Coluna Vitor Vogas
Análise: Governo Lula 3, PT de novo no poder e o “Brasil comunista”
Olha o comunismo no Brasil!!! Onde? Cadê? Alguém viu por aí? Será que podemos refletir seriamente sobre o conceito de comunismo e sua aplicação no país?

O vice-presidente, Geraldo Alckmin e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante reunião de relançamento do CNDI. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Na radicalizada eleição presidencial de 2018 e na ainda mais radicalizada de 2022, alguns conceitos importantes foram surrados, maltratados, distorcidos e banalizados ao extremo no Brasil. Nenhum deles passou e segue passando por isso tanto quanto os conceitos de “socialismo” e de “comunismo”.
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Obstinadamente, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e os seguidores mais fanatizados do bolsonarismo trataram de alimentar tal distorção. Mesmo em seu discurso de posse, em 1º de janeiro de 2019 – “esquecendo” que ele na verdade sucedia o liberalíssimo Michel Temer –, Bolsonaro expressou a sua visão muito particular de que seria preciso “libertar o Brasil do socialismo”, assegurando ao grande público: era isso que seu governo faria. Assim seguiu repetindo durante todo o seu mandato no Planalto e durante toda a sua campanha, até fracassar em se reeleger, em outubro de 2022.
Ora, “libertar alguém de algo” pressupõe que esse alguém vivia aprisionado por aquilo de que é libertado. Logo, por essa visão, o Brasil pré-Bolsonaro teria passado os anos anteriores aprisionado pelo socialismo. Qual Brasil? Qual socialismo?!?
Senhoras e senhores que me leem, estamos diante de um problema maior. Um problema de leitura e de compreensão da realidade objetiva. Acreditar que, em 2018, quando Jair Bolsonaro elegeu-se presidente, o Brasil vivia sob a ameaça real de implantação do socialismo (ou do comunismo), era uma alucinação paranoica. Um delírio ululante!
Acreditar, em 2022, quando Lula derrotou Bolsonaro, que o país efetivamente se encontrava sob tal ameaça, era um delírio ainda maior.
Findo este primeiro ano do terceiro governo de Lula, se alguém acaso segue repetindo semelhante estupidez, estamos diante de um caso de internação manicomial.
Objetivamente, o primeiro ano do governo Lula 3 deveria bastar como argumento. Cadê o tão temido “comunismo”?!?
Mas nem seria preciso esperar por isso. Entre 2003 e 2016, eleito democraticamente quatro vezes seguidas, o mesmo Partido dos Trabalhadores governou o Brasil por quase 14 anos e… quais medidas efetivamente “comunistas” foram implementadas na condução da economia e no regime político do país?!?
É simplesmente delirante a ideia de que, durante os três primeiros governos e meio do PT, de 2003 a 2016, o Brasil tenha vivido de verdade, na economia e/ou na política, sob um regime que possa se comparar ao comunista ou socialista. Ainda mais delirante é a ideia de que este governo Lula 3 tenha algo que, minimamente, possa rescender a “comunismo”.
Em sua primeira passagem pelo poder, tanto na condução política como na condução da economia do país, o PT cometeu muitos erros – e pagou caro por eles. Mas implantar o socialismo ou o comunismo no Brasil não foi um deles, seja na economia, seja no regime político adotado enquanto governaram. No mundo real, aquele em que se dá o dia a dia das pessoas, não chegamos nem perto de algo que pudesse ser chamado de uma “experiência socialista”, nem que se assemelhe vagamente a isso.
Algumas características básicas são comuns a todas as experiências de implantação do socialismo real no mundo desde 1917. Nenhuma delas foi efetivamente observada no Brasil durante os governos petistas. Aliás, isso jamais ocorreu em nenhum momento da história brasileira. Parece ridículo dizê-lo, mas ainda estamos num momento de proclamar obviedades em alto e bom som: o Brasil NUNCA foi um país socialista, muito menos comunista.
