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Coluna Vitor Vogas

Cota de gênero no TJES: o desabafo da nova desembargadora

Entenda a controvérsia que cercou o preenchimento das duas últimas vagas abertas no tribunal, relativa a medida que busca maior equidade de gênero

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Juíza Helóisa Cariello foi promovida a desembargadora do TJES. Foto: TRE-ES

Em intervalo de uma semana, duas vagas foram preenchidas no Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES). No último dia 9, a juíza Heloisa Cariello foi promovida a desembargadora, pelo critério de merecimento. Foi a mais votada de uma lista formada exclusivamente por mulheres pela primeira vez na história do tribunal. Nessa quinta-feira (16), precisamente sete dias depois, foi a vez de o juiz Marcos Valls Feu Rosa tornar-se desembargador. Encabeçando lista de antiguidade na magistratura, ele teve o nome aprovado por todos os membros do tribunal, em votação no Pleno.

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Por ser a desembargadora com menos tempo de casa, Heloisa Cariello foi a penúltima a votar e referendar o nome do colega (o último foi o presidente da Corte, Samuel Meira Brasil J.). Aproveitando a oportunidade e pedindo licença ao presidente, ela se pronunciou de maneira pública sobre a própria chegada ao TJES na semana anterior. E o fez em tom de desabafo:

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“Durante muito tempo, imaginei e até acalentei a ideia de que seria eu a alçar essa vaga, hoje merecidamente provida pelo colega Marcos, pelo critério de antiguidade, mas a vida nem sempre se desdobra como imaginamos, e Deus nos lança inúmeros outros desafios e missões. E quis Ele, eu tenho a mais absoluta convicção, que chegássemos eu e o colega Marcos juntos a este tribunal, eu com poucos dias de antecedência. Independentemente do critério que pautou estes dois provimentos, independentemente de gênero, cor ou raça, tanto eu como o colega hoje promovido chegamos aqui para agregar, para somar e para atuar e ajudar esta colenda Corte naquilo que é o seu principal papel: o de fazer justiça de forma serena, equilibrada e justa”.

Com ênfase, ela arrematou:

“Eu creio que o peso dos mais de 30 anos de magistratura que me acompanham e os quase 29 anos de exercício da função pelo colega Marcos, sem qualquer mácula ou nódulo, nos legitimam a estar aqui hoje. O respeito à história de vida de cada um de nós, magistrados e magistradas, que diariamente exercem com dignidade essa difícil função, é algo que deve ser observado e cultivado. E ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de questionar os rumos, quando legítimos por certo, que ao cabo optamos por dar às nossas jornadas”.

Para se entender a manifestação em tom pungente de Heloisa Cariello, é preciso antes compreender as circunstâncias em que a douta juíza foi promovida a desembargadora, as quais ensejaram alguns questionamentos públicos – também legítimos, é certo, sem nenhuma mácula ou desabono à conduta e às escolhas da própria magistrada; questionamentos relacionados, por assim dizer, à velocidade da efetivação de medidas afirmativas voltadas à ampliação da representatividade feminina no Poder Judiciário.

Em síntese, em uma semana, duas vagas abertas no TJES foram preenchidas por um homem e uma mulher. Poderiam ter sido providas por duas mulheres, fossem outros os rumos do processo e, especificamente, da insigne magistrada.

Passamos a explicar a situação, partindo do contexto mais amplo para o específico:

Para você entender o contexto

Assim como todos os espaços de poder no Brasil, o Poder Judiciário é um universo predominantemente masculino. Nos tribunais do país, os assentos são dominados largamente por togados do sexo masculino.

Preocupado com tal desproporção e disposto a começar a transformar essa realidade histórica, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promoveu uma série de estudos que comprovaram, estatisticamente, a disparidade entre homens e mulheres no Judiciário nacional.

De acordo com levantamento realizado em 2023 pelo CNJ, as mulheres, embora constituam cerca de 51% da população brasileira, representam somente 38% da magistratura, sendo 40% no 1º grau de jurisdição e 21,2% no 2º grau, “sem a possibilidade de se estabelecer uma tendência de crescimento de tais percentuais à luz das séries históricas aferidas”, como se lê nas considerações preliminares da Resolução nº 525/2023 do CNJ. No TJES, o percentual atual é inferior a 21,2%.

Conforme levantamento realizado em 2021 pelo CNJ, no universo de todas as magistradas brasileiras, as mulheres negras representam somente 19%, sendo 13,4% das juízas e 12,1% das desembargadoras, não obstante as pretas e pardas totalizem 56% da população feminina brasileira. No TJES, não há nenhuma desembargadora negra.

Para mudar essa relação, o CNJ aprovou, em setembro de 2023, resolução que estabelece uma “cota de gênero” para o provimento das vagas abertas desde então em todos os tribunais do país que não apresentem uma relação de 60% por 40% na divisão das vagas por gênero, ou seja, tribunais onde mulheres não representem pelo menos 40% dos membros.

