Coluna João Gualberto
Coluna João Gualberto | Teoria da solidão
Quando o Estado regula até os vínculos afetivos, a solidão deixa de ser apenas um sentimento e se transforma em política

A solidão dos tempos modernos revela não apenas ausência de companhia, mas uma mudança profunda nas formas de viver e se relacionar. Foto: Freepik
Escrevi há algumas semanas neste mesmo espaço um texto sobre a solidão em nossos tempos. Na verdade, minha intenção foi mostrar que existe atualmente uma apropriação da solidão pelas redes sociais. Citei, inclusive, que há uma “economia da solidão”, a qual opera oferecendo produtos e serviços que vão desde encontros e pornografia até a terapia realizada pela Inteligência Artificial. Não quero igualar essas coisas, apenas lembrar que elas existem.
> Quer receber as principais notícias do ES360 no WhatsApp? Clique aqui e entre na nossa comunidade!
Recebi alguns comentários muito interessantes, como é de hábito, mas um deles foi feito por Nathalia Alves, pessoa de sólida formação intelectual e amiga querida que, de certa forma, ajudei a criar, e por quem nutro admiração e respeito. Ela indicou um documentário sueco de 2015 dirigido por Erick Gandini, que oferece um olhar crítico sobre as ideias e práticas do que poderíamos chamar de “individualismo estatal”. Isso porque, segundo os críticos, a maioria dos benefícios oferecidos pelo governo no que tem sido chamado de Estado Sueco do Bem-Estar Social está ligado a cada indivíduo e não em famílias, como ocorre em outros países do mundo. Em sueco, essa ideologia é chamada de “individualismo estatista”.
O documentário mostra como a sociedade sueca criou um manifesto público sobre a independência de todos frente a todos, inclusive entre pais e filhos e vice-versa. Nesse contexto, o estado assume essa função reguladora. Como consequência existem, entre outras, políticas públicas de incentivo à concepção das mulheres por meio da inseminação artificial, o que faz com que a função paterna se altere inteiramente. Sem saber a origem familiar do doador masculino, as crianças são criadas somente pela mãe. Os vínculos familiares são muito mais restritos. É uma forma de fortalecer essa política pública.
Além disso, o estado pode disciplinar os que queiram – na visão sueca – exceder seus direitos. A ideia central é criar indivíduos independentes e livres de uma autoridade que, no nosso mundo latino, atribuímos ao amor, embora seja uma ideia sobre a qual precisamos nos aprofundar. Aquela mãe cuidadora e centralizadora de amor e controle, que Woody Allen gosta de explorar de forma exagerada em seus filmes, tende a ficar totalmente ausente nesse tipo de sociedade, tanto para o bem quanto para o mal.
É importante esclarecer que estou me atendo ao texto do documentário, sem conhecer outros olhares. Por meio dele, infere-se que o manifesto que instituiu esse comportamento por parte do estado, desde de 1972, acabou por radicalizar o individualismo sueco. Não que ele não exista em outras sociedades. Antes, pelo contrário, nos países europeus e nas sociedades mais ricas e cultivadas do mundo, a tendência ao individualismo é muito clara. O papel das famílias nas sociedades tradicionais entrou em colapso no mundo atual. As moradas com uma só pessoa tornaram-se muito numerosas.
Enfim, o que parece importante notar no exemplo que estou trazendo é o radicalismo como política pública, enfraquecendo a vida social mais espontânea. Segundo Gandini, o resultado prático é que muitas e muitas pessoas idosas que vivem sozinhas, apartadas de vínculos sociais mais densos, terminam a vida muito solitárias. São frequentes as mortes dos mais velhos que não são nem mesmo percebidas. Nesses casos, um serviço importante que existe é o de recolher os restos mortais dessas pessoas. São frequentes os casos que duram até dois anos para serem executados. Ninguém percebe essas mortes, o que mostra que a solidão era a mais intensa possível.
O que me parece mais importante, do ponto de vista das análises que venho fazendo da vida em nossos tempos, é como esse caminho radical está presente mesmo nos setores sociais mais privilegiados das grandes cidades, inclusive as brasileiras. As famílias muito ampliadas que havia nos séculos que antecedem ao nosso estão mesmo desaparecendo. Os velhos coronéis e sua parentela, que costumavam mandar em todo um território, vão mesmo ficando para trás.
A tendência normal hoje é o individualismo. Ele de fato trouxe um nível de liberdade individual extraordinário, o que é muito bom, mas isolou cada um em si mesmo, dificultando a espontaneidade do amor. É claro que o amor é uma instituição imaginária social, que é vivida de forma diferente em cada sociedade específica.
Para nós, brasileiros, é muito difícil entender essa Teoria Sueca do Amor, onde ele é fortemente ligado à ideia de dependência. Vamos admitir que, de alguma forma, ele realmente o é. Os homens, sobretudo, gostam de forçar esses vínculos em suas relações. Mas, convenhamos, a paixão é um momento em que os amorosos se fundem. Penso ser difícil que o amor sobreviva, do modo como o conhecemos, frente a um individualismo regulado pelo estado.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do ES360.
