Coluna Vitor Vogas
O susto, a lição e a promessa de Gilvan da Federal
É preciso elevar a disputa política para um patamar mais qualificado de civilidade. Adversários precisam ser tratados, civilizadamente, como aquilo que de fato são
Façamos juntos um exercício. Imaginemos uma Câmara dos Deputados com 513 Gilvans da Federal – isto é, exercitando diariamente o mesmo jeito de “fazer política”. Todos os deputados, de todas as bancadas, de todos os estados, de todos os partidos, de todos os matizes e vertentes políticas, comportando-se tal qual o parlamentar do Espírito Santo. Seria a senha para um verdadeiro caos. Estaria, no mesmo instante, instaurada a barbárie geral. Teríamos 513 parlamentares agredindo e atacando uns aos outros o tempo todo, compulsivamente. Não teria a menor chance de dar certo. O Parlamento ficaria paralisado. Ou implodiria.
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Desde que estreou no exercício de mandatos, chegando à Câmara de Vitória em janeiro de 2021, o agente da Polícia Federal tem praticado diuturnamente, com empenho, o que aqui chamaremos de “política do choque”. Não só por estar sempre pronto a bater de frente com os adversários (chocar-se com eles, no sentido de trombar, colidir), mas também por suas palavras e atitudes. Estas continuamente chocam por romper não apenas com as normas do decoro parlamentar, mas também com as regras mais elementares de civilidade e convivência em sociedade. Sua marca, desde o dia 1 de atuação parlamentar, tem sido uma irresistível compulsão à agressão; a truculência como regra; o ataque como método; a violência verbal sistemática como instrumento político.
Nos tempos de atuação na Câmara de Vitória, o então vereador costumava repetir variações da máxima “para ser respeitado, é preciso respeitar”, “quem quer ser tratado com respeito tem que saber respeitar” etc. Mas ele mesmo recusa-se a seguir a própria premissa, tamanho é o grau de desrespeito com que trata adversários – os quais, seguindo-se à risca a própria lógica, tampouco teriam por que o tratar com o respeito e a urbanidade que ele cobra.
Mas falar em “adversários”, sob a ótica gilvanística, talvez soe equivocado. Não é assim que Gilvan os concebe. Trata-os, sim, como inimigos.
Inimigos que – é o que denotam suas palavras – não são dignos do seu respeito e, muito mais que isso, não são dignos sequer de existir. Merecem ser aniquilados, como ele mesmo dá a entender – “Quero que morra!” –, utopizando um mundo livre de “comunistas”, de “esquerdopatas”, de filiados a partidos de esquerda como o PT e o PSol, frequentemente chamados por ele, desde os tempos de Câmara de Vitória, por termos como “vagabundos”, “bandidos” etc.
Quem cobria e assistia às sessões da Câmara da capital capixaba, estupefato com um comportamento tão sem precedentes em matéria de agressividade, pegava-se a se perguntar: “O que é exatamente isso que estamos a presenciar? Que raiva incontida toda é essa? De onde vem tamanha ira concentrada em um parlamentar?”
Mas Gilvan assim seguiu agindo com a maior naturalidade, como se não houvesse limites para o “direito de agredir”, como se fosse mesmo muito normal fazer política daquela maneira. Não, não é normal. É tudo, menos normal. Não pode ser admitido. Não é aceitável numa democracia, sob o risco de, parafraseando Hannah Arendt, aceitarmos a “banalização do ódio”. É preciso tomar consciência disso.
A política não é – não pode ser – o espaço para a prática do “vale-tudo” (não, a expressão aqui não é gratuita, e logo chegaremos lá). É o espaço do dissenso civilizado entre quem pensa de maneira diferente e da construção dos consensos possíveis em prol do bem comum e do interesse coletivo.
É preciso elevar a disputa política para um patamar mais qualificado de civilidade. Adversários precisam ser tratados, civilizadamente, como aquilo que de fato são: adversários, nada mais que isso. Como diria Tancredo Neves – e há tanto a aprender com esses vultos –, na política quem briga são as ideias, não os homens.
