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Coluna Vitor Vogas

“Guerra espiritual contra o comunismo”: o fanatismo de Michelle Bolsonaro em Vitória

Num curto pronunciamento com requintes de delírio ideológico, primeira-dama deu o exemplo definitivo do extremismo religioso que tomou conta da eleição presidencial e que suplanta os verdadeiros debates necessários ao país

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Michelle Bolsonaro discursa em ato eleitoral em Vitória (21/10/2022). Foto: Assessoria de Carlos Manato

Estamos no meio de uma guerra espiritual em que nossa liberdade religiosa está em risco e a ideologia do bem precisa vencer a do mal, pois o Brasil é a última barreira contra o avanço do comunismo. Só não é capaz de enxergar isso quem está cego espiritualmente.

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Você não leu errado (nem está enxergando mal). É assim, precisamente nesses termos, que a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, encara a política e as eleições presidenciais no país. Isso com base no discurso que ela mesma fez em Vitória, na manhã desta sexta-feira (21), ao lado da ex-ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos Damares Alves (Republicanos), em um evento eleitoral chamado “Mulheres com Bolsonaro”, realizado em uma casa de shows no Aeroporto de Vitória, para uma plateia formada predominantemente por mulheres evangélicas.

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Nessa cosmovisão de Michelle, o “bem”, logicamente, é encarnado por seu marido, o presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, enquanto ao PT (ou “partido das trevas”) do ex-presidente Lula restaria o papel de representação de todo “o mal”.

Segundo a senhora Bolsonaro, é necessário “dissipar esse partido das trevas da nação” (ou seja, derrotar não basta; é preciso aniquilar o adversário, tratado como um inimigo cuja própria existência é negada).

Além de fortalecer ainda mais a candidatura de Bolsonaro no Espírito Santo, o evento estrelado por Michelle serviu para impulsionar a campanha de Carlos Manato (PL) ao governo estadual. O candidato dividiu o palco com Michelle e Damares, assim como sua esposa, a deputada federal não reeleita Soraya Manato (PTB) e o senador eleito Magno Malta (PL). Karla Malta, uma das filhas de Magno, foi a mestre de cerimônias.

Manato recebeu manifestações de apoio de Michelle e de Damares, senadora eleita pelo Distrito Federal com forte apoio da primeira-dama.

Nos últimos dias, as duas têm feito uma maratona de atos eleitorais pelo país, com o mesmo nome e o mesmo enfoque. Na manhã desta sexta, elas chegaram do Rio com a sua comitiva, nem sequer saíram da área do aeroporto e já emendaram outro voo, com destino a Belo Horizonte. Os eventos são voltados para um público predominantemente feminino – para virar votos em um segmento que hoje dá vantagem a Lula nas pesquisas – e evangélico – para consolidar a preferência por Bolsonaro nesse estrato.

Michelle e Damares também têm sido usadas como “armas” da campanha de Bolsonaro para minimizar possíveis danos causados pelo episódio em que o presidente disse que “pintou um clima” entre ele e meninas venezuelanas de 14 anos, em entrevista a um podcast na última sexta-feira (14).

Aliás, após ser mantida por quase quatro anos bem longe do público e da mídia, para não ter que responder a perguntas embaraçosas, Michelle foi sacada como trunfo eleitoral por Bolsonaro desde antes do período oficial de campanha. Passou a ser coprotagonista do marido nas Marchas para Jesus país afora, inclusive em Vitória, no dia 23 de julho. Sempre manteve esse discurso apocalíptico e maniqueísta, espalhando o medo e a intolerância política a partir da manipulação da fé alheia – o que alguns estudiosos têm chamado de “terrorismo religioso”.

Nesta sexta, a primeira-dama pregou para convertidos e, principalmente, convertidas. Entrou no palco com uma menina pequena no colo e acompanhada por outras meninas. Após Damares fazer um breve pronunciamento contra a pedofilia, Michelle começou seu discurso alardeando, sem nenhuma base fática, as ameaças do “comunismo” (eventual vitória adversária) contra o exercício da liberdade religiosa no país:

“Este governo tem lutado pela família, pela pátria, pela nossa liberdade de expressão e a nossa liberdade religiosa que está sendo, sim, comprometida pelo comunismo. Nós estamos vendo tudo o que está acontecendo, e está muito fácil escolher um lado. Só não vê quem não quer ver. Só não enxerga quem está cego espiritualmente.”

