Coluna João Gualberto
Coisa de rico
Analisar o mundo dos ricos, famosos e poderosos é uma forma consistente de encontrar um eixo de sustentação da coesão em uma sociedade tão hierarquizada e desigual

Coisa de rico. Foto: Freepik
Li recentemente o livro cujo nome dá título ao artigo desta semana, e cujo subtítulo é a vida dos endinheirados brasileiros, escrito pelo antropólogo Michel Alcoforado. Esse livro tem dado a ele muito espaço na mídia. Seus podcasts É Tudo Culpa da Cultura encontram-se entre os mais ouvidos nos últimos tempos. É realmente um autor que tem muito conteúdo e que encontrou na ostentação típica da sociedade brasileira um bom vetor de análise.
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Analisar o mundo dos ricos, famosos e poderosos é uma forma consistente de encontrar um eixo de sustentação da coesão em uma sociedade tão hierarquizada e desigual como a nossa. Justamente por essas mesmas razões é que me ponho, há muito tempo, a estudar o mundo dos coronéis e do coronelismo como a origem do nosso sistema político, extremamente autoritário desde suas raízes até suas manifestações no tempo presente. O mundo dos ricos nos ajuda a desvendar o imaginário social de toda uma sociedade, é uma janela analítica.
A antropologia brasileira tem ajudado muito a entender O que Faz do Brasil, Brasil – como já escreveu outro brilhante antropólogo, o professor Roberto DaMatta, autor do antológico Carnavais, Malandros e Heróis, que nos anos 1970 nos ensinou sobre o malandro e sua ética, o jeitinho brasileiro e as inversões do carnaval, que fazem a vida ficar suportável neste vale de lágrimas brasileiro. DaMatta é um gigante do pensamento social brasileiro, um intelectual maior que nos brinda até hoje com inteligentes artigos no jornal O Estado de São Paulo.
Outro brilhante intelectual nessa mesma seara é Juliano Spyer, autor de O Povo de Deus: Quem são os Evangélicos e por que eles importam, livro publicado em 2020, que esclarece as razões pelas quais esse fenômeno de sociedade é tão importante. Com um olhar livre de preconceitos, Spyer nos ensina a profundidade do que se passa nesse universo. Com ele aprendi que, enquanto o conjunto da sociedade brasileira não entender por que os pobres da periferia – que professam o chamado neo pentecostalismo com tanta convicção – aderiram ao discurso da prosperidade e a uma leitura conservadora da bíblia, não sairemos dos enormes impasses que nos cercam e nos impedem se ser uma nação mais justa com todos. Há nesse contexto muitas outras razões além do que articulam os que os acham apenas vítimas de pastores charlatões.
Finalmente, chego ao livro que acabo de ler: Coisa de Rico. Ele é a versão – certamente adaptada para um público maior – da tese de doutorado em Antropologia Social de Michel Alcoforado, que há anos se dedica a pesquisar o impacto do consumo na vida dos brasileiros. Para ele há um traço comum a boa parte dos endinheirados brasileiros: eles não se consideram ricos. Por mais variados que sejam os costumes, a origem e a quantidade de dinheiro, o fato é que não existe um critério absoluto para a riqueza no Brasil. Aqui ela é relacional, e é justamente nesse aspecto relacional que a antropologia exerce sua enorme capacidade explicativa do universo cultural dos brasileiros. O texto do livro lembra que sempre haverá alguém com mais dinheiro, mais pompa, mais patrimônio, mais próximo do topo da pirâmide.
Como a questão é relacional, o que determina o mundo dos ricos, para si mesmos, são sinais visíveis somente para quem compartilha dos mesmos valores. Ele nos mostra que dois grandes grupos existem dentro do mundo dos ricos: os bem-nascidos e os novos-ricos. Os que pertencem ao grupo dos novos-ricos precisam mostrar seus sinais visíveis de riqueza a todos. Afinal, mesmo que tenham conseguido emergir da massa de dificuldades dos empreendedores que construíram fortuna com seus esforços, ainda terão parentes e amigos no mundo do qual tentam a todo momento se afastar. Por isso os rolex de ouro, os procedimentos estéticos, o corpo magro e malhado, as leituras performáticas, enfim, todo o comportamento caricato que busca demonstrar o quanto a pessoa se aproxima dos ideais dos endinheirados.
Por outro lado, os bem-nascidos não fazem compras em Miami e nem ostentam ouro por todo o corpo. Ao contrário, são discretos. Os sinais de sua riqueza só são entendidos pelos que sabem ler os códigos. Roupas caríssimas feitas de forma exclusiva, mas sem marcas ostensivas, que só quem sabe que custa muito caro entende. Sinais para um mundo de dentro, que exclui com força, perversidade e elegância.
Eu diria que estamos no Brasil dos jogadores de futebol ricos, das influenciadoras de fortuna recente, dos grandes pastores midiáticos, dos chapelões do agronegócio, do breganejo. Estamos todos sujeitos, o tempo todo, a uma cafonice estética massificada a partir desses sinais visíveis de riqueza. O que nos faz, na verdade, mais pobres, distantes das nossas raízes e próximos a universos que nos afastam de nós mesmos.
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