Coluna João Gualberto
A capitania austral
Pesquisas recentes revelam que a capitania austral, hoje Espírito Santo, já ocupava papel estratégico nos planos da monarquia portuguesa no fim do período colonial

Revelações históricas reposicionam o Espírito Santo como peça-chave na capitania austral do Império Português. Foto: Reprodução/TripAdvisor
A primeira vez que ouvi a expressão Capitania Austral foi assistindo a uma palestra da professora Adriana Campos, no Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, não faz muito tempo. Ela explicou do interesse das autoridades portuguesas em transformar a nossa capitania no centro nervoso do processo econômico brasileiro, no fim do período colonial. Isso mostra que a Capitania já era observada como elemento do projeto de futuro do império lusitano. Essa afirmativa causou surpresa, porque aprendemos que fomos o espaço do atraso e do marasmo, usados apenas para atenuar o risco de contrabandos e invasões em direção às Minas Gerais.
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Existe de fato uma convicção de que, durante todo o período colonial e imperial, fomos um território de pouca expressão e que disso resultou um enorme atraso em relação ao resto do Brasil. Evidentemente trata-se de constatações que não colaboram para a existência de uma autoestima acentuada por parte dos capixabas, já que aprendemos a olhar para o passado de forma desconfiada, mediante nossa suposta pouca relevância histórica.
Ocorre que as evidências das pesquisas históricas mais recentes apontam em outra direção. Prova disso é que, em capítulo de um livro ainda inédito a que tive acesso, há uma excelente reflexão da mesma pesquisadora e professora da Ufes, Adriana Campos – sempre na vanguarda – com o título Circuitos de poder e ocupação territorial: concessões e confirmações de cartas de sesmarias no Espírito Santo (1814-1831), em que ela toca no assunto de maneira muito profunda.
O texto analisa o processo de concessão e confirmação de sesmarias (cartas de doação de terras) na capitania do Espírito Santo o início do século XIX, entre o fim do período colonial e o início da nossa independência, com foco nos registros de demarcação e posse relacionados à titulação fundiária no Brasil. Com base em manuscritos do Arquivo Nacional e do Arquivo Público do Espírito Santo, o estudo combina análise diplomática de documentos, usando metodologia histórica bastante atual e sofisticada.
Dentre as inúmeras revelações históricas da maior importância para nós, capixabas, está uma que me chamou a atenção, quando a autora afirma que: a política de ocupação do Espírito Santo não começou abruptamente no período joanino, mas foi um processo gradual. Antes marginalizada pelas restrições administrativas para evitar o contrabando de ouro, a capitania tornou-se estratégica nos planos territoriais da monarquia. A partir de meados do século XVIII, a preocupação com a evasão fiscal deu lugar a uma visão integradora, aproveitando o papel logístico da capitania nas rotas de circulação entre o interior minerador e a costa atlântica.
Explica a autora que desde 1768 documentos em Portugal sugeriam uma reconfiguração da capitania do Espírito Santo. Propunha-se, por exemplo, mudar seu nome para “Província Austral do Rio Doce”, considerando-se que o nome atual “cheirava a direito feudal”. O que então se visava era conectar o litoral às Minas Gerais, facilitando a navegação pelo Rio Doce e beneficiando tanto essa região quanto Vila Rica.
Essas ideias antecipavam o esforço da Coroa em usar a distribuição de sesmarias para criar corredores econômicos e valorizar a região centro-sul do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
A partir de 1814 iniciaram-se na Capitania do Espírito Santo dois movimentos simultâneos de concessão de sesmarias para promover povoamento e conquista territorial, como muito bem sinaliza o estudo a que me refiro. O primeiro focou na fixação de colonos açorianos em Viana, fortalecendo a ocupação agrícola e criando núcleos populacionais, fato que é mais conhecido dos capixabas em geral.
O segundo ocorreu ao longo do rio Doce, visando criar uma via de escoamento para produtos de Minas Gerais, conectando o interior à costa atlântica. Ambos os movimentos, apesar de possuírem finalidades distintas — adensamento populacional e dinamização comercial — aconteceram simultaneamente, refletindo a intensificação das políticas régias no início do século XIX. Ressalte-se que essas políticas colocavam o nosso território no cento da vida do país que estava surgindo.
As informações e achados históricos nos quais se apoiam as afirmativas dessa pesquisadora de alto nível nos mostram que ainda temos muito o que aprender e desaprender sobre o nosso estado, cuja força e potência são percebidas há muito tempo.
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