Coluna Vitor Vogas
Por que o Espírito Santo é o segundo estado que mais prende no país?
Alerta: em termos proporcionais, o ES é o segundo estado brasileiro com a maior população carcerária. O sistema está superlotado. Mas por que se prende tanto no ES? Aliás, prendemos demais ou são os outros que prendem de menos? Seria possível prender menos? Seria possível prender melhor?

ES tem a segunda maior taxa de aprisionamento do Brasil. Foto: Thathiana Gurgel/DPRJ
Em termos proporcionais, o Espírito Santo é o segundo estado brasileiro com a maior população carcerária. No ranking da taxa de aprisionamento, o Estado só fica atrás do Acre. Essa é a conclusão de um relatório oficial elaborado pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), vinculada ao Ministério da Justiça, com base no número de detentos registrados no sistema prisional de cada estado no fim do 1º semestre de 2024.
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A taxa de aprisionamento é o resultado do número de presos dividido pelo número de habitantes do estado (IBGE/2022), multiplicado por 100 mil. Assim, é possível dimensionar a população carcerária de cada estado, proporcionalmente ao tamanho da respectiva população total. Na comparação com as outras unidades federadas, o Espírito Santo se destaca como o segundo estado que mais prende. Se o destaque é positivo ou negativo, aí depende do ponto de vista.
O dado é muito relevante por si mesmo. Requer atenção e análise detida. Não há dúvida de que o Espírito Santo é um caso à parte nesta discussão. Estamos muito acima da média nacional. Quase o dobro, para ser exato. No 1º semestre de 2024, a taxa de encarceramento deste estado foi de 616 presos por grupo de 100 mil habitantes. A do país ficou em 326 presos para cada 100 mil habitantes.
Com 3,8 milhões de habitantes, o Espírito Santo é só o 15º estado mais populoso do Brasil. Mas, em números absolutos, tem a oitava maior massa carcerária.
Para se ter uma ideia, o sistema prisional capixaba tem mais detentos do que todo o estado da Bahia, cuja população total é quase quatro vezes maior que a nossa.
No dia 30 de junho de 2024, o Espírito Santo tinha 23.633 presos registrados no sistema estadual. Já a Bahia, com 14,1 milhões de habitantes, tinha 13.268 detentos no mesmo momento.
Disparadamente o estado mais populoso do país, São Paulo tem um total de 44,4 milhões de habitantes. Confirmando a lógica, em números absolutos, é o estado com a maior população carcerária: 200.178 detentos, no fim do primeiro semestre de 2024. Mas a taxa de aprisionamento de São Paulo é bem menor que a do Espírito Santo: 450 presos por 100 mil habitantes.
O estado de São Paulo tem mais de dez vezes a população do Espírito Santo. Só a título de exercício, mantendo-se as mesmas proporções, se tivéssemos a mesma população de São Paulo, a população carcerária do Espírito Santo chegaria ao incrível número de 273,6 mil presos. Seria, com folga, a maior do país.
Adicionalmente, há o problema da superlotação – realidade comum a quase todas as unidades federadas (exceto Maranhão, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Tocantins).
Em 30 de junho de 2024, havia 23.633 presos no Espírito Santo para 15.388 vagas no sistema estadual. O excedente era de 53%. Na média, há três detentos para cada duas vagas existentes.
A radiografia está dada. Resta fazer o diagnóstico.
As questões que se impõem são: por que se prende tanto no Espírito Santo? A Justiça no Espírito Santo prende bem ou está “prendendo demais”? Seria possível prender menos gente? Seria possível prender melhor? O Espírito Santo realmente “prende demais” ou são os outros estados que “prendem de menos”?
Foram as questões que levantamos e levamos a três autoridades diretamente envolvidas no assunto. André Garcia é chefe da Senappen desde 2023. Antes disso, foi secretário estadual de Segurança Pública e secretário estadual de Justiça no Espírito Santo. Conhece bem os meandros do sistema policial, prisional e judicial capixaba.
Rafael Pacheco é o secretário estadual de Justiça desde 2023. Sucedeu Garcia no cargo.
Representando a Justiça Estadual, o juiz José Augusto Farias de Souza é o coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e coordenador das Varas Criminais e de Execuções Penais.
Abaixo, apresentamos as respostas de cada um para as mesmas perguntas, neste debate tão necessário quanto urgente.
