Coluna Vitor Vogas
Deputado explica lei de sua autoria que prevê punição a sátiras no ES
Alcântaro Filho exemplifica manifestações que, para ele, são passíveis de punição, em uma entrevista sobre limites entre liberdade de expressão e desrespeito a dogmas religiosos

Deputado Alcântaro Filho (Republicanos). Crédito: Lucas S. Costa/Ales
“Fica proibido o vilipêndio de ato ou objeto de culto religioso, bem como o desrespeito a crenças e dogmas religiosos, bem como o desrespeito a crenças e dogmas religiosos praticado publicamente por meio de sátiras e de atos de ridicularização e de escarnecimento em manifestações sociais, culturais e/ou de gênero no âmbito do Estado do Espírito Santo.”
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Assim reza o artigo 1º da Lei Estadual 11.858, de autoria de Alcântaro Filho (Republicanos), o deputado mais fervorosamente evangélico da Assembleia Legislativa na atual legislatura. Nos artigos seguintes, a nova norma estabelece punições administrativas para as entidades que praticarem as ofensas descritas no 1º, como pagamento de multa, proibição de receber liberação e recursos do poder público estadual para a realização de eventos.
Fonte de intensa controvérsia, o projeto de Alcântaro foi apresentado em fevereiro, aprovado em plenário, sancionado tacitamente pelo governador Renato Casagrande (PSB) – que lavou as mãos – e promulgado no dia 7 de julho pelo presidente da Assembleia, Marcelo Santos (Podemos). Agora, compete ao Governo do Estado regulamentar o novo dispositivo legal.
Eivada de conceitos bastante subjetivos, a redação da nova lei levanta uma série de dúvidas. O receio maior é a ameaça de censura às artes, implícita no texto. Abaixo, o próprio autor da lei dá as suas explicações, em uma entrevista perpassada por exemplos práticos e pela preocupação em delimitarmos conceitos fundamentais neste debate.
Dificilmente alguém vai discordar de que queimar a Bíblia, por exemplo, configura vilipêndio a objeto de culto religioso, assim como, por exemplo, quebrar imagens de santos ou vandalizar um terreiro de umbanda. Mas seu projeto vai bastante além e, ao tomar sátira por vilipêndio, lança uma enorme zona cinzenta sobre o que poderia, em tese, ser considerado vilipêndio. Por isso acho importante delimitarmos alguns conceitos-chave nesta discussão, ou seja, compreendermos qual é a compreensão do senhor a respeito desses conceitos. Começo lhe perguntando: o que o senhor entender por vilipêndio?
Primeiro quero deixar muito claro e aí quebrar um tabu que foi estabelecido, uma má compreensão dessa norma: ela não se restringe à fé cristã. Ela compreende todo tipo de religião. Vilipêndio é sinônimo de aviltamento. Então é o desrespeito. E é justamente essa a palavra-chave desse artigo 1º, que tipifica esse ato doloso. O vilipêndio já está configurado no artigo 208 do Código Penal, e aí é uma outra questão que foi colocada: se já está no Código Penal, por que criar uma lei?
Por quê?
Além do vilipêndio já compreendido no artigo 208 do Código Penal, a chave é a questão das sátiras e da ridicularização. O artigo diz: “desrespeito a crenças e dogmas religiosos praticado publicamente por meio de sátiras e de atos de ridicularização e de escarnecimento”. Então não é todo e qualquer tipo de sátira. Inclusive eu disse isso na tribuna da Assembleia ao defender o projeto: não tenho absolutamente nada contra quem defende outro entendimento religioso, quem vai para o carnaval, que inclusive foi uma das motivações do projeto, inclusive deputados que querem ir pro carnaval fantasiados de outra forma, não vejo problema nenhum. Isso está dentro da liberdade que todos nós temos. Mas tem um limite dentro disso e o escarnecimento da fé, nesse caso a fé cristã. Da mesma forma que sou contra, por exemplo, e o projeto também diz isso, um evento cristão que eventualmente recebe dinheiro público, como o Jesus Vida Verão, e um pastor ou cantor gospel ir lá e vilipendiar uma fé de matriz afro ou uma imagem.
O senhor fala em “limite”. Onde está esse limite entre o que é aceitável e o que já extrapola para uma situação de desrespeito e ofensa a um dogma religioso? E quem é que vai determinar isso?
