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Coluna Vitor Vogas

A cartada dos pastores e a “disputa espiritual” na eleição da Serra

Segundo turno entre Weverson e Muribeca ganhou atmosfera de “cruzada religiosa”, com direito a duas “cartas de compromisso” que, francamente, candidato algum deveria assinar

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Muribeca e Weverson disputam segundo turno na Serra

Muribeca e Weverson disputam segundo turno na Serra

Para começo de conversa, pastores nem deveriam pedir votos e influir na escolha de governantes. Nem pastores, nem padres, nem quaisquer outros líderes religiosos. Muito menos deveriam querer governar, direta ou indiretamente.

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Estado é Estado; igreja é igreja. Eis um dos princípios basilares do regime republicano de governo no mundo ocidental, desde o século dezoito. No Brasil, é verdade, da Colônia à atualidade, passando pelo Império e por toda a República, a mistura de cristianismo com política e exercício do poder sempre foi uma constante. Mas o fato de que sempre existiu não a torna mais aceitável nem menos indesejável no presente.

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Bem, uma coisa é o ideal, outra é a realidade. É difícil precisar em que momento a prática foi banalizada a ponto de já a acharmos “normal”, mas hoje a realidade é esta: pastores se candidatam aos montes em busca do exercício do poder político; quando não se candidatam pessoalmente, apoiam explicitamente candidatos, seja individualmente, seja de maneira coletiva, politicamente organizados em associações de líderes evangélicos que buscam fazer valer, por meio de políticas de Estado, os valores, crenças e dogmas defendidos por sua própria fé, ou melhor, a agenda das respectivas igrejas.

Em todo caso, são eles, tais pastores, detentores de invejável influência sobre os respectivos rebanhos. Como líderes espirituais e referências junto às suas comunidades, detêm o raro poder de induzir comportamentos e decisões coletivas. Com uma simples palavra (não raro, escorada na “Palavra”), podem conduzir seu rebanho a votar em massa nesse candidato ou naquele. Cada um deles é, portanto, potencialmente, um grande “influenciador político” e, por via de consequência, um cabo eleitoral cobiçadíssimo.

Hoje, o envolvimento direto de líderes religiosos, notadamente pastores evangélicos, nas disputas eleitorais é tamanho, e a tal ponto foi naturalizado, que o que vemos a cada eleição é a mesma situação: candidatos em desespero, numa corrida frenética à parte, sequiosos por declarações de apoio de associações de pastores e entidades religiosas afins.

Foi assim no 2º turno da última eleição ao Governo do Estado, entre Renato Casagrande (PSB) e Manato (PL). É assim também agora no 2º turno da eleição para prefeito da Serra: enquanto disputam os votos do eleitorado serrano, Weverson Meireles (PDT) e Pablo Muribeca (Republicanos) lançaram-se num duelo à parte, a ver quem arrebanha o maior número de apoios pastoris.

Emblemática nesse sentido foi a última terça-feira (15). Nessa data, as duas campanhas realizaram atos bem indicativos dessa sobreposição de instâncias. Enquanto Muribeca promoveu um encontro político/religioso com dezenas de líderes evangélicos para receber sua manifestação de apoio, a campanha de Weverson divulgou nota da Comissão de Assuntos Políticos da Convenção das Assembleias de Deus do Espírito Santo (CADEESO), reafirmando seu apoio ao candidato.

Para receber a confirmação do endosso da entidade, o candidato de Sergio Vidigal (PDT) foi além: acompanhado do atual prefeito, assinou, protocolou e entregou nas mãos dos representantes da CADEESO uma carta “comprometendo-se a não apoiar as seguintes pautas: 1 – ideologia de gênero, 2 – legalização das drogas, 3 – legalização do aborto, 4 – linguagem neutra”.

Na véspera, Weverson já havia se reunido com centenas de pastores de diversas convenções religiosas, que também lhe franquearam apoio. Mas isso não saiu “de graça”. A pedido do pastor Marcelo Henrique Ferreira, presidente da Associação dos Pastores Evangélicos da Serra (APES), o candidato assinou outra carta na qual “assumiu o mesmo compromisso de ser contrário à ideologia de gênero nas escolas, à liberação das drogas, e ainda declarou ser categoricamente contra o aborto e qualquer outra pauta que contrarie a vontade de Deus”.

No evento de Pablo Muribeca, diante dos pastores, o presidente estadual do Republicanos, Erick Musso, principal articulador da campanha do candidato, declarou o seguinte: “Há algo espiritual nessa eleição”.

Uma eleição é uma disputa entre homens. Governos são feitos pelos e para os homens. A atividade política também. Com todo o respeito, Deus não vota. Nem Ele nem qualquer divindade ou espírito. Levar uma disputa eleitoral para o plano transcendental, ou espiritual, é algo totalmente sem sentido. Se vamos por aí, vamos mal.

