Coluna Vitor Vogas
MPES cria 778 cargos efetivos… para manter 307 comissionados
A estratégia confirmada por Luciana de Andrade à coluna para reforçar o corpo técnico do MPES e, ao mesmo tempo, evitar uma iminente derrota no STF
Ao fazer uma primeira análise sobre a criação de 778 cargos efetivos a serem preenchidos por concurso público no Ministério Público Estadual (MPES), avaliei que a procuradora-geral de Justiça, Luciana de Andrade, está buscando fazer do limão uma limonada. A expressão foi bem escolhida. Quando você está a fazer uma limonada e sente que ela está muito amarga, pois o sabor dos limões ainda está muito concentrado, você não pode mais “tirar os limões”: eles já estão misturados na “solução”. O que você faz, então? Joga mais água e aumenta o volume da mistura, para diluir o amargor.
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É exatamente o que está fazendo agora a chefe do MPES, como a própria admite à coluna (sem usar essa expressão). Ao criar a previsão legal para o preenchimento de quase 800 cargos por concurso na instituição – por meio de lei estadual sancionada ontem (28) pelo governador Renato Casagrande –, Luciana pretende, é claro, fortalecer o corpo técnico do MPES. Mas busca também, antes de tudo, criar uma “solução” para conseguir manter os 307 cargos comissionados de assessoria criados em 2019 e hoje sub judice no Supremo Tribunal Federal (STF).
É isso mesmo: pode parecer um paradoxo, mas o MPES não está criando esses 778 efetivos para substituir comissionados em sua folha de pagamento. Está fazendo isso para não ser obrigado (pelo STF) a eliminá-los.
Como anotei aqui na última terça-feira (28), Luciana está buscando se antecipar a uma derrota iminente no julgamento em curso no STF de uma ação que objetiva a extinção daqueles 307 comissionados. Mas é um pouco mais que isso: o que ela busca na verdade é evitar um revés no Supremo que já se desenhava matematicamente, virando o jogo antes do apito final.
A partir da sanção da lei que cria 778 efetivos na estrutura do MPES – ainda que só no papel, por enquanto –, a procuradora-geral de Justiça pedirá formalmente aos ministros do Supremo o arquivamento da ação que ameaça a preservação dos 307 cargos em comissão, por “perda do objeto”.
Para isso, ela apresentará muito em breve aos ministros uma petição argumentando que a nova lei estadual resolve o problema da “desproporção” entre comissionados (limões) e efetivos (água) no MPES e que, portanto, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pela Associação Nacional dos Servidores do Ministério Público (Ansemp) não tem mais razão de ser.
Para entendermos melhor o que realmente está em jogo aqui e o movimento estratégico da chefe do MPES, precisamos dar dois passos atrás e apresentar ao leitor alguns números fundamentais.
Em julho de 2019, a Assembleia Legislativa do Espírito Santo aprovou projeto de lei do MPES – então conduzido por Eder Pontes (antecessor de Luciana de Andrade e aliado político dela) – que criou 307 cargos comissionados de assessoria na estrutura do órgão ministerial, sendo 216 deles para assessorar diretamente os promotores de Justiça em seu trabalho.
A ideia era que cada promotor de Justiça pudesse contar com um assessor indicado por ele mesmo. Cargos comissionados, sempre vale lembrar, são aqueles de livre nomeação. Dispensam, portanto, concurso público.
Àquela altura a Ansemp já havia movido uma ADI no STF contra o MPES, apontando o excesso de cargos comissionados no órgão no Espírito Santo, em detrimento de servidores de carreira. Com a lei estadual de 2019, a associação passou a questionar, na mesma ação, a legalidade desses novos 307 cargos de livre provimento. Para os autores da ação, isso fere de morte o artigo 37 da Constituição Federal, cujo espírito é, basicamente, o de que cargos comissionados devem ser a exceção e não a regra.
