Dia a dia
Do preconceito ao crime: como vivem LGBTQIAPN+ em presídio do ES
A Defensoria Pública do Espírito Santo atua de forma sistemática para fazer com que a população LGBTQIAPN+ tenha seus direitos preservados
Além enfrentar o preconceito da sociedade por serem quem são, a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Queer, Intersexo, Assexuais, Pan/Pôli, Não-binárias (LGBTQIAPN+) muitas vezes não tem o apoio da família e, em alguns casos, acaba expulsa de casa. E é nas ruas que essas pessoas acabam encontrando formas de sobrevivência, como a prostituição, ou recrutadas pelo crime.
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Um exemplo disso é a Ranielly Sena, assumidamente travesti e hoje com 30 anos. Mas foi aos 19 que teve sua primeira experiência com o tráfico de drogas e grupos de roubos.
“A gente sai de casa e a margem da sociedade nos abraça com drogas, prostituição e o crime. Ali você tem seu respeito pelo seu gênero, se sente respeitada, mas também tem a morte ou a prisão”, revelou.
Condenada pelos crimes, Ranielly teve a oportunidade de deixar a cadeia, mas com a pandemia ela ficou sem trabalho no salão de beleza e teve que voltar a trabalhar na área rural na Bahia. Com isso, acabou não cumprindo as medidas do regime semi aberto e retornou ao encarceramento.
Foi dentro da Penitenciária de Segurança Média 2 (PSME2), localizada no Complexo de Viana, que Ranielly teve contato com o primeiro curso de qualificação profissional com a formação de cabeleireiro.
O presídio é a primeira unidade exclusiva e de referência à população LGBTQIAPN+ do país. São cerca de 300 custodiados, que cumprem pena nos regimes provisório, fechado e semiaberto. Desse total, 104 são trans ou travestis.
Além de cursos, LGBTQIAPN+ também participam de projetos sociais desenvolvidos dentro da própria unidade. A Ranielly, por exemplo, atua no salão de beleza e faz em média seis atendimentos por dia.
Segundo ela, essa é uma oportunidade de quando deixar a prisão conseguir enfrentar o preconceito e seguir a vida longe da marginalidade.
“As mulheres trans e travestis estão na ponta da lança do preconceito. Temos que acordar todo dia, batalhar, se reinventar e rever nossos conceitos. Quando se fala em travesti, a sociedade associa à prostituição e roubo. Então tenho que mostrar que sou travesti, passei pela unidade prisional sim, mas estou me reabilitando socialmente”, declarou.
Para se ter uma ideia do preconceito que enfrentam e como essas pessoas são Invisibilizadas até pelas próprias famílias, basta observar os dados da unidade.
Nos fins de semana, em outros presídios do estado o número de visitas aos internos pode chegar até 150. No PSME2, os visitantes somam 20 em média para LGBTQIAPN+
Direitos da população LGBTQIAPN+
Mesmo à margem da sociedade, como costuma dizer, foi no presídio que a travesti Ranielly Sena viu seus direitos sendo respeitados. Um deles é referente à retificação do nome de registro e a chance de poder ser chamada oficialmente pelo nome social que escolheu.
“Vai fazer um mês que dei entrada e agora estou só esperando a certidão de nascimento chegar para fazer os outros documentos”. Ela contou que esse era um desejo, principalmente para evitar constragimentos em locais públicos.
A gente vai no posto de saúde e quando chamam pelo nome masculino levanta uma mulher trans. É um constrangimento grande. A retificação é maravilhosa tanto para a mulher quanto para o homem trans”.
Entre os anos de 2023 e 2024 já foram emitidos 39 RG’s contendo nome social na Penitenciária de Segurança Média 2 (PSME2) para LGBTQIAPN+.
Nesse ponto também é que atua a Defensoria Pública do Espírito Santo com o Núcleo de Direitos Humanos, que é direcionado a preservação dos direitos de grupos sociais vulneráveis, de pessoas vítimas de violência, tortura, discriminação ou qualquer outra forma de opressão.
Dentro desse espaço há um setor específico para a população LGBTQIAPN+ e que também atente as pessoas que estão em privação de liberdade.
Semanalmente ou quinzenalmente, de acordo com a demanda, acontece a visita dos defensores às unidades para verificar se os direitos estão sendo respeitados.
Além de garantir a retificação no nome, a defensoria também atua na garantia de outros direitos como a análise de revisão de pena, a segurança nas celas e o combate às revistas consideradas vexatórias.
“Elas muitas vezes querem ficar separadas e com as quais se identificam com o mesmo gênero para que não haja preconceito, não só pelos agentes, mas também pelas próprias pessoas que também estão no mesmo espaço”, explicou o defensor público Edmundo Anderi Neto.
