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Há lei; uma sentença
Por Teuller Pimenta Moraes
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Muitos brasileiros quando viajam a lazer para os Estados Unidos fazem questão de registrar, em fotografias e vídeos, algo corriqueiro na vida dos norte-americanos: o ato de abastecer seus próprios carros. Não é incomum o brasileiro se questionar quanto ao porquê não termos postos sem frentistas aqui no Brasil, mas a simples resposta que já se pode antever é: a lei não permite. Contudo, não é porque os homens produzem leis que a liberdade econômica pode deixar de existir.
Em terras tupiniquins vigora a lei n.º 9.956/2000, cujo curto texto diz expressamente: “fica proibido o funcionamento de bombas de auto-serviço operadas pelo próprio consumidor nos postos de abastecimento de combustíveis, em todo o território nacional.”
Insatisfeito com essa realidade, uma empresa de combustíveis de Jaraguá do Sul (SC), após anos enfrentando a falta de funcionários, buscou o judiciário para conseguir o direito poder operar sem frentistas. Assim, no dia 29/04/2022, o juiz de direito Joseano Maciel Cordeiro, da 1ª Vara Federal de Jaraguá do Sul, proferiu decisão favorável, a qual, em resumo, afirma o seguinte:
Ante o exposto, JULGO PROCEDENTES os pedidos, resolvendo o mérito, nos termos do art. 487, I, do CPC, para declarar o direito de a parte autora oferecer o sistema de autosserviço aos seus clientes em seus postos de combustíveis. Diante de julgamento de procedência, DEFIRO a tutela de urgência requerida, a fim de que a parte autora possa oferecer desde logo o sistema de autosserviço aos seus clientes.
A sentença, que por si só é primorosa, pois confirma o ideal de liberdade ao autorizar um indivíduo a exercer sua atividade comercial, igualmente surpreende por toda sua fundamentação, ou seja, pelos motivos que levaram o juiz a chegar à decisão acima.
Na decisão, o magistrado colocou o Direito como uma ordem espontânea que deve ter como premissa o respeito à inovação, à liberdade econômica e à propriedade, tão qual já defendido pelos liberais.
Um dos autores liberais na Escola Austríaca de Economia que melhor abordou o tema “Direito” foi Friedrich August Von Hayek. Em um pequeno trecho de sua obra “Direito, Legislação e Liberdade”, o autor ressalta a importância dos juristas, destaca sobre os “engenheiros sociais” e tece uma crítica sobre a forma que eles usam o Direito com outras finalidades que não as corretas. Diz o autor: “o principal instrumento de mudança intencional na sociedade moderna é a legislação. (…) A elaboração de leis é necessariamente um processo contínuo no qual cada passo gera consequências até então imprevistas quanto ao que será possível ou necessário fazer posteriormente.”
Em outros termos, Hayek evidencia o estrago feito por quem defende o Estado no ato legislativo de criação de normas e regras de conduta. Atualmente, nas centenas Faculdades de Direito dispersas pelo país, não é incomum transmitirem a ideia de que o Direito advém exclusivamente da existência do Estado. Esse fato ocasiona uma série de consequências, haja vista que a interferência estatal gera resultados imprevisíveis. Por isso, afirma:
Os que imaginam ser possível ordenar todas as atividades particulares de uma Grande Sociedade de acordo com um plano coerente deveriam reconsiderar sua posição ante a constatação de que isso não se mostrou possível sem mesmo no que diz respeito a essa parte do conjunto que é o sistema jurídico. O processo de alteração do direito revela, com especial clareza, o modo como as concepções dominantes ocasionam uma mudança continua produzindo medidas que de início ninguém desejara ou previra, mas que, no devido tempo, parecem inevitáveis.
Isso posto, em retorno à análise da sentença aludida, infere-se que, atento a todo esse raciocínio caminhou a linha argumentativa da decisão, pois assim descreveu o magistrado:
Portanto, a interpretação é uma atividade contextual e histórica. No presente caso, em que se realiza a interpretação de disposições legais e constitucionais com objetivo de se aferir a existência de antinomia e a possível revogação da norma impugnada pelas normas posteriores, interpretadas a partir do contexto atual, é relevante a apreciação das razões subjacentes que levaram à instituição da vedação ao autosserviço nos postos de combustíveis, não como o resgate do paradigma da “vontade do legislador” ou da “vontade da lei”, superados sob a perspectiva do pós-positivismo, mas para que se possa comparar o contexto da época com o atual.
