Coluna Vitor Vogas
Análise: quem foi o Lula que veio ao ES e o que seu discurso revela?
Discurso do presidente na inauguração do Contorno do Mestre Álvaro foi pacote completo do Lula 2023: terceiro turno eleitoral, críticas agudas a Bolsonaro, messianismo na máxima potência, investimento no “nós contra eles”, renovação de velhas esperanças e grandes promessas dirigidas à população de baixa renda
O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Serra nessa sexta-feira (15), em sua primeira visita ao Espírito Santo em seis anos, foi um pacote completo do Lula na versão 2023 – ou, para ser mais preciso, daquele Lula na versão candidato à Presidência em 2022.
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Exibindo seu inegável carisma e sua notável habilidade retórica, o presidente vendeu esperanças ao povo mais humilde, fez promessas de uma Terra Prometida à gente mais sofrida, apresentou-se como salvador da pátria, reforçou a própria mitologia e criticou quem só instila ódio político no coração dos brasileiros. Ao mesmo tempo, não escondeu seu profundo ressentimento com o antecessor no cargo, em um discurso repleto de críticas mordazes a Jair Bolsonaro (PL), chamado por ele de “aquela coisa”, “um facínora” e “um cidadão que não merece nenhum respeito”. Provou que ainda não desceu – e talvez jamais pretenda descer – do palanque eleitoral.
Reconfirmando sua conhecida capacidade como comunicador de massas, Lula mostrou que, apesar dos quase 80 anos, é um animal político no auge da forma. Um animal que, quando sobe num palco, segura um microfone e se vê diante de uma plateia (totalmente amigável, nesse caso), encontra-se em seu habitat.
O domínio de palco, a verve afiadíssima, o dom da oratória lapidado desde os tempos de comícios como líder sindical no ABC, a capacidade comunicativa do experiente “encantador de multidões”… Tudo se fez presente ali, em seu pronunciamento feito ao lado do governador Renato Casagrande (PSB) e de outras autoridades estaduais e federais, durante o ato de inauguração da estrada do Contorno do Mestre Álvaro. Da obra propriamente dita, Lula falou pouquíssimo. Não estava ali para isso, mas para performar seu “show à parte”.
A fala do presidente girou em torno de três eixos:
1) Terceiro turno eleitoral:
Forte investimento de energia na polarização política, traduzida pelo binômio “nós contra eles” – aliás, inaugurado pelo PT e pelo próprio Lula em seu primeiro governo (2003-2006); comparação de realizações e críticas devastadores a Jair Bolsonaro, jamais referido nominalmente, mas tratado por “aquela coisa”, entre outros termos depreciativos.
2) Messianismo:
Lula sendo o Lula de sempre. Forte culto à personalidade, por parte da plateia de admiradores fiéis e fanáticos, mas cultivado, em grande medida, pelo próprio Lula. Reforço do mito erguido ao longo das décadas em torno do personagem do “maior líder popular da América Latina”, com forte apelo à sua própria biografia, pautada no sofrimento e na superação de todas as dificuldades, desde a diáspora do sertão nordestino com a mãe e os irmãos, num pau-de-arara, rumo à Terra Prometida, até a prisão na Lava Jato. Reiteração subliminar da incômoda noção de que “o filho de dona Lindu” seria o “pai dos pobres do Brasil” e o “escolhido” para conduzir a legião de sofredores do país à redenção através da inclusão e da promoção social não obstante a resistência das “elites deste país”.
Em 2018, ao ser preso, Lula declarou ter se tornado “uma ideia”. Não deixa de ser verdade. O discurso de ontem provou que, aos poucos, ele caminha para virar uma espécie de religião política, tamanho o grau de fanatismo de seus seguidores, alimentado discursivamente por ele mesmo – o que pode ser bastante perigoso.
3) A Terra Prometida:
Há pouco tempo, a plataforma de streaming Netflix lançou um documentário sobre o ator e roteirista americano Sylvester Stallone. Um de seus dois personagens mais famosos, Rocky Balboa, é a personificação da ideia de persistência, a superação em forma de gente. É, literalmente, um lutador; um pugilista que apanha, cai, levanta, apanha, cai, levanta… Não desiste nunca e, no final, alcança o impossível. A história fictícia do personagem contém consideráveis semelhanças com a história real de Lula. Por sinal, em 1977, quando “Rocky” levou o Oscar de melhor filme, Lula estava começando a ascender como “lutador sindical” no ABC. Em abril 1980, quatro meses após “Rocky II” entrar em cartaz no Brasil, Lula também foi lançado… atrás das grades.
No documentário, Stallone declara: “I’m in the hope business”: “Esperança é o meu negócio”. Ou seja, transmitir esperança às pessoas – especialmente às que mais precisam tê-la. Ora, como comunicador político, essa é a especialidade de Lula. Ele é um vendedor de esperanças (os mais céticos diriam “ilusões”, tradução literal de “esperança” para o espanhol). Descontados todos os exageros retóricos, a ideia elementar na qual sempre se fundou o seu discurso é a de que, sob seu governo, os mais simples poderão melhorar de vida, ascender socialmente, “comer picanha e moqueca” e o mais importante de tudo: competir de igual para igual com os mais ricos.