Buscando dar ao público uma “injeção de ânimo e de fé”, Michelle admitiu: “Nós precisamos dessa virada”. Para convencer a plateia presente a multiplicar os votos em Bolsonaro, ela aprofundou o delírio ideológico e pseudorreligioso, classificando a disputa eleitoral como uma “guerra espiritual” com o objetivo de barrar o “comunismo”:

“O nosso propósito como cristãos é o de reunirmos, de orarmos, de interceder, de conversar, de auxiliar, de orientar aqueles que ainda não estão entendendo a guerra espiritual que nós estamos passando no Brasil. […] E, se Deus não tiver misericórdia da nossa nação, se o povo não acordar, nós não teremos para onde ir, porque o Brasil é a última barreira para o comunismo”, disse ela, fatalistamente.

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Propondo uma divisão política praticamente infantil, Michelle apresentou a eleição entre Bolsonaro e Lula como uma disputa entre “cristãos” e “comunistas”, na qual o lado do atual presidente corresponde ao lado de Deus. “Vamos vencer não por nós, mas por Deus, porque é ele que defende todas as nossas pautas.”

Sobre como convencer eventuais indecisos, a primeira-dama deu a dica: “É só mostrar o que o comunismo quer fazer com uma nação. Ele só vem para roubar, matar e destruir. E nós não aceitaremos, porque a maioria da nossa nação é cristã”. Segundo ela, foi Deus quem colocou a família Bolsonaro na Presidência.

E Temer?!?

“Minha sensação é que este país foi descoberto em 1º de janeiro de 2019”, também afirmou, lembrando o clássico “nunca antes na história deste país”, nada modesto, de Lula quando era o presidente.

Em alguns momentos, Michelle chegou a dar a impressão de que o PT governou o Brasil até Bolsonaro tomar posse (em regra, seguindo o exemplo do marido, o governo Temer é completamente ignorado nas suas falas, como se nem sequer tivesse existido). Ela chegou a dizer à plateia que o PT governou o país por 16 anos. Na verdade, foram 13 anos e meio, porque Dilma sofreu o impeachment em 2016, e Bolsonaro só assumiu em 2019.

“Não olhem o candidato”

Chamando Bolsonaro de “imperfeito”, Michelle também executou outra estratégia da campanha: conclamou as senhoras e os senhores presentes a atenuar os erros do marido – um padre católico diria: perdoar os seus pecados, antes do reencontro com as urnas.

“Peço que vocês não olhem pelo candidato, mas pelas pautas que ele defende: pela ideologia do bem contra o mal, para que a gente possa dissipar esse partido das trevas de uma vez só da nossa nação”, disse ela, sob aplausos.

Para constar: Lula jamais foi um político comunista, muito menos um presidente comunista, e o PT não é um partido comunista. A não ser para quem entende “comunista” como sinônimo de “qualquer adversário político” ou de qualquer pessoa que não seja de direita, ou simplesmente não alinhada ao bolsonarismo.

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Fanatismo ou teatro político

Além de descolada da realidade, a visão expressada por Michelle é simplista ao extremo. E é nessa extrema simplificação que estamos atolados no presente processo eleitoral.

Algumas coisas ditas pela primeira-dama nos levam a indagar se ela realmente acredita em tudo o que diz. Se acredita, é uma fanática. Se não, tudo não passa de um grande teatro político.

Entre as muitas apelações do discurso da primeira-dama, tome-se o que ela diz, como uma profetisa do Apocalipse, sobre não ter para onde ir em caso de derrota nas urnas. “Não teremos para onde ir”?!? É só escolher um dos imóveis da família.

Reflita-se, ainda, sobre a assertiva de que é preciso “dissipar esse partido das trevas da nação”. Isso é destilação de ódio em estado bruto, genuíno. É negar ao outro, ao oponente político, a quem pensa diferente, o direito mesmo de existir. Não é assim que se faz política… a não ser em regimes antidemocráticos.

