Coluna Vitor Vogas
Prisão de ex-secretário da Fazenda cria problemão político para Casagrande
Filiado ao PSB, Rogélio Pegoretti ainda pode se tornar alvo de denúncia do MPES por corrupção. Sua prisão na Operação Decanter arranha o rótulo de “melhor gestão fiscal” e trinca a transparência da garrafa do governo Casagrande às vésperas da eleição

Rogélio Pegoretti e Renato Casagrande
A Operação Decanter causa um problemão para o governo Casagrande e, particularmente, para o governador e sua pré-candidatura. Menos de 24 horas após ele lançar sua campanha à reeleição, celebrando que o Espírito Santo é o estado com a melhor gestão fiscal e com os melhores índices de transparência do país, o Ministério Público Estadual (MPES) desencadeia, em parceria com a própria Receita Estadual (leia-se: um pedaço do próprio governo), uma operação que coloca em xeque exatamente essas duas premissas. Em especial, a prisão do ex-secretário estadual da Fazenda Rogélio Pegoretti arranha gravemente esse rótulo de “boa gestão fiscal” e trinca de um modo irreparável essa “garrafa transparente” do governo Casagrande.
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Em primeiro lugar, até que se prove o contrário, Rogélio é filiado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), sigla de Renato Casagrande. A assessoria de imprensa do PSB-ES confirmou, na noite de ontem, que seu nome segue constando na relação de filiados ao partido em Vitória. Conversei ontem com antigos dirigentes do PSB no Espírito Santo e eles fizeram questão de frisar que o ex-secretário não exercia a menor militância partidária. De fato, não exercia. Mas foi filiado ao PSB que se tornou secretário da Fazenda, no dia 1º de janeiro de 2019.
Em segundo lugar, Rogélio à frente da Sefaz foi uma aposta pessoal de Casagrande, a qual, bem se vê agora, não foi das mais acertadas. No período de transição após a última vitória eleitoral do socialista, entre outubro e dezembro de 2018, o jovem auditor de carreira do Tribunal de Contas do Estado (TCES) despontou como a grande surpresa, de longe, na composição do 1º escalão do governo entrante. Era, até então, um rosto quase totalmente desconhecido, inclusive pela imprensa capixaba.
Em meio a algumas indicações bem previsíveis (caciques de partidos aliados espalhados por quinhões do poder) e outras nem tanto assim (Nésio Fernandes, por exemplo, na Saúde), de repente apareceu Rogélio Pegoretti, em uma coletiva de imprensa, apresentado como o próximo secretário estadual da Fazenda, talvez a pasta mais importante de todas. Todo mundo se entreolhou… e correu para tentar descobrir quem era, afinal, aquele novo personagem que de repente, de quase ilustre desconhecido, seria alçado a chefe da secretaria mais estratégica do governo: o “dono do cofre”.
Para além da filiação partidária – fato, por sinal, omitido em sua apresentação à imprensa –, Casagrande escolheu Rogélio como parte de sua “cota pessoal”. Escolheu-o por acreditar no potencial técnico de um jovem e promissor burocrata que era considerado um “prodígio” em matéria de gestão fiscal, num momento em que esse tema adquirira absoluta relevância para Casagrande. Após o bombardeio que sofreu da campanha de Paulo Hartung nesse flanco em 2014, o atual governador tomou a preservação do equilíbrio fiscal como, mais que uma meta, uma questão de honra.
E Rogélio, apesar da pouca idade, tinha currículo para exibir nessa área, inclusive na administração pública. Nos dois anos anteriores (2017-2018), ele fora secretário da Fazenda de Cachoeiro de Itapemirim, no início da administração do prefeito Victor Coelho, também do PSB. A experiência, se bem que curta, foi considerada exemplar e chamou a atenção de Casagrande. Pelo que consta, o secretário de fato deu uma boa arrumada na casa, saneando as contas do maior município da região sul.
Nos três primeiros anos do governo Casagrande – até pedir exoneração, em agosto de 2021 –, é preciso reconhecer que Rogélio cumpriu a contento a missão maior dada a ele pelo governador: manteve o Espírito Santo com a nota A, a melhor classificação atribuída pelo Ministério da Economia a unidades federativas, no ranking da saúde fiscal (o Capag).
Mas o que não se sabia até agora é que, no meio desse percurso, o secretário teria ouvido e cedido ao canto da sereia…
Pelo menos de acordo com o que indicam as investigações do MPES e da Receita Estadual – vinculada à própria Sefaz – na Operação Decanter, Rogélio teria participado de maneira decisiva de uma organização criminosa constituída por agentes públicos instalados na Sefaz e empresários com atuação no segmento de comércio de vinhos.