O limite é o mesmo do que se constitui, por exemplo, quando se tem ofensas homofóbicas. Você tem esse debate também, o Ministério Público e os órgãos de fiscalização têm atuado firmemente nessa pauta. Assim como hoje, infelizmente, tem-se por parte de uma minoria que também excede esse limite da liberdade de expressão e acaba praticando de fato alguns atos homofóbicos e outros do gênero, acho que esse mesmo limite e a mesma forma se dispõe também para proteger a fé de uma forma geral. Obviamente, aqui, o projeto abrange todo tipo de fé, mas eu sou um cristão praticante, então eu vivencio isso todos os dias, o desrespeito à fé cristã. Então o primeiro ponto é este: acredito que o limite seja muito pessoal. Se um cristão ou um cidadão de qualquer outra religião se sentir ofendido por algum ato, ele tem o direito de ter essa lei colocada em prática.
E para se fazer cumprir a lei? Quem é que vai determinar onde está esse limite, até onde se pode ir? Pergunto isso porque é uma lei estadual, que inclusive cria atribuições, ou obrigações, para o Governo do Estado…
Perfeito. Você tem duas formas. A primeira delas é quando se tiver o crime de vilipêndio. Houve o crime de vilipêndio. Aí você já tem caracterizado de forma concreta…
“Houve o crime” segundo o entendimento da Justiça?
Sim, segundo o Código Penal. O crime em caráter judicial.
Então “houve o crime” no entendimento da Justiça, numa ação…
Exatamente. Aí você já tem diretamente a aplicação dessa lei, objetivamente. A outra forma que se pode ter avaliação é justamente o que dispõe o artigo 4º da lei, que diz que o Poder Executivo vai regulamentar a lei no que couber. Em entrevista [à colunista Letícia Gonçalves, de A Gazeta], o governador disse que a lei é “inócua”, e eu disse aqui da tribuna da Assembleia, com todo o respeito ao governador, que a lei só será inócua se ele for omisso. É nesse sentido. A lei está em vigor e, pelo artigo 4º, o Executivo tem o dever de regulamentá-la. E aí ele pode constituir uma comissão, um órgão fiscalizador ou um órgão em caráter administrativo. E aí a gente faz um recorte nisso. Essa lei tem a linha do Judiciário, através do artigo 208 do Código Penal, e tem também a linha administrativa. E isso responde a uma outra pergunta que eu queria deixar claro. Muita gente diz “ah, mas já tem o artigo 208 do Código Penal”…
É a mesma pergunta que eu faria. Se esse crime já existe e é tipificado no nosso Código Penal, por que então criar essa lei, introduzindo a possibilidade de punições também na esfera administrativa?
Exatamente por isso, porque uma coisa é você ter uma punição na esfera penal e outra é você ter uma punição na esfera administrativa. E aí a gente pode fazer uma analogia, por exemplo, aos casos de improbidade administrativa. Um político flagrado num caso de corrupção, por exemplo, está sujeito a responder a uma ação na esfera criminal e uma de improbidade administrativa na esfera cível. Qual é o grande objetivo aqui? Além da responsabilidade criminal, atribuir uma responsabilidade civil, administrativa, para que não só a pessoa física, mas também as pessoas jurídicas tenham esse senso de responsabilidade, através da lei, de que terão uma punição financeira. Essa punição, além do caráter punitivo, tem o caráter pedagógico, servindo de exemplo.
Para retomarmos a nossa discussão conceitual, o senhor disse que, como cristão, sente na pele alguns casos concretos de desrespeito à fé cristã. Acho que fica mais fácil compreender a ideia quando trazemos alguns exemplos para ilustrar. Para o senhor, o que configura “desrespeito e ofensa a dogma religioso”, especificamente aos dogmas cristãos? O senhor pode dar algum exemplo?
Posso, claramente. A religião cristã, em sua essência, é um estilo de vida. Assim como nós temos que respeitar a escolha de um homossexual viver as pautas do ativismo LGBT, das quais discordo completamente, mas tenho que respeitar, tenho que combatê-las dentro do diálogo, dentro das discussões no campo legal, mas não sou obrigado a concordar. Da mesma sorte, as pessoas precisam entender isso. De uma forma geral, temos no Brasil muita gente que se diz cristã, mas que não vive isso de fato como um estilo de vida. As pessoas que escolhem viver o cristianismo como um estilo de vida, que é o meu caso, a gente sofre perseguições, sofre discriminações, sofre bullying. Muitos alunos, em sala de aula, sofrem bullying por ser cristãos, porque hoje temos essa agenda progressista avançando principalmente no espaço escolar.
