-prefeito de Baixo Guandu surpreendeu meio mundo filiando-se ao mesmo Progressistas (PP) neste mês. Isso após ter chegado muito perto de fechar com o ultraconservador Republicanos em fevereiro.
Assim como o Republicanos, o PP de Arthur Lira e Ciro Nogueira apoiou o governo e a reeleição de Jair Bolsonaro, compondo a coligação com o PL na campanha presidencial de 2022.
Buscando, segundo ele, o centro e o equilíbrio, Neto diz estar cansado de “discussões ideológicas infrutíferas, que não levam a lugar algum”. Ele alega que está passando por um momento de “ressignificação da vida”, o que inclui a (radical) mudança partidária.
Segundo o ex-prefeito, o PCdoB, devido ao nome, sofre com estigma e preconceito de pessoas que “nem conhecem o que criticam” e tendem a tachar de “extrema esquerda” uma sigla que na verdade é “muito flexível”. E esse preconceito estava a restringir seu crescimento e a amplitude de seus movimentos político-eleitorais. “Estou mais feliz, mais animado… estou me sentindo mais leve agora”, vibra Neto.
Nessa relação, não podemos deixar de destacar o caso do ex-secretário estadual de Segurança Pública Alexandre Ramalho. Determinado a concorrer à Prefeitura de Vila Velha, o coronel da reserva e ex-comandante-geral da PMES assinou, na última quarta-feira (20), a ficha de filiação ao PL ao lado do presidente nacional da sigla, Valdemar Costa Neto, após ter se encontrado pessoalmente em Brasília na véspera com Jair Bolsonaro, que “abençoou” sua pré-candidatura.
Mas façamos como Machado, nos tempos em que redigia folhetins publicados nos jornais da Corte no Rio: vamos dividir esta análise em capítulos. Ramalho é um capítulo à parte. E será o nosso assunto aqui amanhã.
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