Quanta às “cartas de compromisso” firmadas por Weverson, de novo, de tão banalizadas em nosso cotidiano político, certas coisas já quase passam batidas, como se fossem mesmo “naturais”, mas não se pode deixar de sublinhar: um candidato a prefeito, na verdade, não pode assinar um documento assumindo o compromisso de, uma vez no poder, seguir os “valores” dessa ou daquela igreja, seja ela qual for, tampouco a “vontade de Deus”, seja ele (ou Ele) qual for. Está errado. Simplesmente errado.

Está errado pelo mesmo motivo que está errado um prefeito gastar dinheiro público para erguer monumento a um símbolo ou livro sagrado de determinada religião; pelo mesmo motivo que está errado um prefeito promover cultos e orações de determinada fé dentro do gabinete oficial; pelo mesmo motivo que está errado uma prefeitura gastar dinheiro do contribuinte para patrocinar shows de louvor de determinada crença…

Um candidato não pode assinar uma carta semelhante, em primeiro lugar, porque isso é altamente excludente: os “valores” (dogmas) pregados pela igreja em questão podem não coincidir com os de outras igrejas, podem até contradizer os de outras religiões, ou pior: podem se contrapor aos de membros de determinados segmentos sociais detentores dos mesmos direitos que os seguidores daquela religião.

Em segundo lugar, se ele assinar a carta se comprometendo a defender os valores da igreja A, terá de se comprometer a defender os valores dos seguidores de todas as outras crenças religiosas (e não nos esqueçamos dos ateus), sob pena de atestar de antemão que, como prefeito, tenderá a privilegiar os valores daquela igreja A em sua tomada de decisões.

No caso concreto, estamos diante de uma associação de pastores de uma das maiores e mais tradicionais igrejas pentecostais do Brasil, com milhões de seguidores no país. Os evangélicos em geral correspondem a um grande percentual da população brasileira. Os cristãos (aí somados católicos e espíritas) são a imensa maioria. Por isso, o compromisso do candidato com pastores evangélicos pode levar o leitor a indagar de pronto: “E daí? Qual é problema? O que há de errado nisso?”

Não se trata de uma questão de números, mas de princípios republicanos e constitucionais.

Um exercício sempre válido nesse caso é substituir os elementos, mantendo a situação: e se o candidato tivesse assinado uma carta equivalente com a Convenção Estadual do Islamismo, com a Assembleia Estadual dos Rabinos, com Associação Serrana do Budismo, com a Convenção Municipal dos Seguidores de Alá, ou com a União Espírito-Santense das Religiões de Matriz Africana, comprometendo-se, em todos os casos, a defender os respectivos valores e não ir contra a “vontade” dos respectivos deuses?

Os nomes são fictícios, só para fins argumentativos. O ponto é: como a atitude do candidato seria recebida nesses casos? Com toda essa naturalidade, ou com boa dose de estranhamento?

Ora, tirando o fato evidente de que nenhuma dessas religiões dá voto, qual é a diferença na atitude? Nenhuma. Em termos conceituais, seria exatamente a mesma coisa. Por que, então, naturalizar o “compromisso” firmado com os pastores evangélicos???

É por isso que o legislador foi sábio ao consagrar na Constituição Federal de 1988 a laicidade do Estado como cláusula pétrea da nossa república federativa e democrática.

Políticas públicas não podem ser pautadas pelos valores dessa ou daquela religião. Tampouco uma campanha eleitoral. O único livro que um governante deve jurar defender é a Constituição Federal (a mesma que consagra o Estado laico). O que à primeira vista parece uma prática habitual na verdade é um atentado à laicidade do Estado brasileiro.

Aborto, drogas, “linguagem neutra”…

Tudo isso pode soar por demais abstrato. Desçamos, pois, aos detalhes do caso concreto. Na carta firmada por Weverson, os pastores da CADEESO listaram quatro pautas que o candidato deveria se comprometer a não apoiar (como de fato fez): “1 – ideologia de gênero, 2 – legalização das drogas, 3 – legalização do aborto, 4 – linguagem neutra”.

Aqui, quando passamos aos pontos objetivos, é que a coisa toda fica ainda mais disparatada.

Aborto e drogas são questões afetas exclusivamente à legislação federal. Absolutamente nada a ver com a prefeitura, absolutamente fora da esfera municipal. Weverson é candidato a prefeito, não a deputado federal, senador ou presidente da República.

Não há nada, absolutamente nada, que ele ou qualquer outro pudesse fazer, na condição de prefeito, para alterar a legislação federal vigente a fim de torná-la mais permissiva (como parece ser a preocupação dos pastores em questão), salvo talvez bater um papo com integrantes da bancada federal no Congresso Nacional para tentar influenciá-los a mexer nas leis atualmente em vigor.

Sim, a hipótese é absurda… Por completamente inócuos, esses pontos nem deveriam constar na “carta de compromisso”.

Passemos, então, à “linguagem neutra”. A preocupação, presume-se, refere-se às escolas.