Esses tribunais – e o TJES se enquadra na premissa – agora estão obrigados a lançar, regularmente, editais de promoção voltados exclusivamente para juízas de 1º grau. Funciona assim:

Constitucionalmente, nos tribunais de Justiça, 4/5 (quatro quintos) das vagas “pertencem” à carreira da magistratura, enquanto as restantes são providas alternadamente por membros do Ministério Público e da advocacia (no chamado “quinto constitucional”). No TJES, por exemplo, das 30 cadeiras existentes, 24 são reservadas para a promoção de juízes ou juízas.

Essas vagas são preenchidas, alternadamente, pelo critério de merecimento e de antiguidade. O primeiro é, naturalmente, muito mais subjetivo. O segundo não costuma ter mistério: a menos que o juiz mais antigo da lista tenha o nome recusado pelos desembargadores (o que é muito raro), ele ficará com a vaga.

Muito bem.

O que a resolução do CNJ determina é que tribunais como o TJES, doravante, no caso das promoções por merecimento, lancem, de maneira alternada, editais mistos (permitindo a concorrências de homens e mulheres) e editais voltados exclusivamente para mulheres. Isso deve persistir até que o tribunal atinja o almejado mínimo de 40%. O objetivo, naturalmente, é acelerar a promoção e o ingresso de mulheres nesses tribunais, na medida em que se proporcionam mais portas de entrada para juízas. Esse é o efeito desejado.

Nas vagas da magistratura, os critérios de promoção passam a obedecer à seguinte rotação:

  • merecimento (só mulheres)
  • antiguidade
  • merecimento (misto)
  • antiguidade
  • merecimento (só mulheres)
  • antiguidade
  • merecimento (misto)
  • antiguidade… e assim sucessivamente.

No TJES, isso já vem sendo posto em prática.

De fevereiro para março, duas vagas destinadas à classe dos juízes foram abertas no tribunal, com a aposentadoria compulsória, nesta ordem, dos desembargadores Jaime Ferreira Abreu e Telêmaco Antunes de Abreu Filho.

Para a vaga de Jaime, o presidente Samuel Meira Brasil Jr. lançou o primeiro edital de promoção da história reservado exclusivamente para juízas.

Para a vaga seguinte, de Telêmaco, o edital foi por lista de antiguidade.

Onde entra Heloisa Cariello

Foi então que surgiu uma expectativa, uma grande expectativa, com relação ao que faria a juíza Heloisa Cariello.

Quando da abertura dos editais, ela já era a juíza de entrância especial mais antiga em atividade na Justiça Estadual. Sabia-se que, se assim quisesse, ela inexoravelmente ficaria com a “vaga 2”. Neste caso – falando absolutamente em tese –, poderia abdicar de concorrer à “vaga 1”, reservada à promoção de uma mulher, o que teria ensejado a promoção de outra juíza ao tribunal.

Ao mesmo tempo, ela tinha, como várias colegas, total direito, plena legitimidade e todas as qualificações exigidas para concorrer à vaga 1, por merecimento. A bem da verdade, Heloisa Cariello preenchia todos os pré-requisitos para pleitear, legitimamente, as duas vagas em questão.

Eis o que de fato aconteceu:

A lado de 16 colegas, Heloisa Cariello de fato se inscreveu e concorreu à vaga 1, a primeira da história do TJES disputada exclusivamente por mulheres. Com todos os méritos – comprovados pela votação consagradora –, ela foi a escolhida pelos membros do tribunal para ocupar essa cadeira, em um marco histórico para a Justiça capixaba. Na mesma sessão, tomou posse administrativa.

Assim, automaticamente deixou de ser a juíza mais antiga, posto herdado por Marcos Valls Feu Rosa. Este, então, pelo critério de antiguidade na carreira, foi confirmado ontem como novo desembargador na vaga 2. Das duas vagas, uma foi para as mulheres.

Eis o que, hipoteticamente, poderia ter ocorrido:

Se Heloisa Cariello não tivesse se inscrito para o processo de promoção por merecimento destinado às mulheres, outra juíza teria ficado com a vaga 1. Uma semana depois, inscrita no edital de provimento por antiguidade, ela, na condição de mais antiga, teria ficado com a vaga 2. Marcos Valls teria de esperar um pouco mais para chegar ao TJES. Das duas vagas, duas teriam sido preenchidas por mulheres, acelerando um pouco mais o processo de “equalização de gênero” na Corte.

Conclusão

Repita-se: como ela mesma enfatizou, a agora desembargadora, além de todos os méritos, tinha absoluto direito de buscar ingressar no TJES por todos os caminhos legítimos que se lhe abriram. Isso não está em questão nem em discussão.

O que estamos deixando aqui é tão somente uma constatação:

Objetivamente, se quisermos privilegiar a busca por equidade de gênero como critério de análise, é fato que as circunstâncias narradas acima não favoreceram uma aceleração maior do processo de ampliação da representatividade feminina no TJES.

Com a chegada de Cariello, o tribunal passa a somar seis mulheres entre 30 membros (20% das vagas; metade da meta). Com ela e mais uma mulher, essa proporção teria subido para 23,3%.

Os frutos da medida afirmativa postulada pela resolução do CNJ demorarão um pouco mais para serem colhidos no TJES. O tribunal precisará de um pouco mais de tempo para atingir a meta de 40%.

Mas vai chegar lá.


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