Para se compreender por que não, é preciso partir-se de uma compreensão mais clara (e mais honesta) sobre o que é, de fato, o socialismo. E, antes de qualquer outra coisa, sobre o que ele não é: socialismo não é sinônimo de “esquerda” nem de “vermelho” e menos ainda de PT…
Começando pelo mais elementar, o PT nem sequer é um partido socialista, tampouco comunista, mas um partido trabalhista de base, fundado em 1980 (justamente a década em que o socialismo ruiu na Europa e no mundo bipolar).
Todo partido socialista ou comunista certamente é de esquerda. Mas todo partido de esquerda é necessariamente socialista ou comunista? Por certo que não. Donde a conclusão natural: o PT não defende a implantação de um modelo “socialista”, tampouco “comunista” de organização social, política e econômica no Brasil.
E quanto a Lula, o líder máximo do PT, é um líder político comunista? Não. Não é nem nunca foi. Lula jamais defendeu a implantação do comunismo no país. Possivelmente, esse sobrevivente político é o jogador mais pragmático de que se tem notícia em cinco décadas no Brasil. Nunca antes este país produziu um líder político mais adaptável às circunstâncias e mais camaleônico que Luiz Inácio Lula da Silva. “Metamorfose ambulante”, lembram?
Alguém é capaz de citar uma só medida tomada por ele no poder que possa remotamente ser associada à implantação do comunismo ou do socialismo no Brasil? Alguém pode citar uma só evidência que confirme a ideia delirante de que o PT fez, ou faz, um governo comunista ou socialista?
De 2003 a 2016, durante os 160 meses em que o PT esteve no poder, seja nos governos Lula, seja nos governos Dilma, o Brasil foi uma nação democrática com economia capitalista pujante fundada na livre iniciativa. E continua sendo-o.
Tem (e nunca deixou de ter) bancos privados, iniciativa privada, Bolsa de Valores, mercado de capitais, especulação financeira, investidores privados, especuladores, rentistas.
Em que pese toda a burocracia, qualquer um abre e fecha uma empresa quando quer, contrata e demite funcionários e lhes paga salários variáveis conforme as exigências de cada função.
Por acaso nos governos petistas, incluindo o atual governo Lula, os meios de produção foram expropriados e estatizados? Não.
Só existem escolas e hospitais públicos neste país? Não.
Todos são obrigados a usar os serviços públicos oferecidos pelo Estado? Não.
Qualquer um, tendo capital para isso, pode pagar um plano de saúde privado, se internar num hospital particular, matricular seus filhos em escolas e faculdades particulares? Sim.
E quanto ao sistema político, o governo petista foi e é totalitário? É uma “ditadura socialista”? Só existe um partido central que se confunde com o próprio Estado? Ou o Brasil possuía e ainda possui dezenas de partidos (até demais), sendo que vários deles, inclusive alguns que apoiaram Bolsonaro, governaram no passado e agora governam em aliança com o PT no chamado “presidencialismo de coalizão”?
Durante o período Lula/Dilma, de 2003 a 2016, os cidadãos só tiveram acesso a notícias via meios de comunicação estatais e oficiais, ou no país vigorava e vigora uma imprensa profissional livre e pulsante? E em 2023? O cidadão só se informou por meios oficiais, controlados pelo Estado?
De 2003 a 2016, houve prisões políticas e perseguição violenta a opositores do governo, como o era o próprio Bolsonaro? E neste ano de 2023? Houve ameaça de fechamento do Congresso por parte dos apoiadores “comunistas” do PT, ou, hummmmmm, teria se dado o contrário, no dia 8 de janeiro?
Depois do patético ataque às sedes dos Três Poderes por apoiadores de Bolsonaro inconformados com a derrota eleitoral, a democracia e suas instituições seguiram seu rumo normal ao longo deste primeiro ano de governo Lula 3??? Alguém foi mandado para o gulag, como na antiga União Soviética, ou algo que o valha?
Pois bem: que “socialismo” é esse, então? Onde é que entra o “marxismo”, em termos práticos e não fantasiosos?
Revisão histórica
Aliás, senhoras e senhores, já que estamos fazendo uma revisão sincera, precisamos dizer que os problemas do Brasil nos primeiros governos do PT foram todos típicos de uma economia capitalista em um regime democrático liberal.