Passemos, então, a analisar mais detidamente cada ponto, com exemplificação extraída do discurso de Lula nessa sexta, em solo capixaba:
1) TERCEIRO TURNO
Não que as críticas a Bolsonaro não sejam merecidas… Mas Lula não só pesou a mão em alguns momentos como dedicou boa parte de seu discurso à militância para comparar o primeiro ano deste seu terceiro governo com os quatro do seu antecessor:
“O nosso país passou por um momento muito difícil! […] Se algum de vocês se lembra de um metro de rodovia inaugurado pelo governo passado neste estado, se alguém souber, me conte! Porque, em todos os estados da federação que eu vou, eu pergunto para todo mundo se alguém lembra alguma obra que aquela coisa inaugurou.”
“Coisa” é um substantivo que, não direi “desumaniza”, mas certamente reifica o adversário, despersonaliza-o, destituindo Bolsonaro de qualquer atributo humano. Além de “coisa”, “cidadão” e “facínora”, o antecessor foi sempre referido por Lula pelo pronome “ele”. Em momento algum, pelo nome.
Lula afirmou que, na prática, precisou começar a governar o país já em novembro de 2022, durante a transição, tamanho o descalabro fiscal deixado pela gestão anterior. Em termos orçamentários, seu primeiro ano de governo teria sido salvo graças à PEC da Transição, aprovada no fim do ano passado (enquanto Bolsonaro fazia as malas para a Flórida).
“Uma situação inusitada, nunca houve! Faltavam dois meses para eu tomar posse e tivemos que começar a governar este país porque não tinha sequer orçamento para que a gente administrasse em 2023. E ainda colocamos dinheiro para pagar as contas dele, de um cidadão que não merece nenhum respeito. […] A única coisa que ele inaugurou foi o ódio. Inaugurou o ódio entre pais e filhos, as mais deslavadas mentiras, as intrigas em família. Agora tem pai que não conversa com o filho, filho que não conversa com a mãe, irmão que não conversa com irmão, por causa de um facínora que pregou o ódio durante quatro anos neste país. Mentiu e pregou o ódio. Vê se alguém lembra quantas faculdades ele inaugurou, quantas escolas técnicas ele inaugurou!”
Segundo Lula, “este país saiu de um momento de tortura para voltar para um momento de paz e crescimento econômico”. Interessantíssima a escolha do vocábulo “tortura” para aludir aos quatro anos de governo do militar reformado que já defendeu publicamente a tortura num outro “pau-de-arara” (nada a ver com a infância de Lula) e, que num dos momentos mais baixos da recente história política nacional, homenageou o torturador de Dilma Rousseff (PT) ao votar a favor do impeachment da sucessora de Lula, em 2016. Intencional ou inconsciente, o termo “tortura” significa muito neste contexto.
Com “vamos fuzilar a petralhada”, “as minorias têm que se curvar às maiorias”, “as minorias se adéquem ou simplesmente desapareçam”, passando por outros incontáveis exemplos, Bolsonaro de fato sempre cultivou o ódio político e a intolerância, antes de chegar à Presidência e durante o seu governo. E é o que segue e seguirá a fazer. É o seu modo inato de fazer política. Nisso, Lula tem razão.
O paradoxo do presidente é que, ao chamar Bolsonaro de “coisa” e sobretudo ao afirmar que o adversário “não merece nenhum respeito”, Lula faz justamente o contrário do que prega: diz que o país voltou a um “momento de paz” e condena quem só faz semear ódio, mas, caindo em contradição, faz questão de também destilar uma boa dose do seu.
Polarização
No mesmo sentido, Lula também reeditou o clássico “nós contra eles”, marcando uma cisão entre o povo brasileiro que também vai na contramão do discurso de pacificação e reconciliação nacional:
“O ódio contra nós é porque eles não gostam de pobres, de negros, da autonomia das mulheres. Para eles, a mulher tem que ser objeto. […] Eles não gostam de LGBTs. […] E isso é tudo o que eu gosto. Eu gosto de gente! Eu gosto de ser humano! Eu tenho sentimentos! Sou um ser humano com sentimentos! Eu governo com o coração! Estou aqui, mas estou sentindo o coração de vocês! E o nosso coração bate no mesmo ritmo!”, declarou, levando a plateia à euforia.
É preciso sublinhar a habilidade retórica de Lula: na mesma medida em que “coisifica” e “despersonaliza” Bolsonaro, o presidente se apresenta ao povo como um ser humano o mais real possível, “gente como a gente”, que não apenas tem sentimentos como um coração a pulsar irmanado com o da sua gente.
Populismo na veia – ou melhor, na aorta coronária… Mas que, sem dúvida alguma, cala fundo no coração, na mente e na alma dos despossuídos que o escutam.
