Coluna André Andrès
Sabor e beleza: a arte estampada nos rótulos dos vinhos
Os rótulos dos vinhos contam histórias, guardam tradições e, muitas vezes, são produzidos por grandes artistas, antecipando o prazer contido na garrafa
Foi uma união perfeita de vinho, arte e história. Depois de muita luta, os produtores do Château Mouton Rothschild conseguiram reverter a histórica classificação dos vinhos de Bordeaux, estabelecida em 1855. Quase 120 anos depois, a garrafa da safra de 1973 do Mouton Rothschild comemorava o fato de o vinho passar a ser considerado um Premier Grand Cru Classé estampando um rótulo produzido por Pablo Picasso. E isso ocorreu justamente no ano do falecimento do grande pintor espanhol. Ou seja, o rótulo de um dos mais icônicos vinhos do mundo foi uma das últimas obras de Picasso. Coincidência? Nem tanto. Desde os anos 1940, a casa Rothschild já chamava grandes artistas para assinar seus rótulos. Chagall e Miró, por exemplo, já haviam sido contratados para esse trabalho.
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O caso da Mouton-Rothschild não é único. A Esporão, uma das mais tradicionais vinícolas portuguesas, também contrata grandes artistas para fazer toda a sua linha. Na maioria das vezes, são portugueses, mas o brasileiro Rubens Gerchman já trabalhou para a casa alentejana. Não são poucos os vinhos conhecidos pela beleza de seus rótulos e a tecnologia tem ajudado nessa tarefa, criando personagens capazes de literalmente saltar das garrafas para a mesa. Confira abaixo alguns rótulos conhecidos por sua arte e pela sua história.
Messala: a história de um vinho brotado da guerra
As frases do barão. O rótulo assinado por Picasso é cheio de histórias. Como dito acima, o vinho não estava na elite dos tintos de Bordeaux. Estava num segundo patamar. O barão Phillipe de Rothschild nunca se conformou com isso e durante anos estampou nos seus rótulos a seguinte frase: “Premier ne puis, second ne daigne Mouton suis” (Primeiro não posso ser, segundo não me chamarei, Mouton eu sou). Elevado à categoria de Premier Grand Cru Classé, o vinho recebeu a obra de Picasso e, junto a ela, o novo recado do barão: “Premier je suis, second je fus, Mouton ne change” (Primeiro eu sou, segundo eu fui, Mouton não muda). Como se vê, o barão não era exatamente humilde…
O rótulo proibido. Uma coincidência levou a Esporão a retirar do mercado toda a sua safra do Reserva 1999. O vinho trazia em seu rótulo um homem com trajes árabes bebendo uma bela taça de tinto. Tratava-se de uma homenagem do português Pedro Proença à presença dos mouros em solos ibéricos. A figura tem um toque até ingênuo. E seria mais um dos muitos trabalhos artísticos da Esporão se não fosse por um acontecimento histórico e uma coincidência infeliz: o vinho chegou ao mercado em 2001, mesmo ano do ataque às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos. A relação entre o árabe e Bin Laden foi imediata. E a vinícola achou melhor recolher as garrafas e trocar os rótulos.
Cultura e elegância em rótulos chilenos. Os vinhos chilenos estão, o tempo todo, lembrando as culturas originais do país. Os nomes sempre fazem referência à língua mapuche, por exemplo. E por vezes essa referência transborda para obras de arte estampadas nas garrafas. A Quebrada de Macul talvez resuma muito bem isso, com seus rótulos de Domus Áurea, Tez e Peñalolen, reproduzindo esculturas de Benjamin Líra. Não para por aí. Figura fundamental na história da vinícola da família, Laura Hartwig foi retratada pelo pintor Claudio Bravo. Tradição e elegância unidas pelas garrafas.
Chile resgata sua uva mais tradicional. Amantes do vinho agradecem
Quatro mulheres e uma uva. Relançado há cinco anos, o clássico argentino Catena Malbec trouxe como enorme novidade o seu rótulo. Ele toma toda a circunferência da garrafa e conta a história da uva Malbec, casta de grande sucesso na Argentina, por meio da representação de quatro mulheres. A primeira delas é Eleanor de Aquitânia. Ela viveu no século XII na região de Bordeaux, terra da Malbec, e foi rainha da França e Inglaterra. A segunda é a imigrante italiana Ana Moscena. Ana imigrou para a Argentina e se casou com Nicola Catena, também imigrante italiano e avô do atual proprietário da vinícola. Eles teriam plantado a primeira vinha de Malbec em Mendoza. A terceira figura faz referência à morte e lembra a filoxera, praga responsável por dizimar os vinhedos europeus no século XIX. E a quarta mulher é Adrianna Catena, filha mais nova de Nicolás Catena, simbolizando a Bodega Catena Zapata e o renascimento da Malbec no Novo Mundo.
O rótulo ganha vida. Vida? Talvez não seja uma boa definição, afinal o rótulo do vinho norte-americano Walking Dead mostra um zumbi saltando para cima de uma pessoa. Saltando literalmente: por meio da tecnologia de realidade aumentada, o zumbi ataca e luta com um homem armado. Essa tecnologia já foi usada em outros rótulos e outros países, mas sempre com um toque um tanto mórbido. Uma linha de vinhos australianos mostra a história de 19 criminosos. Basta usar o celular para cada um deles contar a história de seus crimes. Visualmente bonito. Mas um tanto estranho, não?
A (r)evolução do vinho: do clássico à transformação sensorial
Como se vê, há exemplos de arte, história e modernidade em muitos rótulos. Estes foram apenas alguns exemplos de uma vastidão de beleza com a qual nos deparamos todos os dias no mundo do vinho. Impossível não admirar a garrafa do La Piu Belle Rosé, da VIK, por exemplo. Ou não se impressionar com o arranjo de cristais Swarovski na Moet & Chandon Imperial. E ainda tem a austeridade simples da Ruinart, a champagne preferida de Josephine, a amada de Napoleão. Em quase todos esses casos, só algo supera o prazer proporcionado pelos rótulos: os sabores e os aromas contidos na garrafa, elaborados e obtidos por um outro tipo de artista, o enólogo, muitos deles tão talentosos quanto Picasso, Miró, Líra e Bravo…
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