Coluna Vitor Vogas
Opinião: delírio golpista na Prainha já deu o que tinha que dar
Apoiadores fanáticos de Bolsonaro exercitam direitos garantidos somente pela democracia para defender uma pauta que, em essência, representa a morte do mesmo regime que lhes assegura o direito de estar nas ruas a protestar. Destrinchado pela coluna, o paradoxo está aí, para quem quiser ver e entender
É um enorme paradoxo.
Como testemunhou à coluna o presidente do TRE-ES, José Paulo Calmon Nogueira da Gama, boa parte da sua geração (não toda) se bateu contra a ditadura civil-militar brasileira, na luta pela redemocratização do país. Foi uma luta virtuosa e vitoriosa, consubstanciada na Constituição Federal de 1988, a qual consagrou alguns princípios basilares do nosso Estado democrático de direito, desde então vigente. Entre eles, justamente a liberdade de pensamento, de expressão, de opinião e de manifestação política.
Passados 34 anos, uma horda de apoiadores extremistas do ainda presidente da República apropria-se desses direitos salvaguardados pelo regime democrático (e somente pelo regime democrático) e os exercita na defesa de uma pauta que, em essência, corresponde ao assassínio do mesmo regime que protege o seu direito de estar nas ruas a protestar. Eis o paradoxo.
Não se pode desviar o foco do que mais importa nesta discussão. Para entendermos o que realmente está em jogo, precisamos nos concentrar não nos atos em si, mas na pauta de tais manifestações.
Pelo que clamam esses grandes “patriotas”, concentrados às portas dos quartéis das Forças Armadas? Estão ali protestando contra o aumento da passagem no transporte coletivo? Por melhor merenda escolar para os seus filhos? Pela mudança do nome de uma rua que homenageia um criminoso? Contra o aumento salarial que os vereadores da Câmara de Vila Velha, ali do lado, na Prainha, acabam de aprovar para si mesmos? Contra as barras de ouro no MEC e o bloqueio de verbas para pesquisas e universidades federais?
Nada disso.
Clamam tais manifestantes por uma “intervenção militar” – deixemos de eufemismos: um golpe de Estado – ou por qualquer outro acontecimento, de intervenção divina a invasão extraterrestre, que impeça o presidente democraticamente eleito em outubro de tomar posse no próximo domingo (1º).
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Frise-se: eleito pelo voto popular, por sufrágio universal, pela vontade soberana da maior parte dos votantes – e eleições a cada quatro anos, respeito às regras do jogo eleitoral e submissão imediata ao resultado das urnas também estão entre os preceitos elementares do mesmo regime que assegura aos manifestantes o direito de irem às ruas protestar. É outro paradoxo.
Se concretizada a pauta do “patriótico” movimento, seria rasgada ao meio a mesma Constituição Cidadã que lhes tutela o direito à liberdade de expressão, de pensamento e de manifestação política. Eventual consumação do delírio coletivo a que estamos assistindo desde o dia 30 de outubro feriria de morte a democracia que lhes resguarda o direito de estarem ali a pugnar por algo que, na prática, equivale a aniquilar a mesma democracia que lhes resguarda o direito de estarem ali a pugnar por algo que, na prática… (ad infinitum).
É como aquela serpente que devora a si mesma a partir da ponta da cauda. Como um órgão que destrói por dentro um organismo do qual faz parte. Caso clássico de autocombustão.
Trata-se, como dito, de um inaudito delírio coletivo. Mas, somente a título de exercício de imaginação, suponhamos que os clamores golpistas de tais manifestantes ecoassem e encontrassem adesão no interior da caserna, entre a maioria dos oficiais graduados das Forças Armadas. O que ocorreria na prática?
Sério, é preciso refletir: o que ocorreria na prática?
Pode ser que, dos quatro cantos do país, divisões do Exército pusessem em marcha seus tanques de guerra pelas rodovias, em direção à Capital Federal. Chegando a Brasília, apontariam seus canhões para o Congresso, o STF, a rampa do Planalto e o endereço de Lula, enquanto caças da Aeronáutica munidos de bombas fariam sobrevoos ameaçadores sobre esses e outros alvos estratégicos. Enquanto isso, ao longo da costa brasileira, navios de guerra da Marinha apontariam suas armas de longo alcance para sedes de governos estaduais amistosos ao presidente eleito, como o Palácio Anchieta, no Espírito Santo.
Sem escolha, para não acabar como Salvador Allende no Chile em 1973, Lula faria como João Goulart em 1964: fugiria e exilar-se-ia no Uruguai (na propriedade do seu amigo Pepe Mujica).
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Com o mínimo de realismo, poderíamos mesmo retroceder quase 60 anos de marcha civilizatória para voltar a semelhante estágio de republiqueta das bananas?
Por mais que vivamos uma era em que antigas obviedades estejam sendo colocadas em dúvida (terraplanistas, movimento antivacina etc.), quero crer que só haja uma resposta possível para minha pergunta retórica: é óbvio que não.
Mas, ainda como exercício imaginativo, suponhamos que a cadeia de eventos realmente sucedesse assim, como descrito.
E depois o quê?
Bolsonaro seria reconduzido à Presidência, instituiria oficialmente uma autocracia, se faria presidente perpétuo, proclamaria a “ditadura dos patriotas”?