Hoje isso não é o que ocorre no MPES – ou pelo menos não era, literalmente até ontem. Preenchidos ou não, havia exatos 511 cargos comissionados na estrutura da instituição, para 517 efetivos. Vale dizer: a quantidade era praticamente a mesma e a relação, de 50%–50%. Para a associação de servidores, essa proporção é absurda: comissionados não podem representar metade do número total de vagas existentes.
Em fevereiro deste ano, teve início o julgamento da ação no STF, em sessão virtual do Pleno. O relator, ministro Edson Fachin, acolheu o pleito da Ansemp, reconhecendo a inconstitucionalidade do artigo da lei de 2019 que permitiu a criação dos 307 assessores comissionados. Em seu voto, Fachin apontou que de fato existe (ou existia, até então) total falta de proporcionalidade entre servidores efetivos e não efetivos no MPES.
O relator ainda deu ao MPES um prazo de 12 meses para resolver a questão. Como? Ele não diz isso em seu voto.
Mas, evocando aqui novamente a imagem da limonada, só há duas maneiras de fazê-lo: ou você retira o sumo do limão (cortando comissionados) ou você joga mais água na mistura (criando vagas para efetivos). Na metáfora, a primeira alternativa é impossível; no caso concreto, por opção política, Luciana não quis cortar comissionados. Promotores de Justiça não vivem mais sem os respectivos assessores, e até adversários internos admitem: eles são eficientes. Cortá-los sumariamente, portanto, poderia representar retrocesso na prestação do serviço.
Restou-lhe, assim, a segunda opção, agarrada pela chefe do MPES: criar mais vagas de efetivos, para poder agora mostrar ao STF: “Fizemos nosso dever de casa, nos antecipamos e resolvemos (ao menos no papel) a questão da desproporcionalidade. Arquive-se, pois, a ação”.
Mas, se havia desproporção entre as duas categorias de servidores, qual seria, então, a proporção ideal? Quantos servidores efetivos, em média, para cada servidor comissionado? Pois é! Fachin não estipulou isso em seu voto, seguido, ainda em fevereiro, por cinco colegas que concordaram com a tese de inconstitucionalidade. O ministro Nunes Marques, então, pediu vista do processo – após gestões de Luciana em Brasília.
No fim de maio, Nunes Marques apresentou seu voto, retomando assim o julgamento. Concordou com Fachin quanto à inconstitucionalidade, mas ofereceu algo que, até então, não havia aparecido no processo: uma sugestão concreta do que seria um percentual ideal de comissionados.
Três limões por sete copos d’água
Para o ministro, o MPES deveria, em um ano e meio, atingir a relação de 70% do seu corpo de servidores formado por efetivos, para 30% de comissionados (relação 70%–30%). Preste atenção nestes números, pois são a chave de compreensão da estratégia de Luciana.
Em seguida, Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator (totalizando oito ministros já posicionados pela inconstitucionalidade da lei que criou 307 comissionados). Luiz Fux, então, pediu vista – após gestões de Luciana em Brasília, para ganhar tempo. E ela não o perdeu.
Um concurso público para reforço do corpo técnico já estava no horizonte da chefe do MPES? Já. Mas ela correu com o projeto de lei que cria, no ordenamento jurídico, nada menos que 778 vagas de efetivos? Sem dúvida alguma. Ela mesma o confirma.
E por que esse número tão expressivo (na prática, totalmente impossível de ser preenchido de uma vez)? A resposta está no voto de Nunes Marques: a relação 70%–30%.
O que se busca é exatamente atingir essa proporcionalidade antes que se consume um desfecho desfavorável ao MPES no julgamento da ADI. Agora, Luciana pode mostrar ao STF que os novos números preenchem rigorosamente a sugestão feita por Nunes Marques.
Fiz as contas antes de conversar com a chefe do MPES. Ela as endossou. Com os 778 cargos que passam a ter previsão legal, o total de vagas para efetivos na instituição salta para incríveis 1.295. Os comissionados continuam sendo 511.
