Coluna Vitor Vogas
Educação: as mudanças que têm tirado o sono de prefeitos em todo o ES
Polêmica sobre municipalização e medo de “fechamento de escolas” atravessa mais de 60 prefeituras, o Governo Estadual, a Assembleia Legislativa e TCES

Solenidade de assinatura coletiva do TAG da Educação reuniu mais de 50 prefeitos no TCES em 15/06/2023. Foto: TCES
Uma mudança sem precedentes na organização da rede pública escolar do Espírito Santo tem tirado o sono de prefeitos de norte a sul do Estado, em um debate que atravessa mais de 60 prefeituras, o Governo Estadual, a Assembleia Legislativa e o Tribunal de Contas do Estado (TCES) – e que pode até ser decisivo na escolha do próximo presidente da Corte de Contas, marcada para a próxima terça-feira (31). Estamos falando do polêmico Termo de Ajustamento de Gestão da Educação Pública no ES, o “TAG da Educação”.
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Sob fortíssima pressão popular, alguns prefeitos não escondem o desespero com o iminente fim do prazo para o cumprimento da primeira parte do acordo firmado por eles mesmos com o TCES. Sua maior preocupação diz respeito a um suposto risco de “fechamento de escolas” nos respectivos municípios.
A hipótese é negada tanto pelo TCES como pela Secretaria de Estado da Educação (Sedu). Mas, em algumas cidades pequenas, não se fala em outra coisa nas ruas. Um exemplo é Itapemirim, no litoral sul capixaba, como relata o próprio prefeito, Doutor Antônio (Progressistas).
A repercussão é proporcional aos receios de gestores municipais e da comunidade escolar, a tal ponto que deputados estaduais de matizes ideológicos opostos têm se mobilizado em torno do tema, de Camila Valadão (PSol) a Callegari (PL), passando pelos petistas João Coser e Iriny Lopes.
Por tudo isso, a coluna de hoje se debruça sobre o assunto, explicando a quem nos lê o que de fato está em jogo.
Começamos por explicar a verdadeira “revolução” que está prestes a ser implementada na rede estadual e em quase todas as redes municipais de educação pública do Espírito Santo, a partir de uma iniciativa pioneira do TCES, à qual a grande maioria dos prefeitos capixabas aderiu – mas boa parte se mostra arrependida.
As mudanças em curso: municipalização
TAG significa “Termo de Ajustamento de Gestão”. É um instrumento proposto pelo TCES a gestores fiscalizados pelo tribunal. Consiste, basicamente, em um acordo selado entre as partes. Não tem peso impositivo, de obrigação legal… a não ser que o governante assine o termo. A partir desse momento, o prefeito ou governador fica obrigado a cumprir o que assinou.
No caso em questão, após uma série de estudos realizados desde 2019, o TCES propôs aos municípios e ao Governo do Estado um TAG, relatado pelo conselheiro Rodrigo Coelho, com o objetivo de reorganizar profundamente as redes públicas de ensino fundamental em território capixaba. Falando claramente, a ideia é botar ordem na “bagunça” – termo usado, em conversa com a coluna, pelo prefeito de Cachoeiro, Victor Coelho (PSB).
De acordo com a Constituição Federal (art. 211, § 2º e 3º), a oferta do ensino médio é responsabilidade dos estados e do Distrito Federal, enquanto “os municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil”. Mas atenção: no fundamental, os estados podem “concorrer” com os municípios, no sentido de colaborar com eles para completar a oferta. O problema que o TAG se propõe resolver está exatamente aqui.
No que concerne à oferta do ensino fundamental, não existe padronização alguma no Espírito Santo. Em determinados municípios, a prefeitura se encarrega de oferecer todas as turmas de todos os anos (são nove, divididos em duas etapas). Em outros, é o Estado quem supre toda a oferta. E há aqueles em que os dois entes dividem a responsabilidade.
Por meio do TAG da Educação, o que se pretende é justamente padronizar a oferta e acabar com essa “concorrência” entre Estado e municípios no fundamental.
