Coluna Vitor Vogas
Lei Antigênero: a resposta de Casagrande ao STF, corrigindo sua posição
Reviravolta: governador pede ao Supremo para anular os efeitos da lei que entrou em vigor após sua sanção tácita. Apresentamos os principais argumentos usados por ele, em resposta a intimação da ministra Cármen Lúcia

Renato Casagrande. Foto: Hélio Filho/Secom
O governador Renato Casagrande (PSB) corrigiu sua posição no debate sobre a Lei Estadual nº 12.479/2025 – aqui denominada “Lei Antigênero”. Em resposta oficial a uma intimação da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), o governador não apenas concordou que a lei é inconstitucional como pediu à ministra que a norma seja assim declarada e, consequentemente, anulada. Em outras palavras, o governador quer que o Supremo anule os efeitos da lei que entrou em vigor após ele mesmo a ter sancionado tacitamente.
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Segundo Casagrande, a lei está repleta de vícios de inconstitucionalidade, tanto formal quanto material. Entre outros pontos listados por ele, com auxílio da Procuradoria-Geral do Estado(PGE), o texto agora vigente viola a competência exclusiva da União para legislar sobre diretrizes e bases curriculares da educação nacional; representa uma forma de censura contra os educadores; fere preceitos consagrados pela Constituição Federal, como a liberdade de expressão e de ensino (de cátedra), o pluralismo de ideias, a dignidade da pessoa humana, o dever do Estado de combater as desigualdades e toda forma de discriminação, inclusive por identidade de gênero ou orientação sexual.
A lei em questão tem origem em projeto de lei apresentado em 2023 pelo deputado estadual Alcântaro Filho (Republicanos), expoente da Bancada da Bíblia na Assembleia Legislativa do Espírito Santo.
A norma impede educadores, em todas as escolas do Espírito Santo, tanto públicas como privadas, de realizar “atividades pedagógicas de gênero” – nos termos da lei, “aquelas que abordam temas relacionados à identidade de gênero, à orientação sexual, à diversidade sexual, à igualdade de gênero e a outros assuntos similares” –, a menos que tenham autorização prévia por escrito dos pais ou responsáveis pelos alunos.
Na prática, a escola só poderá abordar um dos temas especificados na redação da lei, ou “outros assuntos similares”, após autorização expressa dos pais dos estudantes, “sob pena de serem responsabilizadas civil e penalmente, conforme o caso”.
Apesar de ter recebido três pareceres desfavoráveis da Procuradoria-Geral da Assembleia, o projeto de Alcântaro foi aprovado, em regime de urgência e por votação simbólica, no fim de junho. Seguiu para sanção ou veto do governador, que preferiu deixar expirar o prazo de 15 dias sem se posicionar – segundo ele, por orientação da Casa Civil, órgão responsável pela articulação política do Governo do Estado com deputados.
A Secretaria de Estado de Educação (Sedu) opinou contrariamente à sanção – por questões de mérito. A Procuradoria-Geral do Estado, segundo Casagrande, também o fez – por questões legais.
Nos termos da Constituição Estadual, o silêncio do governador nesse caso importa em “sanção tácita” da sua parte. Coube, assim, ao presidente da Assembleia, Marcelo Santos (União), promulgar o projeto, transformado na Lei nº 12.479/2025.
A nova lei estadual foi publicada no Diário Oficial do Estado em 21 de julho, desencadeando protestos e notas de repúdio de sindicatos de escolas e professores, do Vicariato da Arquidiocese de Vitória e de organizações da sociedade civil que defendem algumas minorias.
Três dessas entidades ingressaram com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo a anulação da nova lei do Espírito Santo. Os autores da ação, distribuída para Cármen Lúcia, são a Aliança Nacional LGBTI+, a Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas e a Fonatrans. Na última quarta-feira (30), a relatora deu à Assembleia Legislativa e ao Governo do Estado cinco dias úteis para se manifestarem sobre a norma em exame.