Isso significa que, no novo quadro de cargos do MPES, os efetivos passam a representar, da noite para o dia, 71,7% do total de cargos existentes; os comissionados, 28,3%.
Sim, você chegou à mesma conclusão que eu. É uma relação muito próxima à sugerida por Nunes Marques. E foi esse mesmo o raciocínio de Luciana, que também confirma:
A partir da introdução de previsão legal para provimento de 778 novos cargos efetivos no MPES, ela levará aos autos e ao conhecimento dos ministros do STF a nova lei estadual, a fim de arguir a perda de objeto da ADI, argumentando que a questão da “desproporcionalidade” restará sanada.
No entendimento da procuradora-geral de Justiça, a criação de previsão legal para preenchimento de 778 novos cargos efetivos no MPES invalida o argumento sobre a suposta falta de proporcionalidade.
Atenção: estamos falando sempre aqui de cargos não necessariamente preenchidos, mas existentes no ordenamento jurídico. Mas a princípio é o que basta ao STF, que faz “controle abstrato” da legislação.
Na prática, Luciana deve mandar a petição para os gabinetes de Fachin, o ministro-relator, e de Fux, com quem o processo se encontra. Como fez o pedido de vista para analisar melhor o caso, Fux, ao levar seu voto aos colegas no Pleno, já poderá talvez acolher a nova tese de perda do objeto da ação, de posse das novas informações. Ao menos essa é a expectativa de Luciana.
Enquanto isso, paralelamente, seguirão as gestões políticas: a chefe do MPES também enviará um memorial do processo para cada ministro, atualizando-os sobre as medidas tomadas pelo órgão no Espírito Santo.
E agora, o que acontece?
Feito isso, duas coisas poderão acontecer: ou a estratégia de Luciana será bem-sucedida e o STF reconhecerá a perda de objeto; ou sua tese não será acolhida e a lei de 2019, que criou os 307 comissionados, será declarada inconstitucional de todo modo.
Se der a primeira opção, a ADI da associação de servidores será arquivada, e os 307 comissionados seguirão existindo normalmente (incluídos naquele total de 511).
Mas, se der a segunda opção, em um ano a contar da publicação do acórdão do julgamento, esses 307 comissionados serão excluídos do ordenamento jurídico. E o MPES terá de se virar para realizar seu trabalho sem eles… ou até, quem sabe, tentar recriá-los.
E o concurso público, como fica? Será mesmo realizado? Aqueles 778 cargos efetivos que passam a existir no papel serão mesmo preenchidos, ainda que gradativamente? Ou na verdade a “criação no papel” foi um fim em si mesma, só mesmo uma saída encontrada pela cúpula do MPES para resolver o problema imediato junto ao STF?
Luciana responde à coluna:
Independentemente do desfecho do julgamento no STF, ela pretende, sim, colocar o concurso na rua. Vai contratar a empresa organizadora e espera lançar o edital ainda no segundo semestre. Com otimismo, espera começar a nomear os primeiros aprovados antes do fim de seu mandato na Procuradoria-Geral de Justiça, em 2 de maio do ano que vem.
A questão que ainda segue em aberto é a quantidade de vagas que serão disponibilizadas nesse primeiro processo seletivo. Luciana não precisou um número. Disse que esse ponto (fundamental) ainda está “em estudo” pela cúpula do MPES.
Mas uma coisa nós podemos deduzir e afirmar desde já: não serão as 778 de uma vez, por ser obviamente impossível. Mais 778 servidores representariam um aumento, numa só tacada, de 80% da força de trabalho do MPES, e um impacto financeiro absurdo.
A coluna não recebeu o número exato, mas pode-se estimar uma elevação em mais de R$ 100 milhões no gasto do MPES com pessoal.
A própria justificativa do projeto de lei diz que as vagas serão providas “progressivamente”. E assim será feito.
Mas a carta na manga já está posta na mesa e a possível solução será em breve servida ao STF.
Com limonada.
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