Coluna Vitor Vogas
Lula no Espírito Santo: “Essa gente não vai brincar com o Brasil”
Nos signos visuais e nos discursos, evento em Linhares sobre Acordo de Mariana foi tomado por outro tema urgente: a defesa da soberania nacional frente às ameaças de Donald Trump e sua tentativa de interferir nos assuntos internos do país. Saiba o que disseram Lula, o governador Renato Casagrande, ministros de Estado e outras autoridades presentes

Presidente Lula durante a cerimônia de apresentação dos avanços do Novo Acordo Rio Doce, em Linhares. Foto: Ricardo Stuckert/PR
A mensagem principal do momento estava, literalmente, na cabeça de Lula. O presidente da República chegou ao palanque, no Parque de Exposições de Linhares, por volta das 10h30 desta sexta-feira (11), com um chapéu panamá. Mas, durante quase toda a cerimônia, trocou-o por um boné azul com um dizer emblemático: “O Brasil é dos brasileiros”. A solenidade marcou, simbolicamente, o início oficial dos pagamentos de indenizações para pescadores e agricultores familiares atingidos pelo desastre de Mariana, com o rompimento da Barragem de Fundão, em 2015. Mas, nas falas e na atmosfera, o evento foi tomado por outra pauta: a defesa intransigente da soberania nacional frente à ameaça, afrontosa e estapafúrdia, feita na última quarta-feira (9) pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
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Em uma carta pública endereçada a Lula, Trump ameaçou taxar todos os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos em 50%. O anúncio se baseia em argumentos infundados e motivações ideológicas. O presidente americano afirma que tomará a medida se não for extinto o processo a que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) responde no Supremo Tribunal Federal (STF), por tentativa de golpe de Estado após ter perdido para Lula as eleições de 2022. Também alega que as relações comerciais com o Brasil são injustas para os Estados Unidos e que decisões “secretas e ilegais” da Justiça brasileira têm prejudicado a atividade de big techs estadunidenses.
Como não poderia deixar de ser, o tema se fez presente nas manifestações de muitas autoridades que tiveram direito a fala no evento em Linhares, incluindo o governador Renato Casagrande (PSB) e muitos ministros de Estado. Também ocupou a maior parte do discurso do próprio Lula. Uma bandeira do Brasil foi desfraldada pelo presidente brasileiro, que advertiu:
“Este país não baixará a cabeça pra ninguém. Pra ninguém! Ninguém porá medo neste país com discurso e com bravata. Ninguém! E acho que, neste aspecto, nós vamos ter o apoio do povo brasileiro, que não aceita provocação.”
“Essa gente não vai brincar com o Brasil!”, alertou o presidente, que discursou por quase meia hora em sua segunda passagem pelo Espírito Santo desde o início do atual mandato. Em vários pontos do pronunciamento, ele referiu-se a “essa gente”, aludindo a Trump e à família Bolsonaro, e também fez menção “àquela coisa”, referindo-se especificamente a Jair Bolsonaro, a quem classificou como “covarde”, desprovido de caráter e de “vergonha na cara”.
“Aquela coisa covarde, que preparou um golpe neste país, não teve coragem de fazer, tá sendo processado, vai ser julgado, e ele mandou o filho dele pros Estados Unidos pedir pro Trump fazer ameaça: ‘Ah, se não liberarem o Bolsonaro, eu vou taxar vocês…” Neste ponto, Lula fez voz de “criança mimada”, como que “arremedando” o deputado federal Eduardo Bolsonaro, licenciado do mandato na Câmara e vivendo nos Estados Unidos. O deputado tem tratado com agentes do governo estadunidense e influenciou a decisão bizarra de Trump.
“A coisa mandou o filho, que era deputado, se afastar da Câmara, para ir lá ficar pedindo [novamente, faz voz de criança]: ‘Ô, Trump, pelo amor de Deus, Trump, solta meu pai, não deixa meu pai ser preso’… É preciso essa gente criar vergonha na cara! É preciso criar vergonha na cara! A coisa mais pequena do homem é não ter caráter. […] Que homem que é esse, gente? Que tipo de homem é esse? Que não tem vergonha [sic] de enfrentar o processo dele de cabeça erguida e provar que foi inocente. Porque quem está denunciando ele não é o governador do Espírito Santo, não é o pescador, não é o sem-terra, não é ninguém do PT. Quem está denunciando ele são os generais e o ajudante de ordens dele, que era coronel do Exército”, disse Lula, referindo-se a Mauro Cid, que fez acordo de delação premiada com a Justiça.
Lula afirmou que, quando estava sendo processado no âmbito da Operação Lava Jato, negou várias vezes sugestões para sair do país ou se asilar em alguma embaixada. “Quem é inocente não baixa a cabeça. Enfrenta as consequências.”
