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Natureza não é mercadoria! Meio ambiente não é negócio!

O biólogo Walter Có traz um debate sobre a preocupação om os impactos ambientais e a transformação de áreas protegidas em espaços turísticos lucrativos

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Parque Estadual de Itaúnas. Foto: Divulgação/Gov-ES

Parque Estadual de Itaúnas. Foto: Divulgação/Gov-ES

A proposta de concessão dos parques capixabas à iniciativa privada anunciada pelo governador Renato Casagrande, através do seu secretário de Meio Ambiente, Felipe Rigoni, é tão absurda que em pouco tempo mobilizou um enorme contingente de ambientalistas, pesquisadores, políticos, comunidades locais e a população em geral para lutar contra esse projeto de destruição. Sim, lutar! Se no passado os defensores capixabas do meio ambiente combatiam madeireiros, grileiros, caçadores e invasores de terras, hoje, além desses e outros criminosos ambientais, os ativistas precisam lutar também contra projetos criados pelas próprias instituições que deveriam preservar o meio ambiente. Sinal dos tempos, sinal de tantos retrocessos que assistimos na área ambiental nos últimos anos.

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A melhor imagem mental que consigo criar para auxiliar o leitor a compreender o tamanho desse absurdo é a de que colocamos as raposas para tomarem conta do galinheiro e elas nos ofereceram omeletes como projeto de sustentabilidade. Omeletes para as raposas são um excelente negócio, muito lucrativo e rentável, mas é péssimo para as galinhas e para o galinheiro como um todo, pois mata o presente e também compromete o futuro. É essa a imagem que tenho da proposta de concessão dos parques capixabas à iniciativa privada. Não é uma proposta que visa o bem-estar ou mesmo a sobrevivência das raras e biologicamente valiosas espécies que existem nessas unidades, mas sim uma proposta para instalar no seu interior estruturas turísticas de alto impacto ambiental, com um aumento absurdo do fluxo humano para pisotear, afugentar ou simplesmente matar animais e plantas em seu caminho, sem nenhum remorso ou pudor, apenas para gerar lucro ao dono da concessão. O extermínio de espécies tão raras e ameaçadas de extinção simplesmente não entra na equação da proposta ou mesmo preocupa seus proponentes. Apesar do esforço de tantos profissionais de diferentes áreas em mostrar a magnitude de tais impactos, tanto o Governador Casagrande quanto seu Secretário do Meio Ambiente Felipe Rigoni, permanecem indiferentes aos apelos, fatos e argumentos fartamente apresentados. Há dois motivos igualmente inquietantes para isso: ou não conseguem alcançar o tamanho da perda ambiental que tal projeto representa para essas preciosas Unidades de Conservação ou simplesmente não se importam.

O OUTRO LADO: Confira o que secretário Felipe Rigoni fala sobre o assunto

Mas, afinal, o que há de errado com essa proposta? Tudo! Inicialmente, vamos refletir sobre qual é a real finalidade de um parque ecológico. Todos estamos assistindo à destruição da natureza nas últimas décadas. Há a cada dia menos natureza e mais cidades, pastagens, amplas plantações de soja, milho, cana, etc. Com a previsão de que a humanidade e suas atividades iriam ocupar o planeta inteiro, no início do século XIX foram criadas as primeiras Unidades de Conservação (UC), ou seja, áreas de natureza protegida. Nessas áreas, a prioridade não seria o ser humano, mas o restante da vida que habita o Planeta Terra há quase 4 bilhões de anos. Nessas pequenas ilhas de natureza, seria relativamente possível que a vida pudesse seguir seu curso, com uma mínima interferência humana. Além de seguir seu curso natural, as formas de vida presentes nessas unidades garantiriam a água que abastece nossas cidades e movimenta a economia, os polinizadores que permitem colheitas mais fartas e tantos outros serviços ambientais vitais à nossa sobrevivência.