ANDRÉ GARCIA (secretário nacional de Políticas Penais)
Por que, no Espírito Santo, prende-se tanto?
Isso é um processo que, ao longo dos anos, vem se consolidando, até por força de um número grande de operações que as polícias realizam no Espírito Santo, especialmente com o advento do Programa Estado Presente, de 2011 para cá. Quando minha equipe elaborou esse programa [no primeiro governo Casagrande], nossa equipe tinha muito claramente que, se houvesse prisões qualificadas com foco em homicidas contumazes, nós reduziríamos as taxas de homicídios, como de fato se reduziu no Espírito Santo. É claro que isso foi aliado a outras estratégias, especialmente do Poder Judiciário. A polícia no Espírito Santo é muito eficiente. Isso eu posso atestar pelo tempo que passei na Sesp e na Sejus. Há muitas críticas pela ausência da polícia em algumas regiões. Mas, se comparada a algumas polícias no Brasil, a do Espírito Santo está muito à frente. Isso tem um impacto muito grande nessa taxa. Também temos de considerar, é claro, o rigor que se aplica na permanência dos presos, mesmo após as audiências de custódia.
No Espírito Santo, prendemos demais? Ou seja, prendemos mais do que seria necessário? Seria possível prender menos?
No Espírito Santo, a população carcerária total vem se mantendo estável nos últimos anos, o que já demonstra que há um equilíbrio nas entradas e saídas do sistema prisional. O desafio é reduzir esse deficit, como o Estado vem fazendo, com o planejamento de novas unidades prisionais. Houve um aumento do percentual de homicidas presos no Estado, o que não era muito comum, mas nos últimos anos vem acontecendo. Embora o perfil da população prisional seja majoritariamente de pessoas ligadas ao tráfico de drogas, tem aumentado a taxa de prisão de homicidas.
Muito embora possa haver algumas prisões consideradas excessivas, grande parte delas são prisões de indivíduos que precisam estar presos mesmo. No Brasil, de modo geral, ainda podemos evoluir nessa questão das prisões, principalmente nas medidas alternativas ao encarceramento.
Pode-se estimular a adoção, nas audiências de custódia, de medidas alternativas ao encarceramento no caso de crimes de menor potencial ofensivo, que não envolvam uso de violência ou grave ameaça. Por exemplo, um pequeno traficante. Mas às vezes, na prática, é difícil diferenciar. Por isso, muitas vezes, ocorrem as prisões que são consideradas excessivas. Até o ano retrasado, na média nacional, 60% dos custodiados eram mantidos presos nas audiências de custódia, enquanto 40% saíam.
No Espírito Santo, poderíamos prender melhor? As prisões poderiam ser mais qualificadas, prendendo-se e mantendo-se preso quem realmente precisa estar preso e liberando-se quem não precisa estar?
O juiz decide com o que ele tem na mão. É claro que o ideal seria que, quanto menos pessoas presas, melhor. Mas eventualmente, por força da legislação, isso não é possível. A polícia tem de prender porque não pode deixar de fazer o que tem de fazer, ou estaria prevaricando. E o Judiciário, ao mesmo tempo, tem as amarras legais. Ele pode, em alguns casos, aplicar as medidas alternativas à privação da liberdade, mas em outros casos a lei não permite isso. É uma equação difícil de fechar, mas que passa pelo legislador.
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RAFAEL PACHECO (secretário estadual de Justiça)
Por que, no Espírito Santo, prende-se tanto?
Acho que temos estruturas institucionais muito fortes que cumprem muito bem seu papel. Esse é um primeiro ponto, associado a uma cultura conservadora, uma cultura de dureza, e aí estou expandindo para o Poder Judiciário. Temos forças policiais que trabalham bem, que cumprem bem o seu papel. Isso é o resultado de uma política de segurança pública bem conduzida. Os indicadores mostram isso. E existe uma “dureza” por parte dos promotores de Justiça e juízes, que não deve ser entendida como “dureza descabida”. Como você disse, isso pode ser muito bom ou muito ruim, dependendo do ângulo que você olha.
