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Individualismo e coletivismo: a soberania popular democrática como instrumento de opressão do indivíduo
Artigo questiona a Opressão Democrática ao analisar conceitos de Rousseau: soberania popular, idealizada como vontade coletiva ‘invariavelmente reta’

Artigo questiona a Opressão Democrática ao analisar conceitos de Rousseau: soberania popular, idealizada como vontade coletiva ‘invariavelmente reta’, é criticada por anular o indivíduo em prol de um projeto social coercitivo, segundo visão de Bertrand de Jouvenel. Foto: Freepik
Absolutismo. Tirania. Opressão. São várias as justificativas ensinadas sobre a importância dos valores iluministas que fundamentam a democracia moderna. O resumo de todas essas narrativas é o mesmo: havia um período no qual os reis absolutistas detinham o direito ilimitado do Poder. O povo, cansado dos mandos e desmandos reais, depôs os monarcas e instaurou a democracia, o único sistema político no qual o povo é o verdadeiro soberano e que, portanto, confere uma legitimidade moralmente aceitável para o exercício do Poder.
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No entanto, percebe-se que não há nada mais falso. Esta ideia de que “todo poder emana do povo” está incrustada de forma tão profunda no pensamento ocidental moderno que é o fundamento axiológico de boa parte dos Estados contemporâneos. No Brasil, por exemplo, a ideia da soberania popular democrática está consagrada logo no Artigo 1º da Constituição Federal, o que demonstra a sua vital importância não só para os demais valores constitucionais, como para o ordenamento jurídico como um todo.
Com tão boas referências, chega a ser inconcebível que logo Rousseau, aquele que concebeu tão brilhante ideia, encare o indivíduo não como o fim de todo o organismo social, mas como uma engrenagem de um modelo ideal de sociedade. Sim, porque é evidente que o objetivo das instituições é (pelo menos deveria ser) garantir ao indivíduo os meios necessários para que ele possa livremente desenvolver plenamente as suas potencialidades. Não para Rousseau.
No “Contrato Social”, ele afirma, surpreendentemente, que a vida dos cidadãos é um dom condicional do Estado. É o Estado que concede-lhes a graça de estar vivo, de forma que pode retirar-lhes tal dádiva a qualquer momento:
“Quem deseja conservar sua vida a expensas dos outros também deve dá-la por eles quando necessário. Ora, o cidadão já não é juiz do perigo ao qual a lei quer que ele se exponha, e, quando o príncipe lhe diz: ‘É útil ao Estado que morras’, deve morrer, pois foi somente graças a essa condição que até então viveu em segurança e que sua vida já não é apenas uma dádiva da natureza, mas um dom condicional do Estado.”¹
À primeira vista, essa afirmação pode parecer estranha. No entanto,uma análise crítica revela sua coerência com os objetivos do projeto iluminista. O conceito de soberania popular, como pontuou Bertrand de Jouvenel, é um monstro porque atribui o poder ilimitado de comando a algo extremamente volátil como a vontade popular. No mito rousseauniano, não é apenas a soma das vontades individuais, mas uma vontade objetiva, “invariavelmente reta e tende sempre à utilidade pública”. É notório que, perante uma vontade coletiva tão esmagadora, o indivíduo torna-se, coerentemente, dispensável, se não concorrer para tal verdade tão bondosa e salvadora.
O indivíduo, portanto, deixa de ser o centro da sociedade para se tornar uma mera engrenagem. Uma engrenagem sem nome, sem vontade, sem brilho; que deve, sempre, conformar-se à vontade popular, uma vez que ela é invariavelmente reta; que deve dizer “amém” ao seu algoz e idolatrar-lhe por conceder-lhe a graça de estar vivo. Nesse ambiente, é impossível que haja a valorização do indivíduo como a pedra angular da sociedade, e de que esta existe apenas para servi-lo. Lutar pela liberdade individual, portanto, implica não só uma luta pelos direitos individuais, mas lutar contra os próprios fundamentos opressores do ordenamento jurídico. Só assim será possível, como dito acima, a verdadeira liberdade para o desenvolvimento da personalidade.
*Carlos De’Carli Filho é estudante de Direito da FDV e membro do IBEF Academy.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do ES360.
