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Coluna Vitor Vogas

Entrevista: a ascensão dos evangélicos na disputa eleitoral no Brasil

Especialista no tema, o cientista político Vinicius do Valle explica o crescimento da presença e da importância desses segmentos religiosos (plural) nas eleições, a agenda em comum e as diferenças entre eles

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Professor Vinicius do Valle é entrevistado por Kaká (à esquerda) e Vitor Vogas (à direita)

Os evangélicos estão imprimindo uma mudança não só demográfica, mas também política no Brasil. Hoje estimados em cerca de 30% da população brasileira, eles podem se tornar a maioria já na próxima década.

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Consequentemente, é provável que a sua agenda de costumes, que dá ênfase a temas como família e valores cristãos, ganhe nas próximas eleições uma importância ainda maior do que já tem. O peso do “voto evangélico” já se fez sentir nas eleições gerais de 2018 e tende a ser ainda mais decisivo no pleito de outubro.

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As considerações acima são todas do professor Vinicius do Valle, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), diretor do Observatório Evangélico e autor, entre outros trabalhos, de Entre a Religião e o Lulismo (2019). Com o conhecimento de quem se dedica há mais de uma década a pesquisas de campo junto ao segmento evangélico, ele explica abaixo o crescimento da presença e da importância desse estrato social nos processos eleitorais do país, em entrevista concedida a mim e a Antonio Carlos Leite, o Kaká, no EStúdio 360.

Na conversa, Do Valle explica a influência dos pastores na definição do voto dos fiéis; o peso crescente da pauta moral nessa tomada de decisão; o porquê do atual predomínio de Bolsonaro dentro de tal segmento; o que a esquerda e Lula podem fazer para atrair ao menos parte desse eleitorado; a “endogenia” que em geral caracteriza os grupos evangélicos; e as substanciais diferenças existentes entre as denominações que compõem esse na verdade multifacetado universo.

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Confira:

Pelo senso comum, até nós, jornalistas, tendemos a generalizar: tratamos o grande universo evangélico como um bloco monolítico, homogêneo, como se todos pensassem da mesma forma. Mas isso está longe de ser uma premissa correta. Explique para nós, por favor, como são as divisões e ramificações do eleitorado evangélico.

Costumamos falar “evangélico”, no Brasil, pegando todo aquele cristão que não é católico. Isso é uma forma generalista de olhar esse grupo, que é bastante heterogêneo e multifacetado. Temos algumas formas de classificação para entendermos melhor esse universo. Em primeiro lugar, é importante distinguir os evangélicos históricos dos pentecostais. Por “históricos” me refiro àquelas igrejas que vieram a partir da emigração europeia: luteranos, batistas, anglicanos, metodistas… Esse é um primeiro universo. São igrejas mais tradicionais, que têm um tipo de culto mais formal, mais introspectivo inclusive. Depois nós temos os “pentecostais”. O que define o “pentecostalismo” é a crença na atualidade dos dons do Espírito Santo. Então os cultos pentecostais são mais efusivos, são aquilo que esse grupo chama de “vivos no espírito”. Mas, dentro desse grupo, também temos divisões importantes. Temos aqueles pentecostais clássicos, que são principalmente aquelas denominações da Assembleia de Deus, da Congregação Cristã do Brasil, que já têm mais de cem anos no país. Além disso, temos no Brasil uma segunda leva de pentecostais, ali nos anos 1950, 1960. E, a partir dos anos 1970, temos uma terceira leva, que é o que chamamos de “neopentecostais”. Esse grupo neopentecostal tem diferenças significativas em relação aos pentecostais que estavam anteriormente aqui em solo nacional. Eles têm uma ênfase maior na questão da prosperidade, têm uma ênfase maior na questão da “guerra santa”, dessa disputa do “bem contra o mal”, e têm um tipo de culto mais, digamos, moderno, com música gospel, enfim, uma relação mais próxima a essa cultura jovem. Isso é uma diferença considerável em relação aos grupos anteriores. Mas agora é importante considerarmos que essas características do neopentecostalismo vêm sendo absorvidas por esses grupos pentecostais que já estavam no Brasil e também por algumas igrejas históricas. O campo religioso é muito dinâmico, e estamos vendo essas mudanças acontecendo a todo tempo.

Qual é efetivamente a capacidade de influência que os pastores têm sobre esse eleitorado? Isso varia de acordo com a igreja evangélica? Eles têm realmente uma influência forte na definição dos votos das pessoas que frequentam suas igrejas?

