Coluna Vitor Vogas
Por que a “presença” de Hartung pode atrapalhar a campanha de Guerino?
Candidato ao governo tem priorizado a campanha junto a evangélicos e militares, dois pilares do bolsonarismo e da “nova direita” brasileira, onde o ex-governador não atrai votos. Entenda a estratégia e os seus riscos
“O Espírito Santo precisa dar uma virada à direita”, defendeu Guerino Zanon (PSD) no último dia 1º, em discurso diante de pastores e seguidores de igrejas evangélicas neopentecostais. Colocando em prática a opinião, o próprio candidato deu visível guinada à direita desde que se lançou ao Palácio Anchieta – para ser mais específico, uma guinada em direção à direita bolsonarista. O ex-prefeito de Linhares tem procurado se aproximar cada vez mais das bandeiras e dos eleitores de Bolsonaro (entre os quais ele mesmo faz questão de se incluir).
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Como demonstramos aqui neste domingo (11), à medida que faz essa inflexão, Guerino afasta-se do ex-governador Paulo Hartung, de quem sempre foi parceiro e aliado político. A esta altura do campeonato, apesar do histórico de proximidade, qualquer associação direta ou manifestação de apoio do ex-governador a Guerino teria mais a atrapalhar do que a contribuir com a estratégia de campanha escolhida pelo candidato do PSD. Mais que isso: seria incoerente com tal estratégia. Na sequência explicamos por quê.
A busca por votos dos militares
Em seu esforço para se firmar nesse campo e atrair a simpatia de eleitores mais fiéis de Bolsonaro, Guerino tem concentrado sua campanha em dois segmentos sociais que constituem dois pilares do bolsonarismo, ou de um fenômeno sociopolítico maior, denominado por João Gualberto Vasconcellos como a “nova direita brasileira” – a qual, como sustenta esse cientista político, vai muito além da pessoa de Bolsonaro. Refiro-me aos evangélicos, notadamente os da matriz neopentecostal, e aos militares.
No caso desses últimos, Guerino tem feito uma série de acenos à categoria (especificamente, aos policiais e bombeiros militares, que são forças de segurança estaduais).
Antes do fechamento das chapas e candidaturas, sua campanha chegou a cogitar como candidata a vice-governadora a Capitã Estéfane (Patriota). A ideia não evoluiu, e a vice-prefeita de Vitória manteve a candidatura a deputada federal.
Guerino também incluiu, em seu plano de governo, a proposta de “ampliar o debate no Estado sobre o excludente de ilicitude”. Ao ser sabatinado por empresários no dia 29 de agosto, afirmou que o atual governador, Renato Casagrande (PSB), não cumpriu acordos com a categoria relativos a reajustes salariais e declarou o seguinte:
“As polícias têm que parar de ser tratadas como agentes que matam. Não. Polícia é igual a médico: salva. Mas, para isso, eles precisam ter cabeça. Têm que ter um bom salário. Têm que sair de casa com a certeza de que estão ali para defender a sociedade. Eles querem isso.”
A inserção no meio evangélico
Já no caso dos evangélicos, a agenda de campanha de Guerino fala por si. Uma olhada na série de compromissos do candidato em cultos, comícios (por vezes ambos se confundem) e reuniões com entidades que representam igrejas de denominações evangélicas revela o tamanho do esforço do candidato em desbravar o território dos pastores e angariar simpatia, apoio e votos desses líderes religiosos e, por conseguinte, de seus milhares de seguidores. Mais que um “círculo bíblico”, a agenda de Guerino corresponde a uma “maratona espiritual”.
Para me ater a um exemplo, darei um que é muito simbólico: a participação e o discurso do ex-prefeito de Linhares no comício promovido, no dia 1º de setembro, pelo Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política (Fenasp), no Espaço Patrick Ribeiro (Vitória). Na ocasião, a entidade – que apoia Bolsonaro à Presidência – também firmou apoio a Guerino e a Manato para o governo do Estado.
Após uma fala do bispo Bruno Gouveia, apoiador de Guerino, alardeando o risco de fechamento de igrejas, uma oração pelos Três Poderes e uma pregação do pastor Romerito Oliveira defendendo que cristãos precisam ocupar todos os espaços de poder, pois essa é “a vontade de Deus”, Guerino subiu ao palco.