Falando até em “doutrinação”, a Assembleia defendeu a constitucionalidade da lei e a sua manutenção, em resposta assinada por Marcelo Santos e pelo procurador-geral da Casa, Anderson Sant’Ana Pedra. Já o governador tomou exatamente o caminho contrário: reconhecendo a inconstitucionalidade da norma que ele mesmo (por razões políticas) deixou passar, pediu à ministra que faça o mesmo e declare a nulidade do novo dispositivo legal, excluindo-o do ordenamento jurídico estadual.
Abaixo, apresentamos os principais argumentos expostos por Casagrande, em resposta também assinada pelo procurador-geral do Estado, Iuri Carlyle do Amaral Almeida Madruga, e pelo procurador assessor de gabinete, Jasson Hibner do Amaral.
Registro: com todo o respeito ao deputado proponente, à Assembleia Legislativa e ao próprio governador, alguns dos pontos foram sublinhados aqui mesmo, nesta coluna, desde o primeiro texto publicado após a promulgação da lei.
1. DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL (ART. 22, INCISO XXIV, DA CF/88).
Segundo o governador, a lei impugnada viola competência legislativa privativa da União para dispor sobre diretrizes e bases da educação. Está lá no artigo 22, inciso XXIV, da Constituição Federal:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[…]
XXIV – diretrizes e bases da educação nacional;
Na mesma toada, anotou o governador, a Constituição Federal veda quaisquer formas de censura e restrição à liberdade de cátedra e concepções pedagógicas de professores (art. 206, incisos II e III, da CF):
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
[…]
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
Casagrande ainda lembrou o dever da educação em promover a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos em geral, como o direito à não discriminação de pessoas não-binárias e que se identificam com a chamada linguagem neutra.
No próprio STF, lembrou Casagrande, o ministro Luís Roberto Barroso já declarou em um punhado de ADIs oriundas de vários estados (Alagoas, Paraná, Tocantins…) tanto a inconstitucionalidade formal quanto material de leis municipais que buscaram restringir o discurso de professores e professoras em sala de aula. “A liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias constituem diretrizes para a organização da educação impostas pela própria Constituição.”
O governador menciona que, “exatamente nesse contexto”, a Suprema Corte declarou
formalmente inconstitucional uma lei do estado de Rondônia que proibia o uso de linguagem neutra nas escolas, em ADI relatada pelo ministro Edson Fachin.
Casagrande evocou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), que trata sobre “currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino ou modo de exercício da atividade docente”.
“A forma de participação das crianças e adolescentes deve ser tratada de modo uniforme em todo o território nacional, não cabendo aos entes estaduais estabelecer quaisquer tipos de proibições ou permissões locais, caso em que tais proibições terão que ser discutidas e promovidas, se for o caso, pela União”, argumentou o chefe do Executivo Estadual.
2. DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL: VIOLAÇÃO À DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA (ART. 1º, III, CF/88), À IGUALDADE E AO COMBATE ÀS
DESIGUALDADES (ART. 3º, III E IV, CF/88), À LIBERDADE DE EXPRESSÃO (ART.
5º, IV, CF/88) E À LIBERDADE DE ENSINO/CÁTEDRA (ART. 206, II E III, CF/88)
Segundo o próprio Casagrande, “a norma estadual também está eivada de inconstitucionalidade material, já que implica censura à liberdade de expressão e de ensino/cátedra de Professores(as) em sala de aula. Constata-se a regulação desproporcional do conteúdo do discurso realizado em sala de aula, à luz da vinculação de Professores(as) ao conteúdo programático, bem como à liberdade de aprendizado de alunos(as/es) sobre a pluralidade social existente na vida real” (grifo nosso)”.
Observem acima: no trecho por nós grifado, a própria redação da resposta do governador e da Procuradoria-Geral do Estado emprega linguagem neutra.