Durante um certo tempo, essas unidades permaneceram intocadas e cumprindo o seu importante papel socioambiental. Entretanto, com o avanço da massa humana sobre os territórios e a consequente devastação sobre eles, essas áreas naturais começaram a ser cobiçadas, pois guardavam uma natureza ainda exuberante e paisagens maravilhosas. Logo se iniciou uma pressão política e econômica e algumas dessas áreas ganharam uma nova categoria: a de Parques Naturais. Nessa categoria, a natureza continuaria sendo “integralmente protegida”, mas seria permitida a “visitação” humana. O maior argumento para essa flexibilização foi o de reaproximar a humanidade da natureza, através de seu contato direto com ela e, é claro, utilizá-la – mesmo de forma indireta – para movimentar a economia local.

Ao redor desses parques, uma grande infraestrutura turística começou a surgir, com hotéis, pousadas, restaurantes e outros equipamentos. Os parques se tornaram um grande negócio para os turismos locais. Mas, infelizmente, todo esse contingente humano trouxe diversos impactos negativos para a natureza que deveria estar sendo protegida, como a caça, os incêndios, a poluição e o grande volume de pessoas com seus resíduos, barulho e falta de respeito ao meio ambiente.

O que estamos assistindo agora com essa triste e infeliz proposta de concessão dos parques é um novo e violento ataque a essas unidades. A intenção é introduzir, à força, essa estrutura turística urbana e depredatória dentro das áreas protegidas, transferindo para o interior dessas últimas ilhas de natureza todos os impactos danosos da urbanização e da massificação. Qual é o sentido de se construir hotéis, piscinas, restaurantes e equipamentos de lazer dentro dos parques, se já existem dezenas em seus arredores? Quem ganha com isso? E quantos perdem? Como pode a comunidade de Itaúnas, por exemplo, competir com pousadas dentro do parque? E como ficam os moradores “não humanos” que vivem dentro dos parques? Por exemplo, imagine que, numa pousada dentro do parque, acendam-se as luzes à noite. Essas luzes vão atrair todos os insetos que vivem ali e que são atraídos por luzes. Em Itaúnas, os barraqueiros não têm luz elétrica até hoje porque sempre foi impensável ligar luz elétrica dentro de um parque natural, pois interfere de forma muito negativa na vida dos animais. Mas, além disso, essas pousadas vão atrair também aranhas, escorpiões, sapos, pererecas e tantos outros animais que irão ficar dentro dos quartos dos hóspedes e com certeza serão mortos. Só que aranhas e escorpiões são os verdadeiros moradores do parque. Então se teria que dedetizar a pousada e manter o ambiente estéril, matando os animais que estão em volta. E uma jararaca? Quando uma jararaca, antiga e legítima moradora do parque, se aproximar dos hóspedes do hotel, qual será seu destino? Imagine, por exemplo, um animal que, ao longe, sinta o cheiro da comida produzida no restaurante dentro do parque: o que ele fará? Continuará caçando seu alimento ou irá atrás de algo que nunca será capaz de ter? Qual seria a reação dos hóspedes ao se depararem com um carnívoro faminto olhando para eles?

Essas estruturas projetadas para o interior dos parques são incompatíveis com os animais, reais moradores dos parques, que seriam diariamente exterminados. Mas, qual é o problema de matarmos esses animais? Perguntaria o leitor mais repulsivo à natureza. Só para exemplificar, existe um remédio retirado de uma única substância do veneno da jararaca que produz o remédio mais importante no mundo inteiro atualmente para controle de pressão arterial. Todo mundo, sem conhecer o fato, na certa usa ou conhece alguém que faz uso desse remédio. Essa única substância, além de salvar milhões de vidas humanas, gera cinco bilhões de dólares por ano de lucro. E, se não tivéssemos descoberto essa substância antes da extinção da jararaca, jamais teríamos produzido o remédio. Existe uma vespa brasileira cujo veneno está sendo pesquisado por ser eficiente contra alguns tipos de câncer, sem causar os efeitos da quimioterapia. Quanto valeria, em termos humanitários e financeiros, uma substância que pode curar diversos tipos de câncer sem os efeitos colaterais de uma quimioterapia? Agora, imagine uma vespa dessas fazendo o ninho no teto da pousada dentro do parque e sendo imediatamente morta em seguida.

