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O que aprendemos com as tartarugas-marinhas?

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Ilha de Coroa Vermelha, no Sul da Bahia. Foto: Divulgação

Ilha de Coroa Vermelha, no Sul da Bahia. Foto: Divulgação

 

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Quem você levaria para uma ilha deserta? São 7 horas da manhã em um trapiche no manguezal no sul da Bahia. Após uma noite em um ônibus, nosso grupo embarca em dois barcos de pesca tradicionais rumo a Ilha de Coroa Vermelha, um afloramento de corais a 13 km da costa. Estudantes de veterinária e biologia, jornalistas, economista, arquiteta, vendedor, aposentado, um time bastante diverso. Para alguns, a primeira vez no mar. Para nós, a oportunidade de transmitir a mensagem de conservação das tartarugas-marinhas a um grupo especial e de forma transformadora. Nosso objetivo era capturar tartarugas-verdes juvenis para avaliação de saúde e coleta de amostras de sangue.

Ficamos três dias acampados na ilha que não possui água, nem qualquer estrutura humana que proporcione algum conforto. O grupo muito feliz se empenhou em participar de nosso esforço de pesquisa, ajudar na captura das tartarugas e conhecê-las de perto. Essa é a fórmula que encontramos para unir a pesquisa com a educação ambiental. E deu certo! Os participantes passam por uma experiência transformadora no ambiente marinho e nossa pesquisa avança para entender um pouco mais sobre a fibropapilomatose das tartarugas-verdes. Toda a expedição foi custeada pelos participantes do turismo científico. Pessoas que agora têm uma ligação maior e pessoal com mar e que se tornaram mais conscientes de como e por que precisamos conservá-lo.

Tartaruga-marinha na Ilha de Coroa Vermelha, sul da Bahia. Foto: Divulgação

Tartaruga-marinha na Ilha de Coroa Vermelha, sul da Bahia. Foto: Divulgação

 

Em três expedições de turismo científico até a ilha de Coroa Vermelha, pudemos verificar a presença de tartarugas com fibropapilomatose e avaliar sua saúde. Apesar de não haver uma incidência alta em relação à costa, ela está lá. Também está no arquipélago de Abrolhos, um parque nacional marinho que fica a 60 km da costa, onde fizemos o primeiro relato da doença no local em 2015. Mesmo longe da costa, as tartarugas-marinhas são afetadas por essa doença insidiosa. No Brasil, em toda a costa há relatos de tartarugas-verdes com fibropapilomatose, e a incidência é alta próximo das cidades e áreas com forte agricultura no continente. Em ilhas oceânicas como Atol das Rocas e Trindade, não há relatos. Não é diferente no resto do mundo.

A fibropapilomatose é basicamente um tipo de câncer que afeta a pele das tartarugas com tumores que podem chegar ao tamanho de um melão. Em alguns locais é comum a incidência de tumores nos órgãos internos, mas aqui no Brasil é incomum. Algumas tartarugas podem ter poucos tumores pequenos e ainda assim serem muito afetadas, enquanto outras com tumores maiores aparentam boa condição. Tartarugas afetadas sofrem um efeito debilitante à medida que os tumores roubam sua energia, atrapalham a natação, alimentação e visão. As grandes massas tumorais em forma de couve-flor são feias e sujeitas a lesões por predadores ou por contato com pedras e corais, tornando-se portas de entrada para infecções oportunistas.

Tudo indica que a doença seja relacionada a um herpesvírus específico de tartarugas-marinhas (ChHV5), que apesar de conviver com as tartarugas a centenas ou milhares de anos, apenas após os anos 30 do século 20 tem causado a doença. Talvez fatores ambientais que ainda não foram bem definidos como, por exemplo, poluentes e toxinas de algas tenham um papel no desenvolvimento da doença, mas seu caráter transmissível já foi comprovado e se manifesta através dos altos índices de acometimento em locais poluídos, com alta densidade de tartarugas e pouca movimentação de água, como é o caso da Curva da Jurema em Vitória. Durante sua fase no alto mar, os filhotes estão longe das fontes da doença, contaminando-se quanto se aproximam do litoral e se expõe a ambientes onde a doença está presente. A incidência pode variar muito entre locais relativamente próximos, e isso está relacionado com as características de mobilidade das tartarugas-verdes juvenis.