Como tem feito desde as primeiras entrevistas, declarou-se cristão, conservador, de direita e apoiador de Bolsonaro. Por vinte minutos, fez um discurso baseado no antagonismo entre “cristãos conservadores” e “socialistas” (nós contra eles). Foi nesse pronunciamento, aliás, que o candidato defendeu que “o Espírito Santo precisa dar uma virada à direita”. Também manifestou apoio a Magno Malta (“nosso futuro senador da República”) e anunciou pacto com Manato de apoio mútuo no segundo turno.
Guerino ainda assinou uma Carta de Princípios formulada por pastores do Fenasp (a qual Hartung jamais teria firmado), comprometendo-se com uma agenda ultraconservadora. Entre os nove pontos, ser contra a “ideologia de gênero” e, ipsis litteris, a “agenda gayzista”, ser contra o passaporte sanitário e formar uma “aliança conservadora contra partidos e coligações de esquerda”, além de todo um contorcionismo retórico para relativizar o preceito constitucional de que o Estado brasileiro é laico e defender que igrejas devem, sim, participar dos debates e das decisões políticas.
E por que nada de Hartung?
Com base no rumo dado por Guerino à sua campanha, por que a “presença” de Hartung a esta altura só teria a prejudicar seus planos? Simples: tanto num segmento como no outro, o ex-governador não é exatamente um ídolo político.
No caso dos militares, não é preciso ir além da greve da PMES em fevereiro de 2017, deflagrada quando o então governador era submetido a uma delicada cirurgia contra um câncer de bexiga, em São Paulo. Basta remetermos às razões usadas como justificativas para o movimento – baixos salários, más condições de trabalho e a alegada falta de diálogo por parte do governo – e, principalmente, à reação do Palácio Anchieta, que em momento algum transigiu com a greve realizada à margem da legalidade.
Logo após o fim da paralisação, vieram a reestruturação da PMES, com a extinção de unidades, e a nova lei estadual, de autoria de Hartung, que mudou os critérios para as promoções na tropa. O coronel que assumiu o comando-geral da PMES nos primeiros dias da greve, Nylton Rodrigues, e o que o sucedeu em 2018, Alexandre Ramalho, jamais apoiaram o movimento (repito: sem amparo na Constituição).
Por óbvio, se a insatisfação de policiais com Hartung já era grande no seio da tropa quando a panela de pressão explodiu, o caldo de ressentimento que transbordou no pós-greve dura até os nossos dias. E ainda escorre até os pés de PH.
Um liberal convicto
Quanto aos evangélicos, é um pouco mais complexo… Em síntese, porém, o ex-governador é um democrata liberal forjado na resistência política à ditadura e que não comunga com essa visão de mundo e com esse modo de fazer política intensamente influenciado (para não dizer ditado) por crenças religiosas.
Eu poderia remontar ao fato de ele ter iniciado a militância política nas fileiras clandestinas do Partido Comunista Brasileiro (PCB) lá nos anos 1970, enquanto esses pastores combatem abertamente “o comunismo”, a “esquerda maldita” etc. Mas não é preciso ir tão longe. Darei dois exemplos recentes de como Hartung não tem nada, mas absolutamente nada a ver com essa ideologia político-religiosa que se pretende não ideológica.
Em setembro de 2017, como parte do sentimento ultraconservador que encontrou expressão política e eleitoral em Bolsonaro no ano seguinte, espalhou-se por Casas Legislativas Brasil afora uma onda de projetos de lei com o mesmo escopo: censurar artistas, determinar o que é “arte” e proibir a exposição da nudez humana em obras e apresentações. A onda foi impulsionada pelo episódio em que uma criança interagiu com um artista plástico nu durante uma performance no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo.
Um dos filhotes desse furor foi um projeto de lei estadual apresentado pelo então deputado Euclério Sampaio. A inconstitucionalidade era gritante. A redação era muito ruim, a justificativa idem e a finalidade, pior ainda, mas o projeto foi aprovado com folga em plenário. Hartung nem hesitou em vetar a matéria escabrosa e, após articulação com sua base, o veto foi mantido na Assembleia.
Outro exemplo veio logo depois, em 2018, durante a sabatina anual do governador aos deputados na Assembleia. Em sua vez de interpelar Hartung, o pastor e então deputado Esmael Almeida, da base e do mesmo partido que o governador (MDB) à época, fez-lhe uma pergunta relacionada ao de sempre: contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, contra a “ideologia de gênero” nas escolas etc. Deu a impressão de que pensava ter levantado a bola para Hartung “cortar”, ou pelo menos concordar com ele… Mas, no lugar de um “É isso aí!”, ouviu praticamente um “Não é por aí, deputado…”.
