fbpx

Coluna João Gualberto

Coluna João Gualberto | O bangue-bangue do café

Um olhar crítico sobre a violência histórica e suas raízes na sociedade capixaba através da obra de Ezequiel Ronchi Neto

Publicado

em

Entre os contos de Ezequiel Ronchi, encontramos ecos de um passado de violência que ainda molda nosso presente. Foto: Reprodução da internet

Entre os contos de Ezequiel Ronchi, encontramos ecos de um passado de violência que ainda molda nosso presente. Foto: Reprodução da internet

Tenho registrado, neste espaço, a importância dos escritores capixabas para analisar os nossos valores. Um deles é Ezequiel Ronchi Neto, um autor maiúsculo, dono de um texto forte, de uma escrita de estilo e, além disso, um grande contador de casos. Ele escolheu escrever contos, pequenas histórias de personagens que viviam na região do Espírito Santo conhecida como Contestado, localizada no Norte do estado. Essas histórias foram reunidas em um livro chamado Bangue Bangue do Café.

> Quer receber as principais notícias do ES360 no WhatsApp? Clique aqui e entre na nossa comunidade!

Esses contos são especialmente importantes para a análise da sociologia do cotidiano capixaba, já que narram os pequenos eventos que traçaram o dia a dia de milhares de moradores da região, lá onde o autor viveu. São relatos impregnados do cheiro da realidade daquele lugar, nas importantes descrições do nosso universo caipira, daqueles tantos matutos que enterraram suas vidas em busca de prosperidade.

Receba as notícias da coluna no grupo de Whatsapp do João Gualberto.

As histórias de Bangue Bangue do Café são sobre personagens comuns do Contestado na metade do século XX, boa parte deles gente simples, do povo mesmo, com um foco  especial no município de Barra de São Francisco. Os colonos-meeiros e suas famílias, em grande maioria, eram envolvidos e subjugados por aquele clima de opressão, de violência, de privações materiais e, sobretudo, pelas péssimas condições de moradia.

Mas os contos trazem também os donos do poder – para usar uma expressão consagrada pelo sociólogo Raimundo Faoro – ou seja: os fazendeiros; os grandes comerciantes, que também compravam e vendiam o café; as autoridades policiais e judiciárias e, para não esquecer, os proprietários de terra. Essa camada social não era formada por gente obrigatoriamente rica. Na verdade, o fator de coesão que os mantinha unidos centrava-se não apenas em suas posses, mas também na cultura da violência, na forma como eles lidavam com o mundo oprimido dos mais pobres.

Pelo que se depreende da leitura de Bangue Bangue do Café, os poderosos estavam todos unidos pela mesma teia de relações imaginárias, na qual não havia qualquer noção de cidadania, de respeito aos direitos humanos, de justiça e nem de igualdade. Esses elementos eram ausentes, ou então apenas compreendidos de modo muito particular. Nesse universo, o papel das mulheres era visto como totalmente desprezível e sem valor. Assim demonstra uma das falas do personagem Camilão, um fazendeiro dos mais brutos, que encomendava mortes e fazia parte das elites da violência: “ – É…  mulher só serve para ser usada, ter filhos e ficar viúva, animal besta.”

A região em que tudo acontece está inserida nos limites do Contestado, sobre a qual havia uma disputa de jurisdição entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Disso resultava grande confusão entre justiças e polícias, o que facilitava a fuga de criminosos de ambos os lados de um estado ou município para outro, gerando um verdadeiro trança-trança de bandidos. A região contestada era também zona de poucas cidades e muitas matas, o que facilitava a abundância de esconderijos. O pouco policiamento também ajudava no quadro do banditismo reinante. Ressalte-se o fato de que essa pouca polícia existente estava a serviço dos interesses dos maiores produtores e comerciantes de café. Na verdade, o destacamento policial punha-se a serviço do que poderíamos chamar de elites da violência.

As forças da ordem não promoviam a justiça, nem reprimiam os crimes de forma imparcial. Bem ao contrário disso, tinham lado. Estavam ao lado do arbítrio e dos interesses do poder de uma forma geral e, de modo particular, contra os pequenos proprietários, os meeiros e suas famílias. Estavam em geral contra os miseráveis de qualquer origem, cor ou gênero. Só respeitavam os que tinham dinheiro, muito dinheiro. Tudo se expressava na presença ostensiva de homens armados, de assassinatos por pequenos ou grandes interesses, fossem para restaurar honra que se julgasse perdida ou mesmo por motivos fúteis. Desse modo atribuíam materialidade a um código de honra de inspiração caipira, de matutos. Tudo isso foi violentamente afetado pela erradicação dos cafezais, a partir de 1966, mas isso é uma história que temos que contar à parte.

A obra de Ezequiel Ronchi mostra a forma dramática da vida no universo do café capixaba como um todo, no conjunto da nossa extensão geográfica. E não estamos falando somente sobre o passado, de algo que tenha ficado no tempo. Trata-se da construção histórica do presente, do legado de violência e desrespeito pelas dores de cada um, reduzidos que estavam – a maioria dos colonos e meeiros – a serem um simples joguete da exploração e da violência.

Por isso, considerado o nosso passado, não deveria nos surpreender o número de assassinatos a que até hoje assistimos diariamente, assim como o machismo tóxico e covarde que mata mulheres, adolescentes e meninas. Nosso universo imaginário foi construído assim. A violência é nossa pior herança. É preciso, portanto, compreendê-la através da nossa história para combatê-la no presente.


Valorizamos sua opinião! Queremos tornar nosso portal ainda melhor para você. Por favor, dedique alguns minutos para responder à nossa pesquisa de satisfação. Sua opinião é importante. Clique aqui

João Gualberto

João Gualberto é professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA). Também foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018. João Gualberto nasceu em Cachoeiro do Itapemirim e mora em Vitória, no Espírito Santo. Como pesquisador e professor, o trabalho diário de João é a análise do “Caso Brasileiro”. Principalmente do ponto de vista da cultura, da antropologia e da política.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do ES360.