Gilvan, por seu turno, já chegou ao cúmulo de chamar um adversário político, da sagrada tribuna do plenário da Câmara – a mesma outrora ocupado por Tancredo –, literalmente para uma briga física. “Qualquer academia, pode marcar, qualquer modalidade: no boxe, no MMA, vale-tudo… Eu tô à disposição!”, discursou o parlamentar, em junho de 2024, com palavras que ainda reverberam em ouvidos incrédulos e geram perplexidade, desafiando o senador Marcos do Val a resolver suas diferenças com ele pela via mais primitiva. Isso após os dois terem trocado encarada dentro de uma comissão e empurrões em um saguão do Aeroporto de Vitória.
Ainda durante os tempos de vereança, o caso mais icônico, que condensa os demais, é aquele ocorrido no fim de 2021, no qual o então vereador chamou Camila Valadão (PSol) de “assassina de crianças” e “satanista”, entre outros impropérios, e mandou-a calar a boca, dentro do plenário. Por esse mesmo ocorrido (convertido em ocorrência), o hoje deputado federal foi condenado, em primeira instância, pelo juízo eleitoral de Vitória, pelo crime de violência política de gênero, em março deste ano.
Na sentença, da qual ele recorre, a Justiça Eleitoral de 1º grau condenou o parlamentar à prisão em regime aberto por um ano, 4 meses e 15 dias, além do pagamento de multa no valor de R$ 10 mil, a título de reparação por danos morais.
Desde que mudou de uma Câmara para a outra – da Municipal de Vitória para a dos Deputados, sem escalas, “pulando” a Assembleia Legislativa e com excelente votação em 2022 –, o comportamento de Gilvan não se alterou. Antes, agravou-se. No início, os arroubos do deputado não chamavam tanto a atenção geral, “diluídos” que eram em uma Casa com mais de 500 parlamentares. É muita mais fácil causar espécie quando se é um entre 15.
Aos poucos, porém, a cada novo episódio, o nível de agressividade e a recorrência desse comportamento passaram a despertar a atenção também da imprensa nacional, especializada em cobrir o dia a dia dos Poderes em Brasília. De alguns meses para cá, Gilvan passou a merecer cobertura atenta dos grandes veículos e transformou-se naquilo que – às vezes tal é a impressão que fica – talvez fosse precisamente o que buscava desde o início: ficar no centro dos holofotes, ainda que não exatamente de uma forma muito positiva.
“Desgraça” e “prostituta do caramba”
Um episódio recente nesse sentido foi o pronunciamento de Gilvan literalmente defendendo a morte do presidente Lula (PT), ao relatar favoravelmente um projeto de lei sem nexo, que propunha o desarmamento da escolta pessoal do presidente da República, misturando alhos com bugalhos e argumentando que seria uma questão de coerência, já que o PT defende o “desarmamento do cidadão de bem”.
“Por mim, eu quero mais é que o Lula morra, eu quero que ele vá para o quinto dos infernos. […] Tomara que ele tenha uma taquicardia, porque nem o diabo quer a desgraça desse presidente que está afundando o Brasil”, afirmou Gilvan, na Comissão de Segurança, no dia 8 de abril.
O Governo Federal não ignorou o vitupério. A Advocacia-Geral da União apertou-lhe o cerco, pedindo à Polícia Federal que abra um inquérito para apurar a conduta do parlamentar. Também foram protocoladas representações contra ele no Conselho de Ética da Câmara e na Procuradoria-Geral da República. Sob a ameaça de responder a (mais um) processo judicial, Gilvan retratou-se publicamente no dia seguinte. Pedindo desculpas, admitiu que se excedeu: “Reconheço que exagerei na minha fala”.
Na semana passada, veio o susto maior – o qual poderia ter feito estragos ainda piores em seu mandato. Em audiência da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara, o incontrolável deputado chamou a deputada licenciada e ministra-chefe da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann (PT), pelo termo “amante” – codinome atribuído a ela em planilha da empreiteira Odebrecht, para supostos repasses ilegais a agentes políticos, descoberta anos atrás pela Operação Lava Jato. Indo além, Gilvan referiu-se a Gleisi como uma “prostituta do caramba”.