Nos últimos quatro anos, essa quadrilha teria promovido um rombo da ordem de R$ 120 milhões ao Espírito Santo – um dano “irreversível”, nas palavras do promotor de Justiça Luis Felipe Scalco, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate à Sonegação Fiscal (Gaesf). Por conta desse papel decisivo desempenhado no esquema, Rogélio foi preso nesta terça-feira.
Segundo o mesmo promotor de Justiça, a história ainda pode piorar muito: lastreado pelo conjunto de indícios reunidos até este ponto das investigações, o MPES tem alta probabilidade de oferecer à Justiça denúncia criminal em face de Rogélio, bem como do auditor fiscal de carreira da Receita Estadual que também operaria no esquema, por corrupção ativa e passiva:
“Em breve [haverá] uma denúncia criminal. […] Um outro crime que observamos no contexto dessa organização criminosa foi a suposta corrupção ativa e passiva, por conta da atuação desses servidores. […] Nós estamos coletando as provas necessárias para apurar todos os crimes que hoje são objeto de investigação, dentre eles o de corrupção. Há indicativos fortes dessa prática, tanto que houve a expedição dos mandados.”
O real motivo da demissão de Rogélio
Pelo que a coluna apurou com fonte do governo Casagrande – e ninguém jamais vai confirmar isso publicamente –, a cúpula do Palácio Anchieta descobriu, pouco antes da sua exoneração em agosto do ano passado, que seu então secretário da Fazenda estava sob investigação e que poderia estar andando fora da linha reta traçada pelo governador. E foi por isso, logicamente, que ele foi sacrificado. À época, alegou-se motivo pessoal, e de fato havia um motivo pessoal, mas este só serviu de pretexto para escamotear a razão maior.
Se a notícia “EX-secretário da Fazenda de Casagrande é preso e pode ser denunciado por corrupção” (frisando-se o prefixo) já é grave e devastadora por si, tendo ele sido exonerado há quase ano, imaginem se a notícia tivesse explodido agora, às vésperas de uma campanha pela reeleição, e com o secretário ainda no cargo?
A exoneração de Rogélio, assim, em agosto do ano passado, foi tomada como uma medida preventiva. Como tirar um bandeide – ou uma rolha de vinho, para deixa-lo “respirar”, mas bem longe do governo, levando com ele um problema que já não é pequeno, mas que pode piorar ainda mais a depender da sequência do inquérito… “O material é imenso. Há muito a ser explorado ali”, adianta o coordenador do Gaesf.
De todo modo, enquanto o governo experimenta uma degustação de dissabores políticos, quem está fazendo festa (quiçá regada a vinho) são os oponentes eleitorais de Casagrande.
Se o ex-secretário da Fazenda for mesmo denunciado por corrupção, o governo não poderá mais dizer que não houve corrupção instalada no alto escalão nestes últimos quatro anos (ou, no mínimo, indícios robustos de práticas lesivas ao erário).
O governador poderá sempre sustentar que “não tem compromisso com o erro de ninguém” (como disse, mais uma vez, ao lançar sua candidatura na véspera). Poderá sempre alegar que manteve tolerância zero com casos de corrupção, que ervas daninhas foram logo eliminadas, que exonerou prontamente qualquer colaborador mediante a mínima suspeita de condutas inidôneas, não republicanas etc… Mas não poderá dizer que não houve corrupção. Ter se livrado logo do problema não apaga o fato de que o problema existiu, se comprovado pelas investigações.
E, se de fato existiu, se o malfeito tiver mesmo sido praticado por um agente escolhido a dedo pelo governador em sua “cota pessoal”… então, quem escalou esse agente também tem parcela de responsabilidade no problema, ainda que indiretamente – não por ser “responsável solidário” na conduta antiética, mas por ter escolhido mal, com o chamado “dedo podre”; por ter escolhido a pessoa errada para posição tão sensível e estratégica.
O detentor da chave do cofre tem que ser alguém acima de qualquer suspeita e à prova de toda tentação, pois, na posição que ocupa, inúmeras na certa surgirão.
Não há de ser pequeno o assédio de potenciais corruptores, não hão de ser poucas as propostas de “toma lá, dá cá” com que o tentarão, não hão de faltar os sedutores “pixulecos” que se agitarão diante dele, com a promessa do enriquecimento fácil (mas ilícito): vantagens pecuniárias oferecidas por gente que busca vantagens ilícitas sobre os concorrentes em seu ramo de atuação econômica, o que gera concorrência desleal e, no limite, fere de morte um princípio basilar numa economia liberal de mercado como a nossa: a livre concorrência, com justiça e igualdade de condições para todos.
O guardião do cofre não pode ajudar a roubá-lo
Por fim, as informações trazidas à tona com a deflagração da Decanter colocam-nos diante de um perturbador paradoxo:
O secretário de Estado da Fazenda é, em princípio, por dever funcional e missão institucional, o principal responsável por zelar pela saúde fiscal do Estado, pela plena integridade do nosso sistema tributário e pela inviolabilidade do cofre público capixaba.
