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Coluna Vitor Vogas

AGU se manifesta contra proibição de pais a quaisquer “atividades de gênero” na escola

Advogado-geral da União, Jorge Messias, cita uma série de documentos e leis federais que estabelecem como obrigatória a abordagem de temas como diversidade e direitos humanos no espaço escolar

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Prazo para rematrícula de estudantes em Vitória é estendido. Foto: Divulgação/Governo do Espírito Santo

Sala de aula. Foto: Divulgação/Governo do Espírito Santo

Chamado a se posicionar na ação de inconstitucionalidade que tramita no STF contra a Lei Antigênero vigente desde julho no Espírito Santo, o advogado-geral da União, Jorge Messias, cita uma série de resoluções e leis federais que estabelecem como obrigatória a abordagem de temas como diversidade e direitos humanos no espaço escolar. Esses temas, portanto, fazem parte do currículo nacional obrigatório, fixado por normas federais. De acordo com a AGU, pais só podem vetar a participação dos filhos em atividades eletivas, que vão além do currículo básico nacional.

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Em sua manifestação oficial, apresentada na quinta-feira (11), o chefe da AGU concordou com a suspensão cautelar da lei estadual contestada, conforme o pedido formulado pelas entidades que entraram com a ação, desde que observado o recorte destacado por ele:

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“Realmente há circunstâncias graves na manutenção da vigência da lei atacada. Posto isso, reputa-se por igualmente preenchido o perigo da demora e, portanto, todos os requisitos para a concessão da medida cautelar nos moldes ora sugeridos. […] Por todo o exposto, o Advogado-Geral da União se manifesta pelo deferimento parcial da medida cautelar requerida, postulando seja fixada interpretação conforme a Constituição à lei atacada, de modo a se estabelecer que o direito parental de escolha nela veiculado somente pode ser aplicado a atividades pedagógicas que o currículo escolar considere eletivas ou que extravasem a base curricular mínima exigida pela legislação federal de diretrizes e bases da educação”.

Em outras palavras, no entendimento da AGU, os pais dos alunos só têm o direito de decidir se seus filhos podem ou não participar de atividades escolares eletivas (optativas, não obrigatórias), que envolvam conteúdos não previstos na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e que extrapolem o currículo básico nacional. É o caso, por exemplo, das aulas de ensino religioso e de educação física, cuja participação, frisa a AGU, é facultativa. Mas não é o caso de aulas que tratem, por exemplo, de temas relacionados a questões de gênero, inseridos no currículo obrigatório por meio de vasta legislação federal.

A lei estadual em questão generaliza e, portanto, fere normas maiores da União (a quem compete legislar sobre o assunto), notadamente a LDB, na medida em que faculta aos pais e responsáveis o direito de “vedar a participação de seus filhos ou de seus dependentes em atividades pedagógicas de gênero realizadas em instituições de ensino públicas e privadas do Espírito Santo”. Tal é a compreensão da AGU.

“Em síntese, o que se observa é que a implementação da facultatividade do ensino de temas antidiscriminatórios no Estado do Espírito Santo ocorreu à revelia de qualquer previsão na legislação federal, em especial na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.”

“Ao dispor em sentido diverso ao que prescreve a legislação federal sobre o tema, o Estado-membro criou um modelo que fragiliza a concretização nacional das diretrizes e bases da educação, desestruturando sua pretensão de uniformidade”, argumentou Jorge Messias, para concluir:

“Desse modo, merece a lei estadual recorte, mediante a técnica de interpretação conforme a Constituição Federal, a fim de que sejam compatibilizados os âmbitos de normatização federal privativa e concorrente estadual, de modo a se estabelecer que o direito parental de escolha veiculado na lei impugnada somente pode ser aplicado a atividades pedagógicas que o currículo escolar considere eletivas ou que extravasem a base curricular mínima exigida pela legislação federal”.