Tartaruga-marinha na Ilha de Coroa Vermelha, Bahia. Foto: Divulgação

Tartaruga-marinha na Ilha de Coroa Vermelha, Bahia. Foto: Divulgação

Inicialmente temia-se o pior: que a doença levaria as tartarugas-verdes a extinção rapidamente. Mas, felizmente, as populações de tartarugas-verdes vêm se recuperando em diversos locais do mundo apesar da ameaça da fibropapilomatose. Boa parte das tartarugas se recuperam da doença e tornam-se adultos sem tumores que poderão se reproduzir e transmitir à sua prole genes de resistência.

Ainda há muito o que se descobrir a respeito da fibropapilomatose. O projeto Chelonia mydas, do Instituto Marcos Daniel, tem levantado dados de incidência em alguns pontos da costa brasileira, confirmando as características epidemiológicas da fibropapilomatose e verificando que essa doença não está sozinha. Outras doenças afetam as tartarugas marinhas. Temos observado um alto índice de tartarugas sem tumores com baixo peso e condição corporal ruim na Ilha de Coroa Vermelha e também na foz do rio Piraqueaçú em Santa Cruz. Isso nos chama atenção para a necessidade de uma visão mais ampla a respeito da saúde das tartarugas-verdes, que leve em conta que as manifestações de doenças em animais de vida livre refletem uma complexa rede de interações ecológicas entre os diversos microsganismos, os hospedeiros e o ambiente. A fibropapilomatose não é uma personagem de um monólogo no qual as tartarugas-verdes são o palco, mas uma parte de uma obra bem mais complexa, que envolve o ser humano e sua interferência no funcionamento do planeta.

Talvez a maior lição que temos apendido com a fibropapilomatose é de que temos que acreditar mais na resiliência das tartarugas. Mesmo um mal como esse não tem sido capaz de limitar as populações de tartarugas-verdes de se reproduzirem e continuarem sua luta pela sobrevivência. Não houve uma ação sequer do ser humano que interferisse na dinâmica da fibropapilomatose no sentido de controlá-la e impedir sua ocorrência. Se as tartarugas estão se recuperando, o mérito é delas. Nosso papel nisso é compreender o fenômeno e aplicar esse conhecimento no desenvolvimento de práticas que minimizem nossa interferência negativa no ecossistema marinho. Essa lição levamos para casa. O nosso dia a dia muito afeta muito a saúde do ecossistema marinho, mas em se tratando de ações para ajudá-lo a se recuperar, somos pouco efetivos. Ainda assim, a força da natureza e a sua capacidade de se reorganizar e seguir seu caminho é tremenda. Basta não atrapalharmos.

Tartaruga-marinha na Ilha de Coroa Vermelha. Foto: Divulgação

Tartaruga-marinha na Ilha de Coroa Vermelha. Foto: Divulgação

Sobre o autor:

Marcelo Renan de Deus Santos – Médico Veterinário, Mestre em Biologia Animal, Doutor em Ecologia de Ecossistemas e Presidente do Instituto Marcos Daniel.

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O Instituto Marcos Daniel é uma associação privada sem fins lucrativos qualificada como OSCIP (Organização da Sociedade Civil de interesse Público. Fundado em 2004, o foco de atuação do IMD é a elaboração e execução de projetos de conservação da biodiversidade e a formação de multiplicadores para a conservação da natureza. Neste propósito, temos contado com o apoio institucional de diversos órgãos públicos, universidades, ONGs e empresas, formando uma rede de elevado capital social e ampla capilaridade na sociedade, promovendo assim a conservação do maior patrimônio do Brasil, a sua biodiversidade.

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