De maneira geral, o juiz teve que rebater os argumentos protecionistas defendidos pelo Estado, em que o consumidor é visto como um ser sempre indefeso e, ainda, que terá sua saúde ferida ao manusear uma bomba de combustíveis. Também, aceitar postos sem frentista poderá provocar desempregos dos trabalhadores do setor.
Contra isso, complementou:
Em síntese, foram invocadas razões de segurança, saúde e preservação do emprego dos frentistas para justificar o projeto proposto no ano de 1998.
As considerações acerca da segurança e da saúde dos envolvidos foram feitas à época de forma genérica, aparentemente sem a indicação de estudos ou pesquisas realizadas com sistemas específicos de autosserviço em postos. Chama a atenção especialmente a preocupação com a saúde dos usuários pela exposição aos agentes nocivos dos combustíveis, considerando que essa exposição para os consumidores seria eventual, enquanto que para os frentistas é contínua, ao longo de suas jornadas diárias.
(…)
No que se refere à justificativa de preservação do emprego dos frentistas é preciso igualmente levar em consideração os fatores históricos e contextuais. A preocupação com a preservação do emprego de uma categoria profissional tão ampla é relevante e possui respaldo constitucional na valorização do trabalho como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CRFB/1988, art. 1º, inciso IV). Todavia, enquanto a taxa de desemprego estimada para o país em 2022 é de 13,7% (Fonte: Austin Rate/FMI), a taxa de desemprego no estado de Santa Catarina, apurada em fevereiro de 2022, foi de 4,3%, sendo a menor do país, de acordo com o governo do Estado.
Ora, vê-se como os ideais libertários são constantemente atacados em legislações sem nexo causal que, por serem intervencionistas, deixam de lado a lógica econômica. O mundo se altera, as preferências do consumidor mudam e o mercado se modifica. Esse conjunto natural de atos geram transformações da forma de trato social.
Logo, se a mudança social que acarreta desemprego for argumento contra a soberania do consumidor e a livre concorrência, melhor será deixar que o governo, antecipadamente, aprove ou desaprove como as pessoas devem gastar seu dinheiro ou, no caso em apreço, escolha onde abastecer.
Isso é impensável em uma sociedade onde o mercado, entendendo esse o local imaterial em que se operam as forças de oferta e demanda, remodela as relações. Não se pode perder de vista que esse mesmo mercado, por meio da transformação tecnológica, já “desempregou” muita gente. Por exemplo, não se vê mais telefonistas, leiteiros e operadores de mimeógrafo, pelo fato de que a inovação proporcionada aos indivíduos para poderem resolver seus próprios problemas dominou esses setores.
Por fim, na sentença em análise, o magistrado informa que o legislador não pode fazer o que quer, porquanto a livre iniciativa é uma liberdade fundamental. Em suas próprias palavras, asseverou:
A interpretação em favor da liberdade de todas as normas de ordenação pública das atividades econômicas privadas, prevista no art. 1º, §2º, da Lei nº 13.874/2019, bem como a compreensão de que o Estado não deve se comportar como agente contrário aos processos de inovação na sociedade, a não ser diante de fundamentos concretos para tanto, possui respaldo na jurisprudência do STF, conforme demonstra os seguinte excertos do voto Ministro Luís Roberto Barroso em julgamento sobre a constitucionalidade de leis restritivas do uso de aplicativos para a contratação de veículos particulares para o transporte de pessoas. (…)
É intuitivo reconhecer que o abastecimento por autosserviço representa a agregação de novas funcionalidades a um serviço que já existe. A efetiva ocorrência de melhoria e efetivo ganho de qualidade ou desempenho será reconhecida ou não pelos consumidores que se dispuserem a utilizar o serviço por essa modalidade
Por todo o exposto, não se deve, jamais, perder de mira que em um Estado de Direito, a regulamentação deve ser vista como uma exceção, quando a regra é a liberdade individual e profissional. Esse é o pensamento defendido por Frédéric Bastiat, para quem a lei apenas organiza o direito individual preexistente.
A constituição brasileira em muito se afasta de ser excelente para aqueles que carregam consigo os valores liberais. Porém, é inegável que, ao mesmo tempo, ela possui ferramentas que podem ser usadas na defesa desses preceitos. O que se faz necessários são operadores do direito trabalhando em prol da liberdade, e de mais juízes como Joseano Maciel Cordeiro, para quem a lei não pode arbitrariamente retirar a inovação de uma determinada atividade econômica e da liberdade de empreender das pessoas.
Sobre o autor
Teuller Pimenta Moraes é advogado especialista e consultor em tributário e processo tributário, membro ativo da Comissão de Direito Tributário da OAB/ES.
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