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Coluna João Gualberto

João Gualberto | A violência policial

A violência não é apenas um traço do passado, mas um desafio do presente que exige reflexão e ação coletiva

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Refletir sobre a violência é o primeiro passo para construir uma sociedade mais justa. Foto: Agência Brasil

Refletir sobre a violência é o primeiro passo para construir uma sociedade mais justa. Foto: Agência Brasil

A violência é um dos traços mais marcantes do Brasil, desde sempre. Ela é a marca histórica de uma sociedade que foi fundada pelos portugueses a partir de relações assimétricas não só com indígenas e africanos escravizados, mas também com os estratos menos favorecidos dos que vieram da Europa.

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Fomos fundados naturalizando relações violentas entre todos os membros desta nossa sociedade em que a vingança foi sempre moeda de ajuste de contas, feita com sangue. No regime escravocrata, que reinou entre nós por mais de 300 anos, o açoite era forma de punição e de implantação do medo. Sem o domínio medo a escravidão não se sustentaria.

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A coesão social das elites sempre se fez com o cabo do chicote na mão. A naturalização da violência é uma marca muito perversa. Os poderosos, sentindo-se donos da lei,  entendiam poder usá-la quando quisessem e contra quem escolhessem. É claro que os mais vulneráveis sempre foram os principais objetos das punições desmedidas e também dos ódios gratuitos, das relações de classe as mais odiosas.

Mesmo a modernização da nossa sociedade, trazida pelo republicanismo dos positivistas, pelo progresso material e das bases produtivas nacionais, foi feita com essa herança histórica. Basta observarmos como agiram os coronéis com a sua ideia de progresso e de melhoramentos, os verdadeiros agentes do capitalismo brasileiro. Mesmo que eles tenham marcado com seu estilo mais desenvolvimentista o enriquecimento trazido pelo café, pelo cacau, pela borracha, pela industrialização e os beneficiamentos por meio de novos serviços públicos, ainda assim eram figuras muito violentas.

Cada um dos grandes coronéis da segunda metade do século XIX e do início do século XX, grandes proprietários de terra, com suas milícias privadas – seus pequenos exércitos – distribuía uma ordem e uma justiça que lhes eram muito particulares. Eles ainda portavam traços herdados da situação colonial. Muito tardiamente ainda permanecia entre nós essa naturalização da violência.

Analisei em alguns artigos essas marcas em grandes autores da literatura capixaba. Em todos eles consta que as delegacias do interior eram lugares onde se distribuíam bordoadas, segundo critérios socais, em pretos, pobres, gente sem propriedade. Os pobres sempre foram os que sofreram no próprio pelo as dores dessa nossa tragédia social.

A violência sempre se deu sobre os elos sociais mais frágeis, somente para lembrar a todos como se construíram as formas como vivemos a violência policial no Brasil. Assim, os fatos largamente noticiados sobre o que anda se passando na ação da Polícia Militar de São Paulo são comuns a todas as forças da ordem no Brasil. O crescimento recente de setores de extrema direita, sua defesa do porte de armas pelas pessoas comuns, seu suporte ao retorno de padrões ditatoriais de gestão do estado e do aparato policial, certamente agudizaram muita coisa, mas estão longe de ser a origem desses fatos. Claro que as palavras têm poder. Não se pode glorificar atos selvagens. Os gestos mal pensados dos atuais donos do poder nada têm de dignificante. Eles devem mesmo se desculpar perante a população, afinal seus atos ou omissões foram gatilhos para situações horríveis. Os dispositivos internos das Polícias Militares, feitos para beneficiar e proteger  os profissionais mais violentos, devem ser extintos.

Entretanto, o mais grave de toda essa questão da violência policial, muito noticiada em São Paulo, é que os dirigentes não se desculpam em público dizendo exatamente o pensam, são desculpas de fachada. Todos conhecem bem suas posturas de defesa permanente e até celebração dos atos violentos, que infelizmente soam como música aos ouvidos de milhões de brasileiros. Isso é o que parece ser a questão mais densa das nossas heranças culturais, das nossas raízes imaginárias sociais. Como é que se instituiu uma sociedade na qual, independentemente de seu lugar social, as pessoas aprovam o uso indiscriminado da força contra meros suspeitos? Nessa sociedade, quem vive nas favelas e periferias é sempre tratado como se fosse bandido pelas autoridades da ordem.

Está claro onde se localiza essa raiz, a origem desse fenômeno na nossa jornada histórica como sociedade, com a naturalização de padrões que nunca poderiam ser admitidos como naturais e na forma como essa realidade é vivida por grande parte dos brasileiros. A ação pedagógica de punir os atos violentos das forças da ordem não deveria dizer respeito somente aos dirigentes e policiais, embora eles sejam os atores sociais chave, mas sim a toda a sociedade, especialmente na parcela da população que aceita, apoia, justifica e naturaliza grandes barbáries.

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João Gualberto

João Gualberto é professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA). Também foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018. João Gualberto nasceu em Cachoeiro do Itapemirim e mora em Vitória, no Espírito Santo. Como pesquisador e professor, o trabalho diário de João é a análise do “Caso Brasileiro”. Principalmente do ponto de vista da cultura, da antropologia e da política.

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