Coluna Inovação
Fla-Flu: 40 minutos antes do nada
O futebol tem o aspecto inigualável de criar um ambiente de conversas entre o doutor e o porteiro, entre o funcionário e o patrão, entre o milionário e o pé rapado. A paixão e a zoação acontecem nos ambientes mais sérios. Que bom que as mulheres agora participam em tudo: nos times, nos estádios, como juíza, bandeirinha, comentarista, narradora e presidente de clube. E entram na zoação.
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O futebol tem seu folclore com figuras como o ex-presidente do Corinthians Vicente Matheus para quem “o difícil, vocês sabem, não é fácil” ou o clássico “quem está na chuva é para se queimar”. Suas contribuições para o anedotário são intermináveis como quando disse que Sócrates era inegociável, invendável e imprestável, quando conclamava os corinthianos para naufragar nas urnas o seu nome ou quando reunia “seus braços direitos” como numa centopeia.
Houve filósofos como Jardel, ex-Vasco, para quem: “Clássico é clássico e vice-versa” e Neném Prancha, massagista, olheiro e técnico, famoso pelas frases de efeito, como o acaciano “o importante é o principal, o resto é secundário” ou “Bola tem que ser rasteira, porque o couro vem da vaca e a vaca gosta de grama.”, isso quando a bola ainda era de couro.
Soft power, hard power e market power
O maior cronista do futebol foi certamente Nelson Rodrigues, que escreveu por muitos anos a coluna “À Sombra das Chuteiras Imortais” onde, no seu estilo inusitado, passeando entre o real, o imaginário e o delirante, criou figuras inesquecíveis como o Sobrenatural de Almeida que faz jogador pisar em falso, distrai o juiz, desvia a bola e resultados óbvios são invertidos. Nelson explica: “Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana. Às vezes, num corner bem ou mal batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural.”
Outro personagem memorável, a grã-fina de narinas de cadáver, ao entrar pela primeira vez no Maracanã e observar aquele espetáculo admirável, faz a pergunta inesperada: “afinal de contas, quem é a bola?”. Tem ainda o Ceguinho Torcedor que vai de bengala para o Maracanã, mas é capaz de discutir pênalti, porque se não vê com os olhos, vê com o coração.
Torcedor fanático do Fluminense, Nelson costumava dizer que o Fla-Flu começou 40 minutos antes do nada, em um tempo imemorial. Nas situações de rotina, um “pó-de-arroz” pode ficar em casa abanando-se com a Revista do Rádio. Mas quando o Fluminense precisa de número, acontece o suave milagre: os tricolores vivos, doentes e mortos aparecem. Os vivos saem de suas casas, os doentes de suas camas e os mortos de suas tumbas.
Agronegócio planejado, digitalizado e biologizado
Mas ele também exaltava os adversários. Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte: – quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas tremem então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.
Nelson Motta definiu bem: “Torcedor, como o próprio nome diz, torce. Torce a realidade, a evidência, a ética e a ótica, movido por uma emoção incontrolável, em que a voz e a ação antecedem o pensamento”. Nelson vai adiante: “Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”.
O futebol não deveria ser motivo de tanta polêmica. Os torcedores poderiam ser mais razoáveis. Mas não consigo entender como alguém consegue torcer contra o Flamengo. Afinal, segundo Nelson, se Euclides da Cunha fosse vivo teria preferido o Flamengo a Canudos para contar a história do povo brasileiro.
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