Ocupando esse posto-chave, ele deveria ser o primeiro a preocupar-se em salvaguardar a perfeita saúde do nosso sistema fiscal. Mas, valendo-se justamente do seu posto-chave, pelo que apontam as investigações, teria permitido que o sistema fosse não só fraudado como violado por dentro.
O secretário da Fazenda é o “guardião do cofre” e, como tal, deveria assegurar um sistema de arrecadação rigoroso, justo, eficiente e isonômico, com igualdade de condições para todos; mas, nos termos da investigação, o que fez foi precisamente o contrário, favorecendo a ação criminosa e gananciosa de sonegadores fiscais que lesaram com voracidade a ordem tributária do Espírito Santo e deixaram um rombo monumental no cofre público do Estado, do qual ele era o guardião maior e por cuja integridade deveria ter zelado.
Quer dizer, o “guardião do cofre” supostamente deixou que os bandidos o pilhassem, sob sua vista grossa.
Conforme apuração do MPES e da própria Receita Estadual, com o beneplácito do então secretário da Fazenda, o primeiro que deveria se empenhar em garantir justiça fiscal para todos, espertalhões da máfia do vinho brindaram na cara da sociedade capixaba, se congratularam e deixaram de recolher ao erário impostos, enquanto outros cidadãos, desde empresários concorrentes no mesmo ramo ao mais humilde chefe de família que nunca abrirá uma garrafa do vinho mais barato, fazem questão de cumprir dignamente com as suas obrigações fiscais.
Por todo o exposto, do ponto de vista político, a prisão de Rogélio desceu com notas ácidas na garganta de Casagrande. Do ponto de vista ético, desceu amargo na goela do cidadão capixaba.
O pungente desabafo do auditor
Foi muito sintomático o desabafo do auditor da Receita Estadual Michel Francisco da Silva, quando questionado sobre como se sentiu ao descobrir que o próprio secretário da Fazenda, Rogélio Pegoretti, então seu chefe na Sefaz, teria participação no esquema de sonegação fiscal: “É estarrecedor e vergonhoso. Fiquei atônito. Não consegui trabalhar naquele dia”.
O promotor Luis Felipe Scalco, coordenador do Gaesf, confirmou que as suspeitas sobre o que estou chamando de “máfia do vinho” nasceram de uma fiscalização da Receita Estadual: “No decorrer de 2020, houve todo um trabalho interno da Sefaz para conseguir convencer os promotores públicos de que havia uma organização criminosa. A fraude foi constatada inicialmente pela equipe do Michel”.
A procuradora-geral de Justiça, Luciana de Andrade, corroborou a narrativa: “No decorrer do ano de 2020, a própria Secretaria de Estado da Fazenda percebeu que algo errado acontecia na arrecadação desse segmento e acionou o Ministério Público. Desde então, esse trabalho vem sendo realizado por ambas as instituições”.
A coluna apurou que, após o início da investigação, servidores da Receita teriam sofrido pressão do então secretário da Fazenda, que teria feito tentativas de acesso a informações privilegiadas.
Confirmação da prisão
Em tempo: a prisão do ex-secretário como um dos integrantes da quadrilha não foi oficialmente confirmada pelas autoridades do MPES e do governo estadual em coletiva de imprensa nesta terça – mas, implicitamente, o foi em diversos momentos. A prisão do ex-secretário foi confirmada pela Secretaria de Estado da Justiça. O conhecimento do Palácio Anchieta sobre suposta participação de Rogélio no esquema fraudulento foi confirmado, sob sigilo, por fonte da coluna dentro do próprio governo.
Descrição do “toma lá, dá cá”
Sem citar nominalmente Rogélio, o chefe do Gaesf explicou assim como se daria a participação do então secretário na organização criminosa:
“Não era o objeto inicial da apuração, mas, ao longo da apuração, surgiram evidências de que ao menos dois agentes públicos poderiam ter participação na fraude no sentido de conceder vantagens indevidas a esse grupo de empresários para que o esquema se perpetuasse. São dois agentes públicos da Secretaria da Fazenda: um da ativa e um ex-agente público da Sefaz. E cada um, dentro das suas áreas de atuação, um mais na cúpula e outro mais no campo, no trabalho de auditoria, há indicativos de que eles podem ter recebido valores indevidos para cada um, dentro de sua área de atribuição, resguardar os interesses do grupo, proteger os interesses do grupo, evitar fiscalizações mais incisivas, enfim, contrapartidas que eles podiam dar pela função pública que desempenhavam.”
Mais barris vão estourar
O promotor de Justiça prenunciou que vem mais por aí: “Estamos numa primeira fase da operação. Ainda há muito material a analisar nesta primeira fase. O material é tão amplo que nós temos, sim, material para deflagrar uma segunda ou uma terceira fase”.
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