Dessa vez, a Mesa Diretora reagiu, e o fez de maneira implacável – talvez só pelo caso isolado, mas talvez também pelo acúmulo de episódios. Em iniciativa sem precedentes, “inaugurando” um dispositivo introduzido no Regimento Interno há quase um ano que deu à Mesa tal prerrogativa, o presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) e outros quatro membros da direção da Casa apresentaram representação contra Gilvan ao Conselho de Ética, pedindo a suspensão imediata do seu mandato, pelo prazo de seis meses. Claramente, o objetivo era dar uma lição no deputado do Espírito Santo, de uma vez por todas, e torná-lo um exemplo aos demais.
Vejam bem, é preciso frisar isto: o instrumento regimental foi criado a fim de acelerar a punição de deputados por eventual quebra de decoro, antes da conclusão de processo disciplinar no Conselho de Ética. Deve ser usado com parcimônia, apenas em casos extremos (para não se promover uma “caça às bruxas”). A Mesa Diretora entendeu tratar-se de um caso assim. O deputado se esforçou muito para isso.
A promessa
Na noite da última segunda-feira (5), discursando no plenário diante do próprio Hugo Motta, Gilvan fez uma promessa que todos – adversários, aliados e o povo espírito-santense – esperam que ele realmente cumpra: publicamente, jurou que vai mudar:
“Amanhã vai haver reunião do Conselho de Ética e já quero me antecipar, assumindo um compromisso de mudança de comportamento no plenário e nas comissões. Mesmo sendo atacado ou provocado pelo PT e pelo PSol, assumo o compromisso de comunicar esse ataque à Mesa Diretora e não fazer o que eu vinha fazendo”.
O ato público de contrição de Gilvan, combinado com sua promessa, além de um “entendimento” costurado nos bastidores entre as partes – como admitiu o próprio relator do processo, deputado Ricardo Maia (MDB-BA) –, fez com que a pena de Gilvan fosse reduzida à metade no Conselho de Ética. Em menos de 24 horas, Maia mudou o próprio relatório, suavizando a suspensão. Em vez do semestre inteiro proposto pela Mesa, o Conselho de Ética aprovou, por 15 votos a 4, a suspensão do mandato de Gilvan por três meses.
De todo modo, ele será punido. Passará esses 90 dias sem remuneração da Câmara e sem poder exercer as suas prerrogativas parlamentares. Serão três meses como um cidadão comum. Três meses que poderiam ser bem gastos com muita reflexão.
Tecnicamente, o deputado até poderia fazê-lo, mas adiantou, na própria reunião do Conselho de Ética, que não vai recorrer da decisão ao plenário da Câmara – é possível que o acordo tenha passado por isso, para evitar um desgaste ainda maior à Casa. Repisando ser “homem o bastante” para assumir suas responsabilidades e sua punição, Gilvan reiterou a promessa pública feita na véspera: “Sou um homem que cumpro minha palavra. E me comprometo a, mesmo sendo atacado, sendo ofendido, vou tomar outro tipo de atitude e vou cumprir o que falei”.
Como disse diretamente a Gilvan o presidente do Conselho de Ética, Leur Lomanto Júnior (União-BA), pouco antes da votação do seu caso no colegiado: “Errar é humano. Persistir no erro é burrice. Tenho certeza que tudo que você está passando no dia de hoje vai servir de aprendizado para Vossa Excelência.”
Tomara.
Mudará mesmo?
Gilvan diz que vai mudar. Jurou publicamente que, desta vez, está mesmo determinado a melhorar seu comportamento no plenário e nas comissões da Câmara.
Tomara mesmo.
A questão é que, pelo histórico do deputado, fica aquele quê de desconfiança.
No caso de Lula, ele também pediu desculpas em público ante a iminência de sofrer um processo da AGU. A lição foi aprendida? A mudança foi observada? Num intervalo de 20 dias, veja-se a enrascada ainda maior em que ele mesmo se meteu, no caso Gleisi.
Para se justificar, nos momentos em que “reconhece o erro”, Gilvan sempre recorre ao argumento do “calor do momento”… Esse “momento” tão acalorado tem sido um “presente perpétuo” na conduta do deputado. É um evento climático extremo que nem o aquecimento global explica. De novo: imaginem 513 deputados se comportando assim o tempo todo, regidos pelo “calor do momento”, momento atrás de momento.