Hartung não apenas não endossou o discurso de Esmael como, cuidadosamente, censurou o aliado em público: defendeu o respeito à pluralidade de ideias e de estilos de vida e opinou que era preciso tomar cuidado com manifestações de intolerância.
Os três parceiros de Guerino
Se “diga-me com quem andas e te direi quem és”, uma rápida olhada nos principais aliados que cercam Guerino nesta campanha nos dão uma ideia perfeita da inflexão feita por ele. Em aparições públicas, três nomes destacam-se.
O primeiro é o deputado federal Evair de Melo (PP), candidato à reeleição, um dos vice-líderes do governo Bolsonaro na Câmara e um dos mais bolsonaristas entre os muitos deputados federais bolsonaristas da atual bancada capixaba. Evair foi um dos primeiros a expressar apoio público a Guerino, em meados de maio. Teve influência na escolha do candidato a vice, o empresário do setor cafeeiro Marcus Magalhães (PSD).
O segundo é o vereador de Vila Velha Devanir Ferreira (Republicanos), candidato a deputado federal e pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. Quase como uma sombra, Devanir tem acompanhado os passos de Guerino em sua procissão por cultos e reuniões com líderes evangélicos. Foi importante para garantir a Guerino o apoio do pastor Bruno Gouveia, um dos maiores líderes da Universal no Espírito Santo.
O terceiro é o presidente da Câmara de Vitória, Davi Esmael, principal candidato a deputado estadual pelo partido de Guerino e outra figura constante ao lado do ex-prefeito em campanha. Por muito pouco, Davi não se tornou candidato a vice de Guerino, posto que acabou com Marcus Magalhães na hora H do dia D para registro das chapas (15 de agosto).
Davi é filho do pastor e ex-deputado Esmael Almeida (aquele da divergência com Hartung) e, como vereador, é conhecido por suas posições políticas pautadas por princípios evangélicos. Foi importante para emplacar Guerino, ao lado de Manato, como um dos dois candidatos a governador apoiados pelo Fenasp, presidido no Espírito Santo pelo pastor Romerito Oliveira, aliado de Davi e diretor-geral da Câmara de Vitória.
O risco da estratégia de Guerino
Independentemente de convicções ideológicas, essa guinada do ex-prefeito obedece a uma estratégia eleitoral.
É uma estratégia arriscada.
Em vez de expandir, pode limitar por demais o seu potencial de crescimento.
No Espírito Santo, os domínios do bolsonarismo raiz já têm “dono” há alguns anos. Desde antes de Bolsonaro chegar ao Planalto, quando Manato ainda era colega dele no baixo clero da Câmara Federal, o agora candidato a governador pelo PL vem fazendo, diligentemente, em manifestações de rua e nas redes sociais, um trabalho para se firmar como principal referência política desse bolsonarismo mais enraizado, fidelizado e fanatizado entre os capixabas.
Agora, é natural que aquele voto mais apaixonado e mais ideológico em Bolsonaro aflua para o ex-deputado federal na eleição ao Palácio Anchieta. Qual é o tamanho desse estrato do eleitorado capixaba? 20%? 30% Não se sabe ao certo. Mas pode ser o bastante para guindar Manato ao 2º turno contra Casagrande.
Talvez, em vez de ficar disputando com Manato esse mesmo segmento onde o concorrente à direita já está estabelecido há mais tempo, Guerino devesse ter se concentrado desde o início em roubar votos do próprio Casagrande ao centro: aquele eleitor que não vota em governador por ideologia e que talvez não esteja muito satisfeito com o governo Casagrande, junto ao qual o discurso “sou gestor de verdade” poderia surtir maior efeito.
Adendo: duas linhas de campanha
Inclusive, a propaganda de Guerino na TV e sua agenda e seus discursos de campanha parecem seguir por vezes duas linhas independentes. Na TV, exceto por um programa veiculado até agora, o que sobressai é o ex-prefeito realizador de Linhares, competente em gestão pública, capaz de fazer muito mais pelo Estado, ideia reforçada sob o slogan “Bora, Espírito Santo!”, com que o candidato assina cada aparição.
A exceção foi o programa exibido na última segunda-feira (5), em que se mostrou justamente a participação de Guerino no evento do Fenasp e alguns trechos de suas falas.
Já na agenda e nos discursos nesses eventos voltados para evangélicos, o que sobressai é o candidato “conservador cristão de direita”.
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