Por favor, entendam: as Unidades de Conservação são os últimos refúgios onde esses seres ainda podem viver e o valor de cada um deles é inestimável tanto para o presente quanto para o futuro, são as últimas fontes de substâncias e tantas outras propriedades imprescindíveis para as presentes e futuras gerações. Trocá-las por mais algumas pousadas e tirolesas não faz o menor sentido. Tais seres vivos e tantos outros que habitam essas Unidades são totalmente incompatíveis com as grandes estruturas turísticas que vão interferir na vida desses seres cujo único lugar que ainda têm para existir é dentro delas. Imagine se, ao invés do pão, circo e tirolesas apresentados pelo projeto de concessão, o estado investisse em pesquisa nessas unidades! Quantos remédios seriam descobertos e quanto valor agregaria e esses lugares, que por lei se prestam exatamente a esse fim. Mas esse Brasil da ciência, do real progresso social, da coerência e da sensatez é um lugar que simplesmente não existe na mente de quem o governa. Você, que me lê nesse momento, não faz ideia do tamanho da dor e da aflição que nós, que passamos a vida estudando para compreender a complexidade e a importância da natureza, estamos sentindo pela impotência em transmitir a todos e a tempo, a urgência que é o cancelamento desse projeto e assim evitar suas consequências.

Outro argumento apresentado é que isso iria “fomentar” o turismo e gerar empregos locais, ideia que não se justifica. Todo o litoral capixaba já recebe um turismo de massa com seus impactos. Existem centenas de hotéis, pousadas, restaurantes, tirolesas e tantos outros atrativos turísticos em profusão. Então, para que levar isso também para o interior dessas unidades, se é exatamente a natureza em sua forma mais pura que torna esses ambientes tão atrativos e peculiares? Aí entrarmos em outro ponto importante.

O turismo de massa está se disseminado por todo litoral capixaba, com bares, restaurantes, pousadas, quiosques, música, agito e muita, muita gente. O interior dos parques atende a um outro tipo de turista: o turista que não quer toda essa movimentação, mas sim um contato mais profundo com a natureza. São cada dia mais raros os lugares que proporcionam esse tipo de experiência e é nas Unidades de Conservação, como os parques, que isso pode acontecer. Piscinas, tirolesas, restaurantes e música existem em profusão ao redor dessas unidades, mas o som do vento, o canto dos pássaros, o coaxar dos sapos, só existem ainda dentro delas. Esse tipo de experiência não tem preço e é cada dia mais rara e valiosa para nossa saúde física e mental. A Ecopsicologia tem demonstrado o valor terapêutico que esse contato com a natureza produz no tratamento de sintomas da ansiedade, insônia e depressão, que são exatamente os males de quem leva uma vida agitada, imersa nos barulhos e fatores estressantes das grandes cidades. O que ainda existe no interior das UCs é remédio, é terapia e uma das últimas portas que termos de conexão com algo mais profundo que tanto nos falta, nas diferentes fases da vida.

Para além disso, um dos piores argumentos dos defensores desse projeto é o de que apenas 0,1% da área dessas unidades seriam utilizadas nas edificações e de que isso não traria impacto. Ora, um tumor cancerígeno ocupa bem menos do que 0,1% do corpo, mas o destrói completamente, pois seus impactos não são pontuais, mas sistêmicos. É óbvio que os impactos causados nessas Unidades não seriam causados apenas pelas estruturas construídas, mas principalmente pelo fluxo de pessoas trazidas por elas e seu uso. Há uma previsão no projeto de Concessão do Parque Paulo César Vinha, em Setiba, de se construir um estacionamento para mil carros e aumentar o fluxo em 150 mil visitantes! Esse fluxo humano e de veículos afugentaria qualquer animal, contaminaria a água da lagoa e geraria impactos igualmente sistêmicos, nesse caso, ecossistêmicos. Utilizar-se de um argumento tão equivocado para subestimar os grandes impactos que seriam gerados pelo modelo de concessão apresentado revela ou uma superficialidade gritante da análise de risco do projeto ou uma negligência intencional de sua gravidade, sendo novamente inquietantes as duas possibilidades.