Ou pode ser que, fartos das confusões diárias do ex-tenente paraquedista desordeiro e de má fama no quartel – a quem tiveram de apoiar por seu carisma e para evitar um “mal maior” –, os generais quatro-estrelas, realmente treinados para comandar, tomassem para si as rédeas do governo do país. E o Brasil, assim, como de 1964 a 1985, voltaria a ser governado por juntas militares, sem eleições diretas para presidente.
Quiçá no início ainda acenassem com essa promessa, esquecida e abandonada com o passar do tempo, como fizeram os militares que solaparam o poder central no Brasil em 1964.
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As tão cantadas liberdades? Essas, como em todo regime totalitário, seriam as primeiras a cair, fuziladas no paredão do arbítrio. Afinal, se a História nos ensina algo é que nenhum governo autocrático, seja ele militar ou civil, de direita ou de esquerda, tolera crítica, contestação, discordância, dissidência e oposição.
Com um detalhe adicional: nessas ditaduras instituídas após golpes de Estado, a cassação das liberdades não costuma respeitar nem cara nem recentes “serviços prestados à pátria”. Num efeito bumerangue, não é raro que o estado de exceção se volte contra muitos do que tenham acabado de apoiar a implantação da “nova ordem”. A leitura da biografia de Carlos Lacerda tem muito a ensinar nesse sentido.
Enfim, se consumado o delírio golpista dos “patriotas” aglomerados diante dos portões dos quartéis militares, um desses cenários (todos eles nonsense) é o que nos aguardaria.
Ou isso ou, tornando ao mundo real, quem hoje está inconformado com o resultado de outubro pode, nos próximos quatro anos, reorganizar-se e lutar dentro dos limites democráticos e com as muitas armas oferecidas pela própria democracia para, em 2026, eleger outro candidato ao Planalto e remover (mas pelas urnas!) o presidente eleito neste ano.
Lula ganhou a eleição, a fila democrática anda, e o petista tomará posse no dia 1º. Poderá fazer um governo péssimo, ruim, regular, bom ou ótimo. Verdadeiros patriotas hão de torcer e colaborar para que o presidente eleito faça um governo, no mínimo, bom.
E é isso, assim é a democracia: quem ganha governa e quem perde vai para a oposição (não fica eternamente, sem a mínima evidência real, botando a culpa no juiz pela própria incompetência em ganhar o jogo no tempo normal ou na prorrogação, mesmo sendo o defensor do título e com todas as vantagens criadas a seu favor).
O resto é esperneio e ranger de dentes com hálito autoritário e espírito golpista por parte de quem, a pretexto de proteger a pátria e salvar as nossas “liberdades”, está na verdade a atentar contra elas… clamando pela reinstituição de um regime no qual elas mesmas, as “liberdades”, tão propaladas e profanadas nestes dias de delírio tropical, seriam as primeiras vítimas fatais.
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Adendo: “ativismos” não iam acabar?!?
Outro exercício analítico muito simples, mas sempre muito válido e proveitoso, é o da inversão de papéis. Suponha-se que, em vez de ter perdido a votação popular em outubro por cerca de 2,1 milhões de votos (1,8 ponto percentual), Bolsonaro tivesse derrotado Lula pela mesma diferença.
Imagine-se ainda que, inconformados com o resultado oficial do pleito, fossem apoiadores do ex-presidente, e não do atual, a bloquear rodovias federais pelo país inteiro e a se concentrar na frente de quartéis das Forças Armadas, gritando por uma intervenção militar ou qualquer evento extraordinário, sem guarida na Constituição, que levasse à reversão do resultado “no tapetão” e impedisse Bolsonaro, o candidato eleito com mais votos, de permanecer no cargo.
Ou seja, e se fossem apoiadores do adversário de Bolsonaro a se autoproclamar “patriotas” e a bradar por um golpe de Estado, com uso de força militar, para apear Bolsonaro do poder na marra?
Olha, muita gente tem especulado isso, e sou obrigado a concordar. Se fosse realmente o contrário, para começo de conversa, é muuuuuuuito difícil imaginar que o poder público mostraria em relação a manifestantes fanáticos pró-Lula a mesma benevolência que os apoiadores fanáticos do capitão da reserva têm recebido, desde 30 de outubro, de representantes de prefeituras (a de Vila Velha inclusa) e de forças municipais, estaduais e federais de segurança.
Provavelmente, manifestações com o sinal invertido já teriam sido dispersadas há muito tempo pelas forças de segurança, de maneira pacífica ou não, sob aplausos efusivos e gritos de “vagabundos” e “desocupados” desses mesmos “patriotas” que, voltando à realidade, efetivamente ali se encontram.
Bolsonaro foi eleito em 2018 com a bravata de que faria um governo “sem viés ideológico” e que sua administração botaria “um ponto final em todos os ativismos no Brasil”.
Sua Presidência termina com ativistas a perturbar a ordem pública e a normalidade democrática no país inteiro, com uma pauta profundamente ideológica (mas a favor dele, no caso) e encorajados pelo próprio presidente, seja pelo seu silêncio cúmplice, seja por declarações ambíguas proferidas por ele, seja, simplesmente, pelo ululante fato de ele nem sequer ter acolhido o resultado das urnas e reconhecido publicamente a derrota eleitoral, consolidando-se assim como o pior perdedor da história democrática da Nova República.
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