Citando vasta legislação federal sobre o tema (leia abaixo), a AGU ressalta que “conteúdos de inclusão e de tolerância”, visando combater “todas as formas de discriminação”, são impostos, de maneira uniforme, pelo direito federal, a todas as escolas do país:

“A leitura conjunta desses instrumentos permite inferir a existência, no direito federal, de um traço de normatividade uniforme que impõe a introdução, no currículo do ensino básico, de conteúdos de inclusão e de tolerância, voltados a fomentar o combate a todas as formas de discriminação, o que haverá de ser realizado em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”.

A abordagem desses conteúdos, frisa a AGU, pode e deve ser adaptada aos contextos locais. Mas isso não pode ser usado como pretexto para esvaziar ou suprimir das escolas esse tipo de debate:

“A competência concorrente dos demais entes federativos não possibilita que, sob o pretexto de adaptar a introdução desses conteúdos no âmbito local, Estados e Municípios esvaziem o padrão curricular comum que deve ser seguido por toda a federação”.

Para a AGU, a lei capixaba antigênero vai contra as diretrizes curriculares federais, uma vez que permite aos pais proibir o acesso dos alunos a conteúdos antidiscriminatórios que não podem ser tratados como facultativos, já que consiste em “diretriz curricular universal”:

“Ao transmitir exclusivamente ao alvedrio dos pais a decisão de frequência dos(as) aluno(as) às atividades pedagógicas com conteúdo antidiscriminação relacionado a gênero, a lei atacada criou uma hipótese de facultatividade de matrícula e de frequência que não encontra respaldo nas diretrizes curriculares federais. Diferentemente do que sucede com o ensino religioso ou com a prática da educação física – que são expressamente flexibilizados pela Constituição e pela LDB (artigo 26, § 3º) –, a matrícula e a frequência a conteúdos antidiscriminatórios não é tratada como facultativa, mas como uma diretriz curricular universal”.

O que diz a Lei Capixaba Antigênero

Oriunda de projeto de lei apresentado pelo deputado estadual Alcântaro Filho (Republicanos) e aprovado pela Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) em junho deste ano, a Lei Estadual nº 12.479 foi promulgada no dia 21 de julho de 2025 pelo presidente da Ales, Marcelo Santos (União), após sanção tácita do governador Renato Casagrande (PSB).

Conforme a redação da lei, “fica assegurado aos pais e aos responsáveis o direito de vedar a participação de seus filhos ou de seus dependentes em atividades pedagógicas de gênero, conforme definido nesta Lei, realizadas em instituições de ensino públicas e privadas [do Espírito Santo]”.

A lei define “atividades pedagógicas de gênero” como “aquelas que abordam temas relacionados à identidade de gênero, à orientação sexual, à diversidade sexual, à igualdade de gênero e a outros assuntos similares”.

Ainda segundo a nova norma, as instituições de ensino deverão informar aos pais ou aos responsáveis sobre quaisquer atividades pedagógicas de gênero que possam ser realizadas no ambiente escolar, sob pena de serem responsabilizadas civil e penalmente, conforme o caso.

Os pais ou os responsáveis deverão manifestar expressamente sua concordância ou discordância quanto à participação de seus filhos ou de seus dependentes em atividades pedagógicas de gênero, por meio de documento, escrito e assinado, a ser entregue à instituição de ensino.

As instituições de ensino serão responsáveis por garantir o cumprimento da vontade dos pais ou dos responsáveis, respeitando a decisão de vedar a participação de seus filhos ou de seus dependentes em atividades pedagógicas de gênero.

A contar da promulgação, o Governo do Espírito Santo tem 90 dias para regulamentar a lei, fixando as “punições cabíveis”.

Entretanto, a própria Secretaria de Estado da Educação (Sedu) manifestou-se desde o início contra a lei. Assim também fizeram a Procuradoria-Geral do Estado (PGE), quando a lei ainda esperava sanção ou veto do governador, e até a Procuradoria-Geral da Ales, em três pareceres, durante a tramitação do projeto na Comissão de Constituição de Justiça.