Bullying de que maneira? Os coleguinhas apontam o dedo e gritam “Cristão! Cristão!”? Só para eu visualizar…
Falando que é “fundamentalista”, que é religioso, que isso é ultrapassado. Entendeu? São várias formas. Relativizam a Bíblia, tentam desqualificar a Bíblia. Temos muitos relatos sobre isso. Outro exemplo: as grandes empresas, com essa agenda progressista, têm difundido mais a cada dia dentro das empresas a obrigação de políticas de ativismo LGBT. Por exemplo, uma grande empresa aqui do Estado obrigou, no mês do Orgulho LGBT, os funcionários a colocar um colar com as cores dessa bandeira. Só que a gente tem muitos cristãos que trabalham, e essa bandeira do ativismo LGBT é completamente contrária à Bíblia.
Esse, na sua avaliação, seria um exemplo de desrespeito e/ou ofensa a dogma religioso cristão?
Exemplo de perseguição aos cristãos no dia a dia. Agora, no caráter da lei, é muito claro. É o que a gente viu fora do Estado, nas escolas de samba de São Paulo e do Rio, é o que a gente vê nas esquetes de Natal do “Porta dos Fundos”, em que o intuito claro é ofender e ridicularizar a fé cristã. Quando a gente vê pessoas rasgando a Bíblia ou usando a cruz como pole dance. Eu deixei muito claro que não temos relato de que isso tenha acontecido no Espírito Santo, ainda. E o grande objetivo é que isso não aconteça.
Quero voltar ao texto da nova lei, justamente para entendermos melhor os conceitos subjacentes e o que realmente está dito aqui: “Fica proibido o vilipêndio de ato ou objeto de culto religioso, bem como o desrespeito a crenças e dogmas religiosos […]”. E aqui eu já colocaria um ponto, pois, na minha opinião, o problema todo começa na sequência do artigo: “bem como o desrespeito a crenças e dogmas religiosos praticado publicamente por meio de sátiras e atos de ridicularização em manifestações sociais, culturais e/ou de gênero no âmbito do Estado do Espírito Santo”. “Por meio de sátiras”, diz o texto. Creio que aqui está a inovação legal introduzida pela redação da norma. “Sátira” é um conceito muito amplo e subjetivo, mas que está no cerne da sua lei, o que me leva a lhe perguntar: o que o senhor entende por “sátira”? Pode dar exemplos?
Quero deixar muito claro aqui: não é qualquer sátira. O que o projeto proíbe não é a sátira, mas o desrespeito praticado por meio de sátiras e/ou atos de ridicularização e escarnecimento. Nem toda sátira é desrespeitosa. E aí trago à luz algo que foi suscitado nas redes sociais, que é a peça e depois o filme “O Auto da Compadecida” [de Ariano Suassuna], que em nenhum momento afetou os cristãos. Em nenhum momento houve nenhum debate dentro do ambiente cristão acerca de qualquer ofensa. Ninguém falou que aquela sátira foi ofensiva.
Então vamos no contraponto: o senhor poderia citar para mim um exemplo de sátira que nitidamente tenha desrespeitado uma crença ou dogma religioso?
A esquete anual do “Porta dos Fundos”, por exemplo. A apresentação da escola de samba, quando Jesus é distorcido.
Estou insistindo neste ponto porque entendo que é exatamente aqui que existe o risco de censura, de se ultrapassar uma intenção, até uma boa intenção, de se garantir o respeito às religiões e se proteger a liberdade de culto, para se entrar num campo perigoso de desrespeito à liberdade de expressão…
Perfeito. E é esse equilíbrio que temos que buscar de fato. E aí o governo precisa regulamentar a lei. Não sou eu, como deputado, nem a Assembleia, que vai determinar o que de fato é desrespeitoso e o que não é. Mas estou trazendo uma visão minha neste primeiro momento. No meu ponto de vista, fica muito claro quando comparamos “O Auto da Compadecida”, uma sátira assistida e admirada por um monte de cristãos, principalmente católicos, que poderiam se sentir ofendidos, com uma esquete do “Porta dos Fundos”, cujo único intuito, a meu ver, é escarnecer e ridicularizar.
