Coluna João Gualberto
Sociedade da solidão
Na era da conexão digital, a solidão persiste como sombra silenciosa em lares de todas as idades

Diante do crescimento exponencial da ‘economia da solidão’, especialistas alertam: monetizar o isolamento humano pode aprofundar a crise de conexões autênticas e acelerar a desumanização das relações na sociedade contemporânea. Foto: Freepik
Vivemos em tempos de solidão. Muitos são os lares que têm apenas um morador, em qualquer classe social, sobretudo nos países mais ricos. Quando os que vivem sozinhos são jovens e saudáveis, trata-se apenas de uma opção, uma escolha. Entretanto, quando a solidão pesa, incomoda e atormenta, sobretudo entre os idosos, buscam-se formas de conviver com essa situação.
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No mundo atual as redes sociais passaram a ser essa companhia invisível, entretanto muito presente. Em um país como o nosso, as pessoas estão em permanente interação com esse mundo que o celular coloca na palma das nossas mãos e à altura dos nossos olhos.
Vamos falar um pouco da nossa trajetória social na solidão. No mundo antigo, cada moradia abrigava uma família extensa, composta de várias gerações: avós, filhos, netos e um conjunto de agregados, como sobrinhos, afilhados e filhos de amigos. Não havia mesmo esse conceito tão caro e natural aos nossos dias: o da vida privada. O ambiente familiar envolvia a todos, que acabavam compartilhando dos momentos de intimidade, pois que tudo era vivido de forma mais coletiva. O conceito de família era amplo e a possibilidade de comportamentos desviantes era sempre punida.
Não sei se a minha leitora e o meu leitor sabem, mas as camas nas casas do mundo antigo eram coletivas. Nelas dormia toda a família e, nas noites frias de inverno, incluíam-se até os animais domésticos, como patos, galinhas, cachorros. Era uma forma de espantar o frio, mas que, evidentemente, impedia qualquer privacidade nas relações sexuais dos donos da casa: tudo era feito na presença de todos. É bom também lembrar que na idade média europeia os banhos eram anuais. O banho semanal, geralmente aos sábados, só foi adotado na maioria dos países em pleno século XIX. Difícil imaginar um romantismo assim.
Dentro desse conceito abrangente de família tudo era compartilhado: refeições, banhos, punições, até porque o chefe desse clã numeroso era também o provedor de todas as despesas. Havia uma dependência muito grande em torno dessa figura e também um padrão de socialização de comportamentos muito rigoroso. Lentamente, através os séculos, isso foi mudando. A sociedade urbana permitiu mais flexibilidade nos estilos de vida, os novos padrões de higiene e de saúde pública também se estabeleceram.
A partir sobretudo da segunda metade do século XX as pessoas foram ficando mais autônomas, desmembrando-se do núcleo familiar que as prendia até então. As grandes cidades se impuseram em todos os continentes e a vida urbana trouxe várias mudanças. Como consequência, passamos a conviver com um universo de novas configurações familiares, onde os papéis de gênero foram redefinidos e a noção da autoridade mudou muito.
Nesse novo padrão de comportamento a velha família patriarcal dos velhos tempos ficou mesmo no passado. Os filhos se desprendem muito mais cedo em busca de seus projetos de vida, assim a solidão passou a ter papel definitivo na noção de felicidade. Nem todos querem perder sua autonomia, por isso muitas pessoas passaram a viver sós, de forma espontânea ou mesmo por imposição de novas circunstâncias. Agora outras formas de ocupar o tempo se impõem, ou novas formas de conviver com a solidão, querida e temida ao mesmo tempo.
A jornalista Ruth de Aquino, na sua coluna em O Globo, assinalou, há algumas semanas, que o principal uso da Inteligência Artificial hoje se dá como companhia e terapia. O divã de terapeutas robôs atrai, segundo a autora, milhões de pessoas no mundo todo, sobretudo jovens de 18 a 24 anos. Sem muito dinheiro pagar psicanalista, insones na madrugada, sem ninguém com quem conversar, ficam prisioneiros da depressão e da ansiedade e querem disponibilidade às três horas da manhã.
Para Ruth de Aquino, a IA explora a carência emocional e – acrescento eu – os donos do poder nas redes sociais já descobriram que existe uma espécie de “economia da solidão”, uma forma pouco ética de faturar com a carência de milhões de pessoas, oferecendo uma multiplicidade de produtos. A tecnologia, em princípio fria e desprovida de humanidade, passa a ser o centro de uma sociedade que tem pouco a oferecer aos que sofrem com as consequências do mundo contemporâneo. Não ouso dizer que os antigos eram mais felizes, afinal a liberdade não tem preço, mas o progressivo processo de desumanização das relações é algo que deveria nos preocupar.
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