Imediatamente após a promulgação da lei, no dia 22 de julho, três entidades ajuizaram ação direta de inconstitucionalidade contra a lei no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia: a Aliança Nacional LGBTI, a Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas e o Fórum Nacional de Pessoas Travestis e Transexuais Negras e Negros.

No curso do processo, o próprio governador Renato Casagrande – voltando atrás em sua omissão inicial – concordou com os autores da ação e pediu à ministra Cármen Lúcia que a lei estadual seja declarada inconstitucional. Igualmente intimada a se manifestar, a Procuradoria-Geral da Assembleia também modificou sua posição, mas no sentido contrário: defendeu a legalidade e a manutenção da lei estadual, em parecer assinado pelo presidente da Ales, Marcelo Santos, e pelo procurador-geral da Casa, Anderson Pedra.

Em paralelo, o PSol ingressou com outra ação direta de inconstitucionalidade, também pedindo a derrubada da lei, mas no Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES). A ação está sob a relatoria doa desembargadora Janete Simões. Chamado a se manifestar nos autos, o chefe do Ministério Público do Espírito Santo (MPES), Francisco Martínez Berdeal, opinou que a lei é inconstitucional e deve mesmo ser revogada.

Já o presidente da Ales, Marcelo Santos, pediu que o processo no TJES seja suspenso, devido à “prejudicialidade externa” decorrente da ação já em trâmite no STF, “que versa sobre a mesma matéria”.

OS ARGUMENTOS DA AGU

Em seu parecer, a AGU destaca, em primeiro lugar, que somente a União tem legitimidade para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, conforme estabelecido pela Constituição Federal, o que torna, de saída, inconstitucional qualquer lei estadual nesse sentido.

“Cumpre observar, inicialmente, que a Carta Constitucional prevê a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, nos termos do artigo 22, inciso XXIV, da Constituição Federal”.

Em seguida, a AGU relaciona um cabedal de leis e normas, todas federais, que versam sobre o tema, com destaque para a Lei de Diretrizes e Bases (1996), segundo a qual professores, na verdade, têm o dever de educar os seus alunos “para o exercício da cidadania e pelo apreço à tolerância”.

A seguir, reproduzimos trechos importantes de algumas das leis citadas pela AGU, conforme o parecer de Jorge Messias.

Lei de Diretrizes e Bases (1996)

No exercício da competência constitucional referida acima, a Lei de Diretrizes e Bases traça os princípios gerais do ensino e prescreve que os estabelecimentos de ensino devem habilitar os educandos para o exercício da cidadania e pelo apreço à tolerância, promovendo medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática (bullying), no âmbito das escolas, assim como estabelecer ações destinadas a promover a cultura de paz nas escolas.

Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005, de 2014)

Prevê a implementação de políticas educacionais, bem como de programas, com a finalidade de superar desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação, além de prever a promoção dos direitos humanos e da diversidade na educação brasileira.

Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE)/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017

Institui e orienta a implantação da Base Nacional Comum Curricular. Determina que os currículos devem incluir a abordagem, de forma transversal e integradora, de temas exigidos por legislação e normas específicas, assim como temas contemporâneos relevantes para o desenvolvimento da cidadania, como a educação em direitos humanos.

Resolução CEB/CNE nº 7, de 14 de dezembro de 2010

Fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 anos. Estabelece que temas com conteúdo antidiscriminatório (incluindo saúde, sexualidade e gênero) devem permear o desenvolvimento dos conteúdos da base nacional comum e da parte diversificada do currículo.

Resolução CNE/CEB nº 3/2018

Atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Determina que a proposta pedagógica das unidades escolares que ofertam o ensino médio deve considerar, dentre outros pontos, a promoção dos direitos humanos mediante a discussão de temas com conteúdo antidiscriminatório (incluindo gênero, identidade de gênero e orientação sexual).

Resolução CNE/CEB nº 8, de 20 de novembro de 2012

Define diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola na educação básica. Orienta as instituições de ensino a adotarem medidas que assegurem o respeito à diversidade sexual, “superando práticas homofóbicas, lesbofóbicas, transfóbicas, machistas e sexistas nas escolas”.