Certamente os pastores têm uma influência. E isso nós podemos ver pelo tipo de religiosidade e assiduidade que existem nesses espaços. O evangélico geralmente vai mais ao culto do que o católico vai à missa, do que o espírita vai à sua sessão espírita, enfim, ele tem um contato maior com o seu pastor e geralmente ele tem, principalmente nas periferias, uma rede mais endógena, ou seja, as relações que esse evangélico tem são mais limitadas dentro desses espaços religiosos. Isso traz uma influência importante dos pastores.

Isso que o senhor chama de “rede endógena” é mais ou menos o que se tem chamado atualmente de “bolha”? Um círculo de convivência muito restrito?

De certa forma podemos dizer que é um círculo de convivência mais restrito do que o dos membros de outras religiões, principalmente das classes mais altas. Quando falamos do evangélico principalmente pentecostal, estamos falando principalmente daquele morador de periferia e principalmente de mulheres, principalmente de pessoas negras. Em termos de características socioeconômicas, os evangélicos estão muito dentro desses grupos. Certamente há uma variação, em termos de influência política, de igreja para igreja, de eleição para eleição. Mas podemos falar, em termos mais gerais, que os evangélicos pentecostais (e aí englobando todos os tipos de pentecostalismo) têm no Brasil, nas últimas décadas, um nível de influência política maior do que os históricos, do que os mais tradicionais.

E eles são engajados. Nós vemos, principalmente nas redes sociais, que alguns pastores são mais politicamente engajados que outros. Esse engajamento que acontece nas redes sociais também acontece nos cultos, no contato diário com os frequentadores da igreja?

É um engajamento muito forte. Em certo sentido, vemos que as redes sociais são quase que uma extensão dos templos. É claro que temos diferenças na forma como o fiel se conecta com o seu pastor presencialmente e nas redes sociais. Mas o evangélico está usando bastante as redes sociais para se informar sobre como o seu pastor está se posicionando e também para entender outros pastores, outras igrejas.

Nas eleições gerais passadas, em 2018, notamos a ascensão muito forte de um discurso político-eleitoral que enfatiza a defesa dos valores cristãos por parte de uma infinidade de candidatos. Também despontou muito fortemente um discurso baseado na defesa da família, naquele sentido mais específico de “família tradicional”. É um discurso que fala diretamente ao eleitorado evangélico de forma geral. Em que medida isso funciona? Esse tipo de discurso realmente rende votos para esses candidatos?

Dá para dizer que funciona em certo nível, sim. Na última eleição, vimos esses temas ganhando bastante destaque. E, quando olhamos as pesquisas eleitorais, em especial aquelas que estão mais próximas do pleito, vemos um resultado muito próximo do que foi a votação de fato. E isso se dá porque os evangélicos votaram, em sua grande maioria, voltados para esses temas. Então, temas como família, aborto, legalização das drogas, são temas que ecoam muito dentro desse eleitorado. Em certo sentido, em certos estratos de renda, principalmente nos superiores, são temas que vão ser mais importantes do que, por exemplo, economia, inflação, emprego. Essas chamadas “pautas morais” são muito importantes dentro desse segmento. Se formos pensar que esse é um segmento que está crescendo muito no Brasil, podemos estimar que, nas próximas eleições, esses temas vão ganhar ainda mais destaque, porque se estima que, na próxima década, os evangélicos vão virar a maior parte da sociedade brasileira. E eles estão imprimindo essa mudança. E o destaque ainda maior dispensado a esses temas será uma das mudanças mais importantes.

Então, o senhor acredita que, neste pleito, a chamada “pauta de costumes” terá uma importância muito grande na definição dos votos do eleitorado cristão e conservador? Temos visto, por exemplo, uma série de candidatos tanto ao Executivo como ao Legislativo fazendo questão de se declarar “cristãos”, “conservadores” e “defensores da família”…

Certamente. Vemos que este pleito está sendo bastante marcado pelas questões econômicas. Estamos passando por uma situação social delicada, e nestes momentos a economia conta muito. No entanto, quando vamos ver entre os evangélicos, que são cerca de 30% do eleitorado brasileiro, essas pautas morais quase que rivalizam com a questão econômica. Então, certamente essa pauta vai ter um peso nesta eleição, sim. Tanto que todos os candidatos têm tentado dialogar com esse grupo, alguns com mais sucesso, outros com menos. Mas não tem mais como ignorar um grupo social dessa magnitude.