Estou imaginando um exemplo: se essa esquete de Natal do “Porta dos Fundos” fosse adaptada para o teatro e encenada nos palcos capixabas, de maneira muito fiel, com aquelas mesmas piadas e gozações, a companhia teatral que a encenasse, ou que cogitasse colocá-la em cartaz, estaria passível das punições previstas no escopo da lei?
Sim. Eu particularmente agiria não só denunciando isso, por meio da lei que nós aprovamos, mas também por crime previsto no artigo 208 do Código Penal. O intuito daquela esquete é exclusivamente no sentido de vilipendiar a fé cristã. E isso nós não podemos admitir. Aí faço outra colocação para a gente refletir: se tivermos no Espírito Santo um teatro ou um stand-up fazendo piadas e sátiras estritamente ofensivas contra os homossexuais, como seria a aceitação da população, principalmente dos que militam nessa causa? Volto a dizer: não concordo com a pauta, mas eu respeito. Agora, como seria a recepção? Acho que é aí que está a grande questão das pessoas que criticam o projeto, em sua maioria. É só fazer essa analogia. Assim como a pauta LGBT é muito sensível, hoje quem tem o cristianismo como filosofia de vida também vive num limite muito sensível.
Na justificativa do projeto, o senhor dá bastante relevância ao desfile de carnaval deste ano da escola de samba Gaviões da Fiel. Um dos pontos do desfile que geraram protestos de evangélicos nas redes sociais foi a fantasia da rainha de bateria da escola, Sabrina Sato. A fantasia na verdade representava o Dragão de São Jorge, um símbolo importante para religiões de matriz africana. Entendendo que a fantasia representava um diabo, muitos foram no Instagram da modelo para acusá-la de fazer apologia do “satanismo”…
Não cito a fantasia dela na justificativa do projeto. Pelo contrário, falei aqui na Assembleia: “Olha, se tiver algum deputado ou deputada que quiser sair fantasiado de demônio na avenida, não tem problema”. Quando eu cito a Gaviões da Fiel, é porque colocaram Jesus enforcado na passarela. Isso não tem necessidade nenhuma. Agora, quem quiser se fantasiar de satanista ou qualquer outra forma, tem total liberdade. Agora, qual é a necessidade de colocar Jesus, símbolo máximo do cristianismo, enforcado numa cruz, outro elemento importante na simbologia cristã?
Então, voltando para exemplos hipotéticos de aplicação da nova lei estadual: se uma escola de samba capixaba desfilar com uma passista fantasiada de Diabo ou toda uma ala assim fantasiada. Isso seria considerado vilipêndio, desrespeito a dogma religioso, e a lei se aplicaria a essa escola?
Não, de forma alguma. Inclusive, volto a dizer, aí está compreendida também a liberdade de culto religioso, inclusive de quem é satanista. Se quiser ir para o carnaval ou outra atividade, desde que não desrespeite a outra fé. Qual é o cerne aqui? Não tem necessidade nenhuma de se promover vilipêndio à fé de outras pessoas em eventos públicos, principalmente com recursos públicos. Isso vale também para os cristãos.
Uma peça protagonizada por uma representação do Diabo ou que tenha entre seus personagens um ou mais diabos. Mesmo que para fins religiosos, de catequese, como a reencenação de uma peça escrita por José de Anchieta. Isso se enquadraria?
Não, de forma nenhuma, a não ser que distorcessem a Bíblia para afrontar a religião cristã, que foi o caso que aconteceu nessa escola de samba. O que causou a nossa indignação não foi uma fantasia, mas o fato de terem colocado Jesus enforcado, porque isso distorce completamente o que nós acreditamos e o que é o princípio da nossa fé, ou colocar Adão em Eva endiabrados, como foi o caso da Salgueiro, no Rio de Janeiro, porque são figuras representativas à luz da Escritura Sagrada. Não tem necessidade nenhuma disso. Agora, quer desfilar, se apresentar e promover outras religiões, tudo bem, desde que não vilipendie a fé de ninguém.
E uma HQ protagonizada por um demônio, seja como herói, seja como anti-herói, ou então uma obra literária que reescrevesse e adaptasse o texto bíblico?
Depende muito. Se for para desrespeitar… Acho que isso está muito claro na comparação do “Auto da Compadecida” com a esquete de Natal do “Porta dos Fundos”.