Aí entra um último ponto de reflexão. O Parque de Itaúnas foi criado pelo governo do estado do Espírito Santo na década de 1990 como uma forma de proteger aquele lugar, pois havia uma proposta já adiantada de se construir um resort em seu interior. E ironicamente, agora, é o mesmo governo quem propõe a construção de algo ainda maior e mais impactante! É lastimável ver o quanto o poder econômico avançou sobre a política, elegeu seus representantes e agora quer se apropriar de tudo que é público, de tudo que é belo, de tudo que ainda pertence à população. E a partir da eminente falência das instituições públicas, também precisamos nos perguntar: a quem recorrer quando o Estado, que deveria ser o gestor e protetor do patrimônio público torna-se seu principal agressor?

As doenças autoimunes são aquelas em que o próprio organismo começa a se destruir por dentro, quando as células que deveriam nos defender, nos atacam. A humanidade está vivendo como se tivesse uma doença autoimune: os órgãos que deveriam nos defender, nos atacam; um governador e um secretário do meio ambiente propõem um projeto que cria as condições para a destruição dos lugares onde a natureza deveria ser soberana e integralmente protegida. Esse, definitivamente, não deveria ser o papel do Estado, de suas secretarias e de suas autarquias. Como fazer a SEAMA cumprir seu papel, de olhar para o céu e enxergar o pó preto que afeta nossa saúde há décadas? Como explicar para a SEAMA que nada geraria mais turismo, emprego, renda e saúde que a despoluição de nossas praias tão lindas, mesmo dentro de uma área urbana, com ações concretas de saneamento básico? Como fazer a SEAMA compreender que basta um telefonema ao comando da polícia ambiental para interromper a extração ilegal de areia próxima ao Parque Paulo César Vinha? Como explicar para a população capixaba que essa secretaria que se diz incapaz de cuidar dos parques capixabas e quer leiloá-los, mesmo contando com um corpo técnico de profissionais de excelência dentro da SEAMA e do IEMA, gastou 8 milhões de reais apenas para que uma empresa fizesse um projeto megalomaníaco para a concessão dos parques capixabas? Como explicar que o papel dela é cuidar das questões ambientais que nos aflige a todos e não leiloar em praça pública um bem que não pertence a ela, que não pertence a ninguém, que é parte do nosso presente e do destino de tantas gerações que certamente irão nos suceder nessa luta pelo que ainda nos resta de natureza e de futuro?

Mas trabalharemos muito para que esse projeto de concessão nunca saia do papel. Tanto o Governador Casagrande como seu Secretário do Meio Ambiente são políticos profissionais. Nenhum político, em tempos de emergência climática, sobreviverá ao rótulo e estigma de destruidores da natureza e leiloeiros da natureza do Espírito Santo. Por enquanto já perderam centenas de votos, de uma categoria de eleitores que sempre os elegeram, mas em breve perderão milhares. Não há como evitar que uma legião de pessoas e entidades agora mobilizadas criem um tsunami político, jurídico e social para evitar que esse projeto absurdo se concretize. Espera-se que mais pessoas se juntem a essa mobilização – o Movimento de Defesa das Unidades de Conservação do Espírito Santo – para que as lideranças políticas compreendam qual o seu verdadeiro papel: que é o de preservar a vida em todas as suas formas e, para tanto, devolvam aos órgãos responsáveis pelo meio ambiente do Espírito Santo sua autonomia e robustez, para nos pouparem de tanto trabalho e dissabor em fazer o trabalho que é, por determinação legal, deles.


*Walter Có é biólogo, professor e representa o movimento de defesa dos parques.

 

 

 

 

 


Plural. Foto: Freepik

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