O presidente afirmou não ter nenhuma possibilidade de interferir em um processo judicial em tramitação na Suprema Corte do Brasil em face de quem quer que seja – o que é óbvio, ou ao menos deveria ser óbvio, em qualquer democracia organizada em um regime republicano, com separação e independência entre os Três Poderes. Causa espécie, aliás, que o presidente de outro país entenda que isso seja possível e, pior, que queira impor esse tipo de interferência, ainda mais sendo esse outro país os Estados Unidos da América, que também são uma república e se gabam de ser um modelo de democracia.
“Não tem como eu interferir na Suprema Corte. Não. Ele [Bolsonaro] vai ser julgado com base nos autos. Se ele for inocente, ele vai ser absolvido, como eu fui. Se ele for culpado, ele vai pra cadeia, como todo mundo tem que ir”, afirmou Lula, deixando escapar uma inverdade sobre o próprio caso. A rigor, ele jamais foi inocentado, mas teve sua condenação anulada por decisão do STF.

Presidente Lula durante a cerimônia de apresentação dos avanços do Novo Acordo Rio Doce, em Linhares. Foto: Ricardo Stuckert/PR
Lula também resgatou o episódio do 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos, quando, insuflados pelo próprio Trump, que perdera a reeleição para Joe Biden meses antes, fanáticos trumpistas invadiram o Capitólio, em Washington, inclusive causando mortes. Foi caso análogo e “inspiração” para o 8 de janeiro de 2023 no Brasil. “Se o Trump fosse brasileiro e aqui tivesse um Capitólio e ele fizesse aquilo que fez nos Estados Unidos, ele também ia ser preso. O Poder Judiciário é autônomo.”
“Essa gente não sabe que não somos um povo qualquer”
Como também não poderia faltar, Lula valeu-se de dois “clássicos” de sua retórica política – a remissão à própria história mítica de superação, da infância miserável no sertão de Pernambuco à chegada ao Palácio do Planalto, e os ensinamentos de sua mãe semianalfabeta, Dona Lindu, que criou sozinha ele e os seus sete irmãos mais velhos.
“Sou um homem educado por uma mulher analfabeta, que criou oito filhos sozinha. […] O caçulinha dela virou presidente da República deste país. E, se tem uma coisa que minha mãe ensinou, é que a gente não pode baixar a cabeça. Não baixe a cabeça!”, conclamou Lula.
“Se um presidente dos Estados Unidos acha que um pernambucano que escapou de morrer de fome na terra em que nasci, se um cara que escapou, se um cara que perdeu três eleições… Inventaram uma mentira para me prender, tentaram me oferecer uma liberdade negociada, e eu disse ‘eu não troco a minha dignidade pela minha liberdade’. Dignidade é uma coisa que recebi da minha mãe. A liberdade eu ia receber de um delegado”, recuperou o presidente, lembrando o período de mais de um ano que passou preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, após ter sido condenado, em segunda instância, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no âmbito da Operação Lava Jato.
Lula disse que, em seus três governos, estabeleceu relação de respeito com todos os países e que respeita a soberania de todos. Também rebateu, pontualmente, argumentos usados na carta de Trump para ele, como já fizera em resposta pública:
“Quero dizer, com todo o respeito ao presidente Trump: o senhor está mal-informado, muito mal-informado. Os Estados Unidos não têm deficit comercial com o Brasil. É o Brasil que tem deficit comercial com os Estados Unidos”, destacou o petista, falando em “mentira” e citando um deficit comercial de R$ 410 bilhões para o Brasil, na relação com o país de Trump, ao longo dos últimos 15 anos. “Eu é que deveria taxar ele!”, ironizou.
Lula teve o cuidado de fazer uma distinção entre o presidente dos Estados Unidos e o povo estadunidense: “Eu, primeiro, não faço nenhuma confusão entre o comportamento do presidente Trump e o povo americano. É um povo que merece respeito, é um povo trabalhador. São tão trabalhadores que os Estados Unidos se transformou na maior potência do mundo.”
Por fim, Lula explicou as medidas que o Governo Federal pretende adotar em reação às ameaças de Trump. Num primeiro momento, intensificação de esforços diplomáticos, busca de ampliação do diálogo e de alianças com outros países em foros internacionais como a Organização Mundial do Comércio (OMC), para que a ameaça de Trump não se cumpra, ficando só na bravata. Mas, se isso não for suficiente, se o blefe virar ação concreta, o governo brasileiro, diz Lula, não terá outra saída senão aplicar a mesma sobretaxação aos produtos que os Estados Unidos exportam para o Brasil, colocando em prática a Lei da Reciprocidade.