Ele informou ainda que além das visitas às unidades, a Defensoria também recebe, de forma espontânea, denúncias sobre violações de direitos por meio de assistentes sociais, médicos e outros profissionais que trabalham nos presídios.
Apesar de todos os avancos, a Defensoria sabe que o trabalho é grande e que precisa acompanhar de perto a necessidade dessas pessoas que, na maioria dos casos, não possuem qualquer tipo de orientação sobre seus direitos.
“A gente sabe que avançamos muito, mas queremos evoluir ainda mais e não medir esforços para fazer os encaminhamentos necessários. Essas pessoas são silenciadas e nosso trabalho é dar voz para que seus direitos sejam respeitados”, destacou o defensor.
O Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Espírito Santo funciona na Avenida Jerônimo Monteiro, 1000, 6º andar, Centro de Vitória. Whatsapp: (27) 99930-7443
Inclusão social
Sob a custódia do Estado, a população LGBTQIA+ que cumpre pena na Penitenciária de Segurança Média 2 (PSME2) tem a possibilidade de desenvolver talentos e se capacitar para o mercado de trabalho quando ganharem de fato a liberdade.
Além de terem direito ao nome social, a Portaria Nº 413-R que regula os parâmetros e procedimentos para atendimento à população LGBTQIA+ no sistema prisional capixaba, estabelece que essas pessoas também têm o direito à utilização de vestuário e corte de cabelo de acordo com a identidade de gênero, como também demais procedimentos realizados nas unidades, inclusive visitas íntimas.
De acordo com o diretor da PSME2, Gabriel Fitaroni, a identificação das pessoas que se autodeclaram LGBTQIA+ é realizada no momento da triagem. A partir daí elas são encaminhadas para essa unidade exclusiva.
Ele contou que como forma de ressocialização e inserção profissional, o presídio desenvolve quatro projetos para os internos e internas, além de parcerias para a promoção de cursos profissionalizantes.
“O objetivo é capacitar e preparar para o mercado de trabalho para que, a partir do momento que tiver o alvará ou a progressão do regime, possam trabalhar e conseguir uma profissionalização”, reforçou.
Para participar dos projetos, existe uma comissão técnica que faz a seleção de acordo com a aptidão e o comportamento. Os que trabalham também ainda ganham o direito de reduzir um dia da pena a cada três trabalhados.
A Penitenciária oferta atendimento de saúde, psicossocial, educação básica na modalidade EJA. “Visualmente a gente consegue observar a satisfação deles em poder trabalhar e serem úteis. Eles convesam, produzem e tem um objetivo. Isso é bem bacana”, comemorou Fitaroni.
Confira abaixo os projetos realizados na Penitenciária de Segurança Média 2
Projeto Arco-Iris – Ao todo, 10 internos e internas participam de forma voluntária de atividades de criação de amigurumis, confecção e restauro de bonecas e souplast. O objetivo é trazer novas perceptivas aos participantes, além do impacto terapêutico e a remição da pena. No último ano, cerca de dois mil amigurumis foram doados.
Projeto Fazendo Arte – internos e internas produzem no projeto de costura camas para pets, cobertores, bolsas, entre outros artesanatos. Mais de 1.500 itens foram doados no último ano.
Os materiais produzidos são doados para instituições como casas de acolhimento, abrigos, casa lar, crianças em situação de vulnerabilidade e demais instituições. A entrega é feita sempre com a participação dos presos e presas, que inclusos na intervenção final, podem perceber o impacto gerado com gestos de solidariedade.
Salão Espaço Divas – Inaugurado em maio, o projeto é vencedor do Edital de Boas Práticas no campo das Políticas sobre Drogas, vinculada à Secretaria do Governo (SEG). A iniciativa recebeu a premiação de R$ 40 mil, juntamente com o Projeto Arco Iris, também desenvolvido na unidade prisional.
O salão recebeu espaço próprio dentro da unidade prisional para realização das atividades de beleza e conta com equipamentos profissionais. Foram adquiridos mesas, lavatórios, cadeira de corte, secador, pranchas alisadoras, entre outros produtos destinados ao atendimento do salão. Duas internas, que têm certificados na área, atuam na atividade. O espaço vai oferecer não só serviços de beleza, mas também cursos profissionalizantes.
Rádio Estação Purpurina – um estúdio foi montado com equipamentos de som, microfones e isolamento acústico dentro da unidade prisional. Informação, entretenimento e serviço são alguns dos conteúdos que fazem parte da programação da rádio. O canal de comunicação também informa sobre os diversos procedimentos realizados no sistema prisional, abrange pautas importantes como educação, saúde e religiosidade para os custodiados.
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