2) MESSIANISMO
O que o discurso de Lula tem de mais messiânico aparece em sua história pessoal (verdadeira e realmente admirável) de extrema superação que ele fez questão de reiterar: arquetipicamente, ele seria o homem/herói que veio do nada, literalmente da miséria mais extrema, da família desestruturada e do semianalfabetismo, para ascender na política e chegar ao poder central com a missão de redimir os outros pobres do país. O enredo, é claro, tem forte apelo junto à classe trabalhadora, precisa ser recontado, e Lula não se faz de rogado.
Na Serra, o “gancho” para isso foi outra crítica a “eles” (Bolsonaro e bolsonaristas), por conta de “mentiras deslavadas”, efetivamente espalhadas contra ele na campanha, relacionadas à religião. São fake news que realmente machucaram muito Lula e que ele claramente não esquece nem perdoa:
“Vamos provar que o que resolve os problemas de um povo não é a instigação do ódio utilizando a boa fé do povo evangélico para mentir, dizendo que a gente ia fechar igrejas evangélicas, fazer banheiros unissex, isso e aquilo… Eles têm que saber de uma coisa: se tem um cara neste país que acredita em Deus, é este que está vos falando aqui. Porque somente Deus é que poderia fazer um menino de Garanhuns [cidade natal dele], predestinado a morrer de fome, sair de Pernambuco […]. E este filho que escapou da morte aos cinco anos, que não tem diploma universitário, é o presidente da República mais eleito neste país. Isso só pode ser coisa de Deus, não tem outra explicação, não está escrito nos livros de História, de Sociologia e de Filosofia…”
Protagonizada pelo próprio, a narrativa mítica de Lula tem uma coadjuvante fundamental: sua mãe, dona Lindu, lembrada por ele mais de uma vez no discurso: “Só Deus poderia fazer que o filho de dona Lindu, semianalfabeto, fosse eleito três vezes presidente da República deste país”. Ao falar sobre o respeito às mulheres, Lula também citou um ensinamento materno: “Se você quiser levantar a mão para bater numa mulher, é melhor que sua mão caia!”
O recurso à imagem da mãe, protetora e sábia, gera identificação imediata e aprofunda a empatia do público. Conforme o dito, “todo mundo tem mãe”. Vale lembrar que a personagem de dona Lindu, interpretada por Glória Pires, tem centralidade na cinebiografia “Lula, o Filho do Brasil” (2009).
“Voltamos [ao poder] porque quero provar mais uma vez que um metalúrgico torneiro mecânico pode fazer por este país o que em 500 anos a elite brasileira não fez pelo pobre brasileiro”, avisou Lula à plateia.
Eis o messianismo, em estado puro, que nos leva ao último tópico: a “Terra Prometida” por Lula, à qual ele pretensamente conduzirá “o pobre brasileiro”, passando por cima das adversidades e das fortes resistências opostas pela “elite brasileira”.
3) A TERRA PROMETIDA
Lula não só prometeu, mas avisou: “Se preparem, porque muita coisa boa vai acontecer neste país!” Retomando a base da sua plataforma eleitoral em 2022, enumerou: “O emprego vai crescer. Junto com o emprego, vai crescer o salário. Vamos criar uma poupança para o ensino médio, para que nenhum menino ou menina desista de fazer o ensino médio. […] Vamos fazer escolas em tempo integral neste país para que a gente possa colocar as crianças na escola o dia inteiro”. O petista ainda firmou “o compromisso de fazer mais 100 institutos federais neste país e mais universidades”. A cobrar.
E, a partir de uma deixa dada por Casagrande – o governador havia lhe pedido “parcerias” para a execução de obras viárias no Espírito Santo –, Lula respondeu diretamente a ele, mas também a todos:
“Pode ficar certo que a gente vai resolver o problema das ferrovias e das rodovias, mas queremos resolver de forma prioritária a garantia de que nunca mais neste país uma criança vá dormir com fome. A gente quer garantir que todas as pessoas tenham oportunidade de trabalho digno, que toda criança e todo adolescente, independentemente do lugar em que nasceu, tenha o direito de disputar uma vaga na universidade com o estudante filho do mais rico. Não queremos tirar nada de ninguém! Queremos dar chance a quem nunca teve chance neste país!”
E arrematou, dando habilmente um “tempero capixaba” ao discurso:
“Queremos namorar no fim de semana, comer uma moqueca, comer um churrasco e viver bem com a nossa família. É esse o mundo que queremos construir! E esse mundo ninguém impedirá que a gente construa!”, advertiu o presidente.
Conclusão
Lula perseguiu o poder por muito tempo em vão. Em uma década, perdeu três eleições. Em 2002, chegou lá. Ficou no poder por oito anos. Foi condenado, preso, “descondenado” pelo STF e libertado. Recuperou os direitos políticos e voltou ao poder neste ano. Provou ontem que, em todo esse acidentado percurso, jamais perdeu o poder que mais importa na arte da política: o da comunicação popular.
Adendo
Sylvester “Sly” Stallone tem em seu currículo o blockbuster de ação “Stallone Cobra”, de 1986. Lula já disse ser uma “jararaca”… se bem que está mais para encantador de serpentes.
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