“Vou tentar e brigar em todas as esferas para que não venha a taxação. Vou brigar na OMC. Vou conversar com meus companheiros do BRICs. Agora, se não tiver jeito no papo, no tête-à-tête, nós vamos estabelecer a reciprocidade: taxou aqui, a gente taxa lá. Não tem outra coisa a fazer. Não tem”.
O presidente concluiu assim, com nova referência a “essa gente”: “Realmente, essas pessoas não sabem o que é o respeito que nós temos pelo nosso país. Essa gente não sabe que nós não somos um povo qualquer”.
Casagrande: “Alinhamento total”, “firmeza” e “cautela”
Falando antes de Lula, o governador Renato Casagrande começou seu discurso afirmando o alinhamento total do Governo do Espírito Santo com a posição manifestada pelo presidente e pelo governo brasileiro.
“O Estado do Espírito Santo, a população capixaba está inteiramente alinhada com a posição que o o senhor já manifestou, de defesa da soberania nacional. Estamos alinhados. Nenhum país, nenhum líder de outro país pode tentar interferir nas instituições do nosso país. […] Nós, do Espírito Santo, imediatamente manifestamos nosso apoio a essa tese, a essa verdade, a essa posição firme na defesa das instituições brasileiras.”

Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Márcio Macêdo, governador Renato Casagrande, presidente Lula e advogado-geral da União, Jorge Messias, durante a cerimônia de apresentação dos avanços do Novo Acordo Rio Doce, em Linhares. Foto: Ricardo Stuckert/PR
Casagrande manifestou preocupação de que a ameaça de Trump desencadeie um “duelo de tarifas” entre o Brasil e os Estados Unidos, com uma escalada de taxação mútua que só prejudicará os dois lados. Em vez disso, ele defendeu cautela.
“Quero manifestar nossa concordância de que não podemos fazer um duelo de tarifas. Saca uma tarifa de lá, saca uma tarifa de cá. A posição do governo é uma posição correta, de avaliar no prazo que tem […] qual é a melhor posição para fazer a defesa do povo brasileiro. Acho que é esta a posição: posição de firmeza em defesa da soberania, de cautela e de busca de aliados para a gente poder romper esse absurdo anunciado pelo presidente Trump.”
Ministros: “Traidores da pátria”, Hino Nacional e “continência a uma única bandeira”
O advogado-geral da União, Jorge Messias, disse que Lula só bate continência para a bandeira nacional:
“Quem tem que resolver os problemas dos brasileiros são os brasileiros. O Brasil tem um presidente da República que pensa em primeiro lugar nos brasileiros, em segundo lugar nos brasileiros, em terceiro lugar nos brasileiros. E, quando sobra um tempinho, o presidente Lula também pensa nos brasileiros. Esse aqui presta continência a uma única bandeira: a bandeira do Brasil”.
O ministro da Casa Civil e ex-governador da Bahia, Rui Costa (PT), sugeriu, sem citar nomes, que o clã Bolsonaro é formado por “traidores da pátria”:
“Muitos, em campanhas eleitorais recentes, carregavam a bandeira do Brasil nas costas, pra dizer que eram brasileiros de verdade. Mas agora, com os ataques dos Estados Unidos, nós sabemos quem são os brasileiros e quem são os traidores da pátria”.
O ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira (PT), afirmou que quem é acusado precisa enfrentar a Justiça:
“Se cada um que estiver para ser condenado na Justiça brasileira for pedir pro Trump aumentar as tarifas dos produtos brasileiros, a tarifa vai para 5 mil, 50 mil, 500 mil [por cento]. Não é assim que se enfrenta a Justiça. Se enfrenta a Justiça se defendendo. E quem cometeu crime tem que pagar pelos crimes que cometeu”.
Insinuando que os Bolsonaro são covardes e “fujões”, Teixeira leu a parte do Hino Nacional Brasileiro que diz: “Mas, se ergues da justiça a clava forte, / Verás que um filho teu não foge à luta”:
“Nós estamos com o presidente Lula para defender o Brasil desse ataque à soberania nacional que foi promovido pelo presidente dos Estados Unidos. E dizer para ele [Trump] que é melhor andar em melhores companhias, porque ele anda muito mal acompanhado por alguns brasileiros que estão querendo fugir para os Estados Unidos.”
Já o senador Fabiano Contarato (PT-ES) agradeceu a Lula: “O verdadeiro patriota não se ajoelha e não bate continência para bandeira estrangeira nenhuma. Muito obrigado por defender o Poder Judiciário, o Poder Legislativo, o Poder Executivo e as nossas instituições”.