Num primeiro momento (fase 1 da implantação do acordo), já a partir do próximo ano letivo, em fevereiro de 2024, os municípios signatários do TAG deverão assumir toda a oferta dos anos iniciais do ensino fundamental (do 1º ao 5º ano, o antigo “primário”), conforme se comprometeram a fazer ao assinar o acordo com o TCES. Dito de outro modo: o ensino fundamental 1 deverá ser integralmente municipalizado a partir do ano que vem.
Já na segunda fase, o Governo do Estado e os municípios signatários deverão chegar a um entendimento quanto à oferta dos anos finais (do 6º ao 9º ano, o antigo “ginásio”), definindo qual dos entes responderá por ela em cada município. Desse ponto em diante, será um ou outro. A oferta não poderá mais ser compartilhada.
Com isso, a tendência é que, gradativamente, o Estado se concentre na oferta do ensino médio – podendo, pontualmente, ofertar os anos finais do fundamental em algumas cidades –, enquanto os municípios passarão a responder por quase todo o fundamental. Cada um no seu quadrado.
No papel, tudo lindo.
Tocou a sirene!
Mas o que está tirando o sono dos prefeitos signatários, até por conta da iminência da mudança, é a primeira parte da implementação do plano. A partir de fevereiro, no início do próximo ano letivo, as cidades que assinaram o acordo já terão de absorver inteiramente a demanda até então compartilhada com o Estado nos cinco primeiros anos do fundamental.
Como consequência imediata da mudança – para ontem, pois o período de matrícula está aí batendo à porta –, as prefeituras aderentes ao TAG terão de matricular muito mais alunos do fundamental em sua própria rede municipal. Para isso, precisarão ofertar mais turmas e, no limite, abrir mais escolas ou assumir unidades até então estaduais, além de arcar, ao menos parcialmente, com os custos do aumento do número de alunos (mais professores, merenda, uniforme, material didático etc.).
Quando a implantação do TAG estiver totalmente concluída, muitas escolas estaduais deixarão de oferecer turmas do fundamental, passando a responder apenas pelo ensino médio. Outros colégios estaduais que só tinham turmas do fundamental serão municipalizados. É uma mudança de competência que muitos prefeitos – mesmo tendo assinado o termo – não estavam esperando, ou para a qual não se prepararam a tempo.
Nos bastidores, o que se comenta é que alguns prefeitos, embora não coagidos nem forçados, sentiram-se pressionados a assinar o TAG, tanto pelo TCES como pelo Governo do Estado. Tanto o governador como o secretário de Educação, Vitor de Angelo, são entusiastas desse plano de reorganização da rede.
Só que alguns podem ter comido mosca: ou assinaram o acordo sem ler ou simplesmente não entenderam o que assinaram. “O TAG foi intensamente discutido pelo TCES com o Governo do Estado, o Ministério Público e as prefeituras. Alguns prefeitos podem não ter compreendido, ou seus secretários de Educação não explicaram direito para eles”, pondera Victor Coelho, presidente da Associação dos Municípios do Espírito Santo (Amunes) nos dois anos que antecederam a assinatura do termo.
Fato é que, quando a ficha enfim caiu, o prazo já estava premente, a água já estava no queixo, e então soou Estado afora um sinal de alerta mais alto que a sirene de entrada no colégio. Quando enfim compreenderam a profundidade das mudanças previstas e dos compromissos assumidos (voluntariamente) por eles, já era tarde.
Aí bateu o desespero.
Tramitação e protestos no TCES
No TCES, o TAG da Educação foi relatado pelo conselheiro Rodrigo Coelho, responsável pelos estudos e pelo diálogo com o Governo Estadual e as prefeituras desde 2019. Em março de 2022, o TAG proposto por Coelho foi aprovado por unanimidade pelos conselheiros do tribunal.
Em 15 de junho deste ano, em uma cerimônia solene realizada no auditório do TCES, o termo foi assinado pelo governador Renato Casagrande (PSB) e por 51 prefeitos capixabas. Depois do ato de assinatura coletiva, outros mais aderiram, totalizando 61.