Os banqueiros tiveram seus lucros e, após a Carta ao Povo Brasileiro divulgada por Lula no auge da campanha de 2002 – na verdade, um aceno ao mercado financeiro –, conviveram muito bem, obrigado, com o governo do petista e com a política econômica ortodoxa implementada por Palocci nos primeiros anos.
Antes da recessão iniciada no governo Dilma, muitos empresários de pequeno e grande porte prosperaram com o crescimento desta nossa economia capitalista, experimentado durante a maior parte dos dois primeiros governos Lula, embora aquém do que poderia ter sido. De novo: onde fica o “comunismo” nessa história?
Até os erros do PT na condução da política econômica a partir do fim do segundo governo Lula são erros típicos de um governo capitalista. Com linhas de crédito generosas e facilitadas via BNDES, o governo elegeu megaempresas como “campeãs nacionais”. Sublinhe-se o óbvio: megaempresas capitalistas. Perguntem a Eike, Marcelo Odebrecht e a Joesley Batista se, para eles, o Brasil de Lula foi “socialista”/“comunista”. É possível que deem risadas.
Como parte da “nova matriz econômica” (política anticíclica para fazer frente à crise mundial de 2008/2009), o governo passou a estimular pesadamente o mercado interno e o consumo de bens pelas famílias brasileiras. O que pode estar mais na essência do capitalismo e do livre mercado do que o estímulo ao consumo?
Os erros do PT, em seus primeiros governos (2003-2016), foram outros e, decididamente, não têm nada a ver com a implantação de um “projeto comunista”:
Em primeiro lugar, por óbvio, a corrupção – tendo, do outro lado do balcão de negócios com as estatais, os corruptores. E quem eram esses corruptores se não representantes de megaempresas (obviamente, capitalistas) interessados em manter os seus negócios sujos com o Estado?
Outro erro sem dúvida foi o forte intervencionismo na economia, naquilo que muitos economistas denominam “capitalismo de Estado”, sobretudo no governo Dilma, expressado por meio de políticas de controle de preços na marra como forma de conter a inflação. Pode-se passar horas discutindo o grau de intervenção ou não do Estado na economia (liberalismo x desenvolvimentismo; Estado mínimo x mais Estado), mas, também aqui, isso passa completamente longe de uma discussão honesta sobre “implantação do comunismo”.
Outro erro crasso do PT: o de ter mantido uma política externa de parcerias com países onde, aí sim, vigoravam e ainda vigoram ditaduras socialistas, como Cuba e Venezuela. Essa parceria manifestamente se deu não só por meios diplomáticos, mas, o que é mais grave, também por meios comerciais, com o uso de recursos públicos dos cofres brasileiros para o financiamento de obras vultosas de infraestrutura em alguns desses países.
Então certo: o PT e os governos do PT erraram feio em apoiar e em nunca condenar as violações de direitos políticos e humanos nesses países. Daí a dizer que os governos petistas também foram “comunistas” vai uma distância abissal.
Por fim, por falar em direitos humanos, a defesa de alguns desses direitos, sobretudo no caso de minorias identitárias, foi outra marca forte dos governos do PT e também tem sido comumente associada ao comunismo. Um exemplo: o movimento feminista mereceria, automaticamente, o rótulo de comunista, por ser muitas vezes vinculado a partidos de esquerda. De novo: nada mais equivocado e sem base histórica. Direitos humanos não têm nada a ver com comunismo. Os verdadeiros regimes comunistas sempre violaram direitos humanos, ao invés de defendê-los.
Quanto às minorias e questões identitárias, o comunismo clássico jamais deu a menor importância para elas. Ao contrário, em vez de se preocuparem com questões de identidade pessoal e bandeiras específicas de grupos minoritários, os pensadores e organizações comunistas tradicionais trabalhavam com a concepção de massas, de uma coletividade homogênea (a qual deveria ser mobilizada em prol da causa que a mantinha unida). Uma só causa, comum a todos: a revolução etc.
E umas das principais autocríticas de ex-comunistas é essa. Para alguns autores emersos de tais movimentos e que reviram suas posições com o tempo, esse teria sido exatamente um dos maiores erros das organizações comunistas no passado: o de pensar nas pessoas apenas em termos de massas, e não em termos de indivíduos com projetos, expectativas e desejos pessoais.
