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Coluna João Gualberto

Jorge Amado, Mundinho Falcão e o universo dos coronéis

A obra de Jorge Amado revela, por meio de Mundinho Falcão, o universo dos coronéis na Primeira República, mostrando como progresso, empreendedorismo e tradição se entrelaçam

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Mundinho Falcão, em Gabriela de Jorge Amado, encarna o coronel moderno que une tradição e desenvolvimento, ilustrando o poder político e econômico das elites regionais na Primeira República. Foto: Reprodução/Globo

Mundinho Falcão, em Gabriela de Jorge Amado, encarna o coronel moderno que une tradição e desenvolvimento, ilustrando o poder político e econômico das elites regionais na Primeira República. Foto: Reprodução/Globo

Jorge Amado é, seguramente, um dos maiores escritores brasileiros do século XX. Vinculado ao chamado romance regional, ele produziu uma obra relevante não apenas no nível literário, mas também por suas versões para o cinema e a televisão. Como suas obras de maior importância popular podemos citar Gabriela, Cravo e Canela e Dona Flor e seus Dois Maridos, embora tenha escrito dezenas de livros. Gabriela e Dona Flor tornaram-se filmes e novelas de estrondoso sucesso nacional e circularam o mundo, levando grandes marcas da cultura brasileira.

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Tal importância também se mede por seu sucesso junto ao grande público, pois significa que as pessoas se reconheceram nessa obra. Por essa razão os personagens de Jorge Amado representam, em boa parte, o Brasil que ele conseguiu captar em sua época. Estou construindo esses argumentos para fortalecer a minha tese de que o mundo dos coronéis está fortemente representado em Gabriela, especialmente na figura de Mundinho Falcão.

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O coronelismo é contemporâneo da República. Foi ela que permitiu o protagonismo das elites regionais, até então politicamente sufocadas pela lógica centralizadora do Império. Foi o enriquecimento – em especial dos fazendeiros, mas não apenas – que deu origem às oligarquias estaduais e ao seu enorme peso político na chamada Primeira República. Minhas leitoras e meus leitores sabem que costumo dizer que os coronéis são uma síntese de violência e progresso. É justamente isso que Mundinho Falcão encarna na trama de Jorge Amado.

Jovem das elites dos grandes eixos culturais brasileiros, amigo da cúpula republicana do Rio de Janeiro, ele se muda para Ilhéus no início dos anos 1920, onde vai negociar o grande produto da região, o cacau. Logo entende que precisava mudar a cultura local para produzir o progresso. Sua meta maior: dragar o canal do porto para possibilitar que grandes navios ali atracassem e que assim a riqueza local pudesse ser exportada sem passar pela intermediação dos homens de negócio de Salvador.

Como personagens reais da época, a exemplo de Jerônimo Monteiro, no Espírito Santo ou Delmiro Gouveia, em Pernambuco e Alagoas, Mundinho era fascinado pelo progresso, tanto que criou a Associação Comercial de Ilhéus, ficou sócio na empresa local de transportes, financiou o restaurante de Gabriela e abriu avenidas. Um homem realmente ligado aos ideais de desenvolvimento e progresso. Jornais locais também financiados por ele passaram a dar às disputas políticas um tom programático que antes não tinham.

O resultado político dessas ações foi a mudança do sentimento que movia o campo político local, passando da simples relação de fidelidade e lealdade ao líder a uma rede mais complexa de interesses, que marca justamente a vida democrática. Ao construir claramente um projeto econômico coletivo, ao dividir as benesses do progresso, Mundinho Falcão agiu como o verdadeiro empreendedor, aquele que projeta construir um degrau superior da vida cotidiana.

Ele era, entretanto, um homem do seu tempo. Sobreviveu em um universo de maldades e violências, não as cometendo de forma direta, mas construindo alianças com muitos que as praticavam.

A forma como o grande autor baiano encaminha o fim do romance é obra de arte: o jovem coronel moderno e modernizador casa-se com a filha do último coronel da velha geração, dos desbravadores da mata, e vence uma eleição que deveria ser travada entre o velho e o novo, entre o arcaico e o moderno. Faz uma espécie de aliança informal e assim se introduz como o novo que convive bem com o velho.

Desse modo foram, de fato, tais personagens, esses agentes possíveis do capitalismo brasileiro, que deram ao cacau, ao café e à cana de açúcar uma nova dimensão de exploração econômica, modernizando os meios de sua exploração em muitos campos, mas ao mesmo tempo casando-se com a tradição. Justamente por isso foram expressões acabadas de nossas dificuldades de articular as necessidades de progresso com o relativo apego às tradições desenvolvidas desde o Brasil Colônia.

Sempre que a literatura nos dá uma visão clara do real, por meio de uma linguagem encantadora e com tramas tão próximas de nós, estamos diante de uma obra de arte.

João Gualberto

João Gualberto é professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA). Também foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018. João Gualberto nasceu em Cachoeiro do Itapemirim e mora em Vitória, no Espírito Santo. Como pesquisador e professor, o trabalho diário de João é a análise do “Caso Brasileiro”. Principalmente do ponto de vista da cultura, da antropologia e da política.

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