Coluna João Gualberto
Coluna João Gualberto | Capitalismo violência e progresso
A construção do capitalismo no Brasil reflete uma articulação desigual entre o arcaico e o moderno, com os coronéis industriais como principais agentes dessa transformação

Capitalismo, violência e progresso. Foto: Reprodução da internet
As diferentes sociedades no mundo tiveram, cada uma delas, os seus agentes de promoção ao capitalismo, sobretudo no século XIX. Foram eles que ajudaram, de forma especial, a fazer a passagem dos antigos sistemas econômicos tradicionais para as formas automatizadas de produção. Sendo um pouco simplista, posso afirmar que também impulsionaram a sociedade aos padrões modernos de consumo.
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No caso da maioria dos países europeus esses agentes foram os industriais, além dos trabalhadores em suas fábricas. Os primeiros livros que tratam dessa transformação econômica e social, como A Riqueza das Nações, de Adam Smith, escrito no século XVIII, ou mesmo o do pai administração moderna, Frederick Taylor, com o seu Princípios de Administração Científica, já no início do século XX, descrevem sob diferentes ângulos o mesmo processo de criação de novos valores sociais.
Na gênese, Adam Smith faz as primeiras reflexões de que se tem notícia sobre a especialização no mundo do trabalho, citando o caso do aumento de produção que ela provocou em fábricas europeias do seu tempo. Creio que poderíamos chamar esse fenômeno de ganhos de produtividade, com o fracionamento do trabalho. Os trabalhadores especializados nas fábricas produziam muito mais do que os antigos artesãos das corporações de ofício medievais, essa era a tese.
Quanto a Taylor, engenheiro nascido nos EUA, suas reflexões já foram produzidas em um sistema não só especializado, mas também automatizado pelas máquinas movidas a vapor ou, sobretudo, pela energia elétrica. Em ambos os casos, com perspectivas analíticas muito diversas, o que temos é o enaltecimento de um mundo novo, que foi surgindo com muita velocidade, sendo hoje hegemônico.
Olhando esse movimento de um outro ângulo, Karl Marx, em O Capital, ou no Manifesto do Partido Comunista, escrito junto com Engels, concebeu uma teoria sobre o papel dos conflitos entre a classe operária e os detentores do capital. Mostrou as perdas que os operários tiveram até então, concebendo os conflitos entre essas duas classes como o motor da história. Ou seja, Marx deduziu que devemos a esses conflitos os movimentos dos avanços sociais possíveis, portanto os operários deveriam insistir neles e se organizarem para as lutas que certamente viriam.
No caso brasileiro, o que se passou foi bem diferente. Aqui não observamos os mesmos movimentos da sociedade construindo novos modos de produção. De forma diferente, foram os proprietários do capital agrícola e comercial que importaram novos equipamentos produtivos, iniciando outra etapa de produção, agora industrial. Foram os antigos usineiros, ou outros capitalistas nacionais, que importaram máquinas e tecnologias para a produção de açúcar, já no século XX, e esse é apenas um exemplo.
Esses antigos usineiros, comerciantes de açúcar, eram os nossos velhos coronéis. Os homens poderosos do início do século XX no Brasil republicano eram coronéis na sua quase totalidade. Era o nome que as pessoas pobres e dependentes desses senhores davam a todos os que tinham alguma fortuna. Assim, os homens poderosos e relativamente ricos daquela época eram chamados de doutores, se o fossem, ou de coronéis. Eles foram os agentes de construção do nosso capitalismo moderno, ainda que tivessem muitas marcas dos potentados rurais descritos por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder.
Portavam o que os republicanos positivistas chamavam de progresso: as novas máquinas, os novos estilos de vida que a industrialização permitia, a vida urbana com luz elétrica, as ferrovias, o cinema e outras modernidades da época. O grande industrial de origem cearense Delmiro Gouveia construiu em 1911 em Alagoas uma fábrica de linhas com uma vila operária que possuía requintes urbanos, destacando-se na região. Farmácias, serviço médico, luz elétrica. Em tudo lembrava uma vila inglesa, menos em um detalhe: quem infringisse as normas, como trabalhar descalço ou não fazer uso regular dos serviços de saúde, era tratado no chicote.
Em tudo Delmiro Gouveia expressou o coronel industrial que estou descrevendo, portador do progresso das novas técnicas produtivas consolidadas no século XX, mas ao mesmo tempo trazendo a marca indelével das elites brasileiras acostumadas a tratar o povo com brutalidade. Violência e progresso nas mesmas mãos, esse é a marca da construção do nosso capitalismo. O coronel foi o seu grande agente, talvez por isso o nosso imaginário da modernização una de forma tão cabal os velhos métodos de trabalho vindos da escravidão com as novas tecnologias industriais. Essa articulação desigual entre o arcaico e o moderno é marca da civilização brasileira, como muito bem vem registrando Roberto DaMatta ao longo de sua obra, que explica os dilemas da sociedade brasileira.
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