É importante frisar que todas as assinaturas foram espontâneas. Ninguém amarrou nenhum prefeito ou segurou sua mão para que firmasse à força um acordo indesejado ou considerado prejudicial aos interesses dos seus munícipes.
Os problemas vieram, porém, após a adesão coletiva, quando os municípios se viram obrigados a cumprir os compromissos que firmaram. “A aplicação está sendo muito problemática”, confirma, sob anonimato, fonte do alto escalão do TCES.
Em procissão, prefeitos têm ido reclamar com o TCES, assustados pelo fantasma do temido “fechamento de escolas” e pela necessidade de absorver, já no ano que vem, parte dos alunos hoje matriculados em escolas da rede estadual. Mais precisamente, têm ido reclamar com o representante do tribunal. A porta à qual batem é a do presidente, Rodrigo Chamoun.
Não só isso: no dia mesmo da assinatura do TAG, em frente à entrada do tribunal, presenciou-se uma manifestação popular contrária à medida, por parte de movimentos sociais ligados sobretudo à educação no campo, incluindo o Movimento dos Sem-Terra (MST) – escolas situadas em assentamentos rurais acabaram retiradas do termo.
Manifestações em frente ao Palácio Anchieta e ao Palácio Domingos Martins – sedes, respectivamente, do Executivo e do Legislativo Estadual – são corriqueiras. Em frente ao TCES, “mero órgão auxiliar” da Assembleia, são raríssimas.
Sedu: fechamento de escolas está fora de discussão
Por meio de nota oficial, a Sedu informou que o “fechamento de escolas” não está nem sequer em discussão, já que esse não é o objetivo do TAG da Educação. Isso vale tanto para a rede estadual como para as municipais. A Sedu ainda não sabe precisar a quantidade de alunos hoje matriculados na rede estadual que passarão para unidades municipais. Eis a nota da secretaria:
“A Secretaria de Estado da Educação (Sedu) informa que foi notificada pelo Tribunal de Contas para assinatura de um termo de ajuste de gestão, que prevê um acordo entre municípios e Estado para a especialização da oferta de matrículas, visando à qualidade no processo de ensino-aprendizagem. Neste sentido, não está em discussão, por parte do Estado, fechamento de escolas em nenhuma dessas redes de ensino, considerando não ser esse o objetivo do TAG proposto pelo TCE-ES. A secretaria afirma, também, que somente será possível ter a estimativa da quantidade de alunos a partir de um plano de reorganização, previsto no TAG. O documento está em fase de discussão entre as redes municipais e estadual.”
O TCES afirmou que avalia adiar o início da implantação do TAG, prorrogando o prazo para os municípios signatários se adequarem às exigências.
Prefeito pede revogação do acordo
Exemplificando a reação de prefeitos em polvorosa por conta do teor do compromisso que firmaram, o prefeito de Itapemirim, Antônio da Rocha Sales, o Doutor Antônio (Progressistas), enviou ofício ao presidente do TCES, Rodrigo Chamoun, na última segunda-feira (23), pedindo a retirada da assinatura e a “não ratificação” (ou revogação) da participação do município no acordo.
O prefeito trata o TAG, literalmente, como “paralisação das nossas escolas”. À coluna, ele contou vir sendo massacrado pela população e por vereadores da cidade, que o acusam injustamente de “estar querendo fechar escolas”.
O caso de Antônio é sui generis: ele assumiu a prefeitura em julho do ano passado, após vencer eleição suplementar. Agora, após ter firmado o termo, requer mais tempo para poder fazer o diálogo adequado e necessário com a população.

Doutor Antônio é prefeito de Itapemirim. Foto: acervo pessoal
Segundo o prefeito, o TAG inicialmente previa a municipalização da escola quilombola de Graúna, em Itapemirim, mantida pelo Governo do Estado – a única escola quilombola de todo o estado do Espírito Santo. “Nenhuma escola em Itapemirim será fechada. E a escola de Graúna não será municipalizada”, assevera Antônio.