Após se exceder, Gilvan também costuma admitir o óbvio: se excedeu. Mas tem sido um exagero atrás do outro, um excesso seguido do outro… O disco está arranhado; o comportamento, previsível. Como dito, parece um procedimento compulsivo.
De exagero em exagero, de desculpas em desculpas, já se fixou no imaginário coletivo um personagem construído por ele mesmo, de quem todo mundo já sabe exatamente o que esperar.
A mudança tem de ser real, na atitude, não só no discurso.
Não pode ser como aquela criança que, admoestada pelo pai por jogar bola dentro do apartamento, pede desculpas e diz que vai parar, mas volta a bater bola mal o pai lhe vira as costas. Ou, como comparou o deputado Chico Alencar (PSol-RJ), não pode ser como o católico que vai ao confessionário, enumera suas faltas, recebe e paga a penitência, se redime diante de Deus e então, zerado, volta a “pecar” no dia seguinte.
O povo capixaba espera que, desta vez, a promessa seja cumprida e a mudança seja para valer. Não um artifício retórico só para escapar de punições mais severas.
Que o vale-tudo fique na novela e o nobre deputado pare de praticar o grande MMA político que tem sido a sua atuação política desde 2021.
Bandeiras
Em paralelo, o ilustre parlamentar não faria mal em se concentrar nas causas que verdadeiramente mais importam e podem melhorar a vida dos capixabas e brasileiros.
Não precisa se abster de usar a bandeira do Brasil que sempre leva pendurada no ombro, emulando uma capa de herói medieval, embora nos pareça uma banalização do símbolo pátrio – de novo: imaginem se os 513 deputados resolvessem fazer o mesmo…
Mas qual é a bandeira efetiva defendida pelo mandato de Gilvan? Qual a causa, o projeto de lei vital apresentado ou relatado por ele? Educação, saúde, segurança pública, trabalho, emprego e geração de renda, mobilidade urbana, meio ambiente, agricultura, saneamento básico, crescimento econômico, infraestrutura, justiça social… Opções não escasseiam.
O que escasseia são representantes da mirrada bancada capixaba no Congresso Nacional. Na Câmara, dos 513 deputados, o Espírito Santo tem 10. Não dá míseros 2% do plenário. Cada um conta muito. Cada um faz muita falta. Não ajuda nada se perder em querelas inócuas quando há tanto a se produzir em prol do estado que se representa.
Do futebol para a política
O futebol sempre é pródigo em analogias que servem para explicar e entender melhor a política.
Uma falta (uma só) muito dura pode merecer do árbitro o cartão vermelho. É a expulsão direta do infrator, por conta da gravidade de uma falta isolada. Trata-se, aqui, de intensidade.
Uma falta dura (uma só), mas não tão grave quanto a do exemplo acima, pode fazer jus a um cartão amarelo. É uma advertência, que deixa o jogador “pendurado”: mais uma como aquela, ele irá para a rua.
Mas há também o cartão amarelo aplicado por uma sequência de faltas menos duras, pela repetição da conduta antidesportiva (o chamado “antijogo”). O ponto-chave aqui é menos a intensidade que a quantidade. O jogador é advertido e punido pela reincidência.
O “cartão amarelo” para Gilvan pode ter sido dado por ambas as hipóteses. A conduta antidesportiva (quebra do decoro, do fair play) no caso Gleisi Hoffmann teve intensa gravidade. Mas foi mais uma de uma sucessão de “faltas” por parte do deputado do PL.
Vale lembrar que Gilvan ainda corre o risco de levar o vermelho na sequência do processo a ser aberto contra ele, a pedido da Mesa, no Conselho de Ética. O vermelho, nesse caso, é a cassação.
Parece pouco provável que o processo culmine com a expulsão. Menos provável ainda se o acusado de fato mantiver “bom comportamento” nos próximos meses, enquanto o processo tramitar.
Por curiosidade…
“Aqui não é um octógono. Aqui não é um vale-tudo. Aqui é o Parlamento brasileiro”, disse, por curiosidade, o presidente do Conselho de Ética, Leur Lomanto Júnior, durante o primeiro “julgamento” de Gilvan no órgão.