A divisão que existe hoje entre Lula e Bolsonaro é muito grande. Mas, no meio evangélico, pelo que apontam as pesquisas, há uma predominância muito forte do atual presidente da República. Esse é um quadro consolidado? Existe uma maneira eventual de o ex-presidente tentar conquistar esse voto? Ou existe uma possibilidade ainda de Bolsonaro ampliar o seu apoio entre os evangélicos?

Em 2018, tivemos 68% dos evangélicos votando em Jair Bolsonaro. Desta vez, vemos ainda um número bastante significativo, mas significativamente menor que esses 68% de 2018. Então, Bolsonaro tem, sim, maioria dentro desse segmento, mas me parece uma maioria menor do que em 2018. E o que estamos observando nas pesquisas é que existe um eleitorado evangélico oscilante entre esses dois candidatos, o que faz com que seja possível vermos mudanças na votação dentro desse segmento, inclusive porque o atual presidente tem uma grande penetração dentro desse grupo, mas defende pautas que de certa forma se chocam com alguns valores evangélicos também, como a questão dos armamentos, como uma certa agressividade no jogo político e na retórica política. Isso causa um afastamento, principalmente entre mulheres evangélicas. E as campanhas estão trabalhando para conseguir captar esse voto oscilante, indeciso. Por isso estamos num momento em que é um pouco delicado fazermos estimativas. Certamente, pelo histórico, podemos dizer que Bolsonaro terá a maioria dentro desse segmento. Mas o tamanho dessa maioria e o quanto isso será significativo para o rumo da eleição, ainda não sabemos.

Pensando especificamente em Lula e no PT, bem como na esquerda de modo mais amplo, parece que em algum ponto no meio do caminho eles deixaram de prestar atenção no segmento evangélico, não captaram o crescimento numérico e da importância política desse grupo e “perderam” a disputa por esse público. Talvez eles já tenham passado do ponto sem volta, porque a direita chegou na frente e hoje predomina nesse meio. Temos visto, porém, um esforço da campanha de Lula para recuperar pelo menos parte desses eleitores. Isso ainda é possível? De que maneira a esquerda ainda pode “disputar” esse estrato do eleitorado?

Na verdade, acho que não é nem que o PT tenha perdido o segmento evangélico. Ele sempre teve dificuldades junto a esse segmento. O PT tem uma origem bastante influenciada pelas comunidades eclesiais de base católicas. Já com as denominações evangélicas, o partido não tem historicamente uma relação. E esse é um dos motivos que explica essa dificuldade de comunicação com esse grupo. E existem mesmo figuras dentro dos partidos de esquerda que estão fazendo esse discurso: “Olha, nós precisamos nos aproximar desse grupo”. Só que, na minha opinião, isso tem que ser feito para além do momento eleitoral. Tem que ser feito num cotidiano de relação junto a esses grupos. Esse é um ponto fundamental para entendermos essa dificuldade: essa relação cotidiana não existe. Em certo, sentido, também podemos ver que pautas que movimentos de esquerda defendem fazem certo antagonismo, no debate público, com pautas defendidas pelos políticos evangélicos e pelo eleitorado evangélico. Falávamos há pouco de pautas relacionadas a família, sexualidade, aborto etc. Nessas pautas morais, vemos certo antagonismo de movimentos que são próximos do PT e da esquerda, como os movimentos feministas, LGBT etc., com o segmento evangélico. Mas isso não quer dizer que não possamos pensar em diálogos possíveis. Podemos pensar que a pauta da família, por exemplo, não diz respeito somente ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Podemos pensar, dentro desse guarda-chuva “família”, coisas como assistência social, menos desigualdade social etc., pautas que a esquerda poderia defender e dialogar com esse grupo. Mas até hoje não temos esse diálogo sendo efetivamente feito, o que explica esse afastamento.

Vitor Vogas

Nascido no Rio de Janeiro e criado no Espírito Santo, Vitor Vogas tem 39 anos. Formado em Comunicação Social pela Ufes (2007), dedicou toda a sua carreira ao jornalismo político e já cobriu várias eleições. Trabalhou na Rede Gazeta de 2008 a 2011 e de 2014 a 2021, como repórter e colunista da editoria de Política do jornal A Gazeta, além de participações como comentarista na rádio CBN Vitória. Desde março de 2022, atua nos veículos da Rede Capixaba: a TV Capixaba, a Rádio BandNews FM e o Portal ES360. E-mail do colunista: [email protected]

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