“Além disso”, prossegue Casagrande, “a norma promove a supressão de campos inteiros do saber da sala de aula e desfavorece o pleno desenvolvimento da pessoa, que precisa ter acesso à realidade fática social e construir seu próprio repertório cultural”.
Casagrande torna a destacar a jurisprudência acumulada pelo próprio STF, em uma série de julgados acerca da tentativa dos entes subnacionais de legislar sobre o tema, sempre no mesmo sentido de que estados e municípios não podem criar leis específicas que impeçam professores de abordar questões de gênero.
“O Estado tem o dever constitucional de agir positivamente para concretizar políticas públicas, em especial as de natureza social e educativa, voltadas à promoção de igualdade e de não discriminação. Aliás, rememore-se que a orientação sexual e a identidade de gênero estão incluídas nos motivos de não discriminação consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos e abrangidas pela proteção dos princípios constitucionais da igualdade (art. 5º, caput, CF/88) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88).”
A Suprema Corte, relembra Casagrande, já reconheceu que o Plano Nacional de Educação – PNE (Lei 13.005/2014), na realidade, obriga as instituições de ensino a coibir a prática de bullying e “as discriminações por gênero, identidade de gênero e orientação sexual, bem como as de cunho machista (contra meninas cisgêneras e transgêneras) e homotransfóbicas (contra homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais)”.
Ele ressalta uma série de leis similares aprovadas em unidades federativas como Amazonas, Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal, todas barradas pelo Supremo (que tem atuado como uma barreira constitucional para esse tipo de iniciativa).
“De igual modo, anota-se a tentativa de outros entes federativos em editar leis com o mesmo conteúdo, porém sem sucesso, eis que os projetos foram rejeitados nas Comissões de Constituição e Justiça das respectivas casas legislativas, a exemplo do Projeto de Lei Ordinária nº 1.680 de 2023 da Câmara Municipal de João Pessoa”.
Cumpre reprisar: na Assembleia Legislativa do Espírito Santo, o projeto foi aprovado apesar de três pareceres jurídicos, da Procuradoria da Casa, que apontaram sua inconstitucionalidade e recomendaram à CCJ o arquivamento da proposição.
“Com efeito”, conclui Casagrande, “constata-se, sem maiores esforços, que o ato normativo impugnado encontra-se eivado de inconstitucionalidade material, uma vez que viola a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), a igualdade e o dever de combate às desigualdades (art. 3º, III e IV, da CF/88), a liberdade de expressão (art. 5º, IV, da CF/88) e a liberdade de ensino/cátedra (art. 206, II e III, da CF/88)”.
3. DA COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO PARA
DESEMPENHO DAS ATIVIDADES LEGISLATIVAS E REGULAMENTARES (ARTS. 2°
E 84, INCISO II, DA CF/88).
Por fim, Casagrande assinala que a lei é irregular por impor prazo certo para a regulamentação das sanções aplicáveis em caso de descumprimento.
“Isso porque compete ao Chefe do Poder Executivo examinar a conveniência e a oportunidade para o desempenho das atividades legislativas e regulamentares que lhe são próprias. Assim, qualquer norma que imponha prazo determinado para a prática de tais atos configura indevida interferência do Poder Legislativo em função típica do Poder Executivo, caracterizando intervenção na condução superior da Administração Pública”, salienta o governador.
“No caso concreto, o art. 6º da Lei Estadual nº 12.479/2025, ao impor ao Governador do Estado do Espírito Santo o dever de regulamentar, no prazo de 90 (noventa) dias, as sanções aplicáveis ao descumprimento da referida norma, reveste-se de inconstitucionalidade, por violar o princípio da separação de poderes e da atribuição ao Chefe do Executivo do poder de expedir decretos”.
CONCLUSÃO
“Portanto, conclui-se pela procedência da presente ação, com a consequente declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 12.479/2025, do Estado do Espírito Santo”, finaliza Casagrande, no documento subscrito por dois procuradores do Estado.