O que precisamos fazer é um bom diagnóstico para saber se essa taxa de encarceramento está sendo boa ou ruim para o Espírito Santo. Nós estamos usando bem todos os instrumentos existentes de aplicação da lei penal? Se respondermos bem a essa pergunta, vamos conseguir responder se aquele que está preso realmente deve estar preso. Tem alguns que você não discute. Quem vai discutir se um homicida precisa estar preso? Agora, precisamos tentar entender os outros crimes que estão sendo cometidos.
Não é com o discurso raso, de “babá de preso”, de “direitos humanos pros manos”… Isso é conversa rasa! Tampouco com conversa de ódio total, de que “preso tem que morrer”, de que “tem que jogar a chave fora”. O que precisamos fazer é jogar o pensamento lógico e científico no sistema penal para entendermos se estamos utilizando todas as ferramentas do sistema de forma correta, ou seja, maximizar a eficiência do sistema penal e prisional. É isso.
No Espírito Santo, prendemos demais? Ou seja, prendemos mais do que seria necessário? Na sua opinião, seria possível prender menos?
Seria possível adotar outras estratégias para aqueles que estão presos. Por exemplo, ontem vi três pessoas consumindo craque. Essas pessoas fatalmente vão furtar para alimentar o vício e, eventualmente, vão se tornar pequenos traficantes. Vão se marginalizar, sem dúvida alguma. Será que, para essas pessoas que rompem totalmente com as estruturas sociais, a cadeia é o melhor remédio? Esse é um exemplo concreto. Eu não acho que prendemos muito. Acho que precisamos entender se prendemos bem.
No Espírito Santo, poderíamos prender melhor? As prisões poderiam ser mais qualificadas, prendendo-se e mantendo-se preso quem realmente precisa estar preso e liberando-se quem não precisa estar?
É possível, se utilizarmos todas as ferramentas legais disponíveis. Elas estão aí, e nós temos convergência institucional entre os Poderes no Espírito Santo para fazermos isso. É o que estamos buscando. Não podemos cair nesse discurso raso de “direitos demais para os presos”, mas discutir o bom uso desses instrumentos. Por exemplo, temos pessoas em situação de rua na Grande Vitória vindas de outras localidades. Se fizéssemos o processamento legal desse indivíduo, mas o reencaminhássemos para a cidade de origem e a família dele, ele não voltaria para o sistema prisional. Precisamos usar melhor as opções que a lei nos dá para qualificar as prisões e continuar prendendo, mas prendendo melhor.
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JUIZ JOSÉ AUGUSTO FARIAS DE SOUZA (coordenador das Varas Criminais e de Execuções Penais da Justiça Estadual)
Por que, no Espírito Santo, prende-se tanto?
O nosso Estado não prende tanto, não. A média nos últimos anos é quase meio a meio. Aqui temos concedido liberdade provisória em demasia.
No Espírito Santo, prendemos demais? Ou seja, prendemos mais do que seria necessário? Na sua opinião, seria possível prender menos?
Entendo que não predemos demais. Os magistrados do Estado só aplicam a legislação federal. Por exemplo, a nossa média dos últimos quatro anos foram de 45.908 apresentações em audiências de custódia, com decretação de 24.508 prisões preventivas, 20.907 concessões de liberdade provisória e 594 relaxamentos de prisões. Portanto, concedemos 21.501 liberdades provisórias e relaxamentos de prisões (46,83%).
No Espírito Santo, poderíamos prender melhor? As prisões poderiam ser mais qualificadas, prendendo-se e mantendo-se preso quem realmente precisa estar preso e liberando-se quem não precisa estar?
Acredito que poderíamos, sim, trabalhar melhor as prisões, mas na concessão de alguns benefícios, já na fase de execução de pena, como por exemplo o regime semiaberto harmonizado, dar maior velocidade em benefícios dos apenados (progressão de penas, remições de pena etc.). Hoje não vejo que o magistrado prende mal. Só para se ter uma ideia, na minha Vara, tenho cerca de 1.734 processos criminais, e só tenho cerca de 46 presos provisórios. É muito pouco para uma Vara da Capital.
Existem, sim, alguns desafios estruturais que serão solucionados com a atenção dada pela nova gestão do Tribunal de Justiça do Estado, pelo desembargador presidente Samuel Meira Brasil e por nosso supervisor das Varas Criminais e de Execuções Penais, com o incremento no Processo Judicial Eletrônico (PJE) de várias ações visando à melhoria dos serviços forenses.
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