Constitucionalmente, os municípios são responsáveis pela oferta de vagas na educação infantil e no ensino fundamental. Os currículos escolares e conteúdos a serem desenvolvidos em sala de aula também são estabelecidos por legislação federal, como a Lei de Diretrizes e Bases (LDB).

Redes municipais e até unidades escolares têm, até certo ponto, autonomia para desenvolverem os próprios programas político-pedagógicos. Mas um prefeito não pode simplesmente, por decreto ou coisa parecida, determinar a adoção obrigatória da “linguagem neutra” na rede municipal de ensino… Além de risível, qualquer decreto ou lei municipal nesse sentido seria flagrantemente inconstitucional…

Essa preocupação dos pastores, que beira a paranoia, tem muito mais a ver com outra obsessão, o primeiro ponto da carta, tratado detidamente a seguir.

Ideologia de gênero”

Este, sim, é o ponto mais problemático – e que pode render maiores problemas para Weverson, se eleito for.

Antes de tudo, é preciso separar as coisas. “Ideologia de gênero”, como consta na carta, é o termo vago, genérico e deturpado cunhado por grupos conservadores em substituição a “identidade de gênero”.

“Identidade de gênero” é o conceito trabalhado, inclusive em estudos acadêmicos, por aqueles que reconhecem o fato de que existem pessoas que não se identificam com o sexo biológico com o qual nasceram. Vejam bem, isso é um fato da nossa vida social: existem pessoas transgênero. A recusa de alguns grupos em admitir o fato não invalida a existência do fato, tampouco a dessas pessoas.

Ora, estamos aqui a tratar das eleições municipais. No presente processo eleitoral, na página oficial de divulgação de todas as candidaturas a prefeito e vereador no país, o próprio TSE deu a cada candidato a opção de declarar a “identidade de gênero” com a qual se reconhece: cisgênero ou transgênero.

Historicamente perseguidas e marginalizadas, tais minorias devem ter seus direitos preservados pelo Estado como os de quaisquer outros cidadãos (ao respeito, à dignidade humana etc.).

Existem excessos? Sim, existem excessos. Quando se trata de questões identitárias, representantes de partidos de esquerda, destacadamente o PSol, têm incorrido em exageros e radicalismos nos últimos tempos. Na opinião do colunista, a linguagem neutra é um deles – embora quem queira usá-la em seu dia a dia, como modo de autoafirmação da própria identidade, deva ser respeitado em sua decisão pessoal. O exagero está em querer transpor (ou impor) essa prática linguística muito pessoal para espaços públicos e institucionais.

Feita a ressalva acima, voltemos ao ponto-chave, que é a distorção do conceito e os problemas gerados por isso.

Para muitos líderes religiosos e cidadãos conservadores, “ideologia de gênero” nada mais é que o lugar-comum para o qual é empurrado tudo aquilo que destoa da sua agenda de costumes, da “defesa da família e dos valores cristãos”. Na noção de “ideologia de gênero”, cabe tudo aquilo que destoa da sua concepção unitária de família, tradicional e heteronormativa: papai, mamãe, filhinho, filhinha, com o “chefe de família” provedor e a mulher submissa ao marido, rainha do lar, esposa e mãe exemplar.

Aí perguntamos:

Se uma professora do 8º ano do fundamental (turma de 14 anos) quiser abordar o problema da discrepância salarial entre homens e mulheres no exercício das mesmas funções no mundo do trabalho, essa educadora estará praticando “ideologia de gênero” e “doutrinando os filhos do cidadão de bem serrano”? Para alguns líderes religiosos, sim. O que o prefeito Weverson dirá?

Se, em escola de comunidade de baixa renda, cheia de mães adolescentes, educadores quiserem tratar de educação sexual e abordar o tema da prevenção à gravidez precoce com adolescentes dos últimos anos do fundamental, alguns líderes religiosos podem ser radicalmente contrários e correr a acusar a prática de “ideologia de gênero”. O que o signatário da carta dirá?

Se, em unidade da rede municipal da Serra, educadores identificarem um problema grave e recorrente de bullying contra alunos/as adolescentes por sua orientação sexual (ou mesmo por sua identidade de gênero), a escola não poderá realizar um necessário trabalho de diálogo, reflexão e conscientização dos alunos a fim de combater o preconceito e a discriminação que pode acompanhá-los na vida adulta, sob pena de ser considerada praticante da “ideologia de gênero”?

Considerações finais

Por fim, do ponto de vista da estratégia política, é preciso ponderar o seguinte:

Nada disso deveria estar sendo realmente discutido numa eleição para prefeito. Como eu mesmo já defendi aqui mais de uma vez, numa eleição municipal, discute-se a cidade.

O próprio Weverson tem evitado levar o debate eleitoral para o campo das polêmicas morais e ideológicas… Mas o próprio candidato foi quem voluntariamente assinou as cartas, que vêm a ser, exatamente, um tremendo convite para isso! A partir do momento em que ele mesmo firma as cartas, ele mesmo dispõe-se a levar a discussão para esse lado.

E se joga na mesma armadilha que queria evitar.


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