Michellização das eleições

Com essa damarização e essa michellização das eleições, o debate político no Brasil foi empobrecido, isto sim, como nunca antes na história deste país. Não está pedestre. Vai de rasteiro a rastejante. Foi reduzido a uma pelada de várzea dos “cristãos” contra os “comunistas”, quando a discussão deveria estar se dando entre projetos de país, programas de governo (alguém aí conhece algum?) e propostas factíveis para se resolver os problemas reais desta “nação do Senhor”, que estão aí, para quem quiser ver (só não os enxerga, parafraseando Michelle, quem está cego politicamente):

Fome, miséria, desigualdade social, inflação, recuperação econômica, geração de empregos e renda, carga tributária, crédito para empreendedores, qualidade do ensino, gestão do SUS, segurança pública, infraestrutura, preservação do meio ambiente, os cortes em educação, saúde, pesquisa científica, a reabilitação da imagem do Brasil no exterior. Ah, claro, e uma crise fiscal contratada para o ano que vem. Isso, sim, deveria estar na ordem do dia.

Em vez disso, estamos sendo pautados por esse discurso com boas doses de fanatismo, mas que atinge em cheio multidões de seguidores de igrejas cristãs, mormente as de denominações neopentecostais, neste vale-tudo que virou a batalha pelo voto religioso. E funciona, não é? Damares está aí eleita. É paupérrimo, de um nível indigente, mas eleitoralmente eficaz.

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Louvor ou canto de guerra?

Um exemplo de como as coisas nesta eleição e neste país estão deturpadas. O evento de Michelle e Damares foi aberto com a apresentação de uma banda gospel (o que, aliás, não configura um showmício?). A música deveria ser um louvor, ou seja, algo para apaziguar o coração, mas a cantora intercalou os versos com um discurso de guerra “sacro-ideológica”, cheio de termos belicistas:

“Nós entendemos que estamos numa guerra! E acreditamos que esta guerra é do Senhor! O inferno está desesperado, mas nós não vamos retroceder, porque maior é aquele que está conosco! […] Então quem vai guerrear é o Senhor! O Senhor dos exércitos está conosco!”

E a outra vocalista emendou com um chamado para a guerra: “Vamos guerrear?”

Coitado do Senhor, precisando guerrear tanto por políticos…

Violência política e religiosa

Esta é uma campanha eleitoral que tem sido marcada, de maneira sem precedentes, por violência política motivada por crenças religiosas e violência religiosa motivada por crenças políticas (muitas vezes incitada por quem deveria promover a paz), exploração e manipulação da fé alheia com fins eleitoreiros, assédio político de líderes religiosos sobre seus rebanhos e até profanação política de templos.

Como afirma o cientista político Vinicius do Valle, doutor pela USP e diretor do Observatório Evangélico, o bolsonarismo se cercou de uma legião de religiosos e, por eles, disseminou a ideia de que o PT, “amigo de ditaduras sanguinárias”, obrigaria as crianças a usar banheiros unissex, liberaria o aborto e ameaçaria a integridade das famílias, além de fechar igrejas, perseguir religiões e acabar com a liberdade religiosa.

Michelle Bolsonaro é porta-voz desse discurso. Paradoxalmente, ela mesma já postou mensagens que expressam intolerância religiosa, porém com um alvo diferente: contra religiões de matriz africana, tão demonizadas por setores do bolsonarismo quanto adversários políticos.

Nem abriram a caixa toda…

Em Vitória, nesta sexta, Michelle e Damares nem usaram todo o “kit terror”, talvez pelo cansaço da maratona de viagens e eventos, externado e confessado principalmente por Michelle. Não se falou (aleluia!) de aborto nem de “liberação das drogas”, tampouco de “ideologia de gênero”. As duas focaram nas pautas acima: pedofilia, “guerra santa”, “comunismo” e “risco à liberdade religiosa”.

Para última reflexão

Quem pode verdadeiramente se arvorar em encarnação do “bem”? Quem tem de fato envergadura moral e ficha perfeitamente impoluta para poder identificar no outro, e só no outro, todo o “mal”?


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Vitor Vogas

Nascido no Rio de Janeiro e criado no Espírito Santo, Vitor Vogas tem 38 anos. Formado em Comunicação Social pela Ufes (2007), dedicou toda a sua carreira ao jornalismo político e já cobriu várias eleições. Trabalhou na Rede Gazeta de 2008 a 2011 e de 2014 a 2021, como repórter e colunista da editoria de Política do jornal A Gazeta, além de participações como comentarista na rádio CBN Vitória. Desde março de 2022, atua nos veículos da Rede Capixaba: a TV Capixaba, a Rádio BandNews FM e o Portal ES360. E-mail do colunista: [email protected]

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