O prefeito afirma que essa garantia lhe foi dada na última segunda-feira (23) pelo governador e pelo secretário estadual de Educação, Vitor de Angelo, em reunião no Palácio Anchieta mediada pelos deputados João Coser (PT), Iriny Lopes (PT) e Camila Valadão (PSol).
A mobilização da psolista…
A deputada do PSol, aliás, tem feito intensa mobilização acerca desse tema. Na última segunda-feira (23), postou vídeo após a reunião com Casagrande citada pelo prefeito de Itapemirim, comemorando a não municipalização da escola em Graúna. Sua preocupação maior é com o possível fechamento de escolas rurais, campesinas, indígenas e quilombolas.
Antes, em outra postagem nas redes sociais, Camila registrou sua indignação e ressaltou a “arbitrariedade na condução do TAG proposto pelo TCES, que resultará no fechamento de escolas”. Portanto, afirmou que escolas serão fechadas, sim. “A Prefeitura de Itapemirim, por exemplo, já anunciou a paralisação de 11 escolas rurais no município a partir de 2024”, ilustrou.

Camila Valadão, Iriny e Coser em reunião com Vitor de Angelo: Foto: reprodução Instagram
A deputada disse ainda esperar que “o processo do TAG seja reconsiderado no conjunto”.
… e o projeto do bolsonarista
Por sua vez – numa prova de que a preocupação despertada pelo TAG é supra-ideológica –, o bolsonarista Callegari tem feito constantes pronunciamentos contra o TAG da tribuna da Assembleia.
E foi além dos discursos: no último dia 18, propôs um projeto de lei pelo qual “a transferência de escolas, matrículas, recursos materiais e pessoal” entre o Estado e os municípios só poderá ser concretizada após realização de audiências públicas com a comunidade escolar da cidade afetada e mediante concordância do Conselho Estadual de Educação.
A não observância desses dois requisitos “constituirá obstáculo intransponível para a municipalização do estabelecimento de ensino em apreço”.
A preocupação maior de Callegari, vejam só, é com “as escolas campesinas, rurais, indígenas e quilombolas” – assim como a de Camila. O bolsonarista diz querer apenas regular o processo de municipalização dessas escolas, “para que não seja efetuado indiscriminadamente e sem responsabilidade”.
O autor do projeto visa garantir “a representação das vozes comunitárias”, já que o déficit de participação popular em decisões dessa natureza “desafia o princípio da democracia participativa, cotejado com a necessária proteção das peculiaridades culturais e tradicionais das comunidades envolvidas”.
O projeto teve requerimento de urgência aprovado em plenário na última segunda-feira (23), mas ainda não foi votado. Deve ser pautado para votação pelo presidente da Assembleia, Marcelo Santos (Podemos), na próxima segunda-feira (30) – véspera da eleição para presidente do TCES… o que nos leva ao próximo ponto desta encruzilhada política.
O desgaste para Chamoun e a ameaça à eleição de Coelho
O TAG da Educação ganhou tamanha proporção que pode ter implicações no giro da roda de poder dentro do próprio TCES. Na sessão da próxima terça-feira (31), os sete conselheiros elegerão o futuro presidente da Corte. Chamoun não pode buscar terceiro mandato seguido. Seu sucessor comandará o tribunal no biênio 2024-2025.
Nas eleições internas, os conselheiros costumam seguir um sistema de rodízio baseado no critério de antiguidade. É uma regra não escrita, ditada pela tradição – e, eventualmente, quebrada. Por esse sistema informal de alternância, o próximo presidente deveria ser Rodrigo Coelho, precisamente o relator do TAG da Educação e pivô de todo este debate.
Tendo por pano de fundo justamente o TAG, a eleição de Coelho está ameaçada. Com o apoio velado de Chamoun e de Sérgio Aboudib, o conselheiro Domingos Taufner está correndo por fora.

Rodrigo Coelho e Domingos Taufner são conselheiros do TCES
Desde a assinatura coletiva em junho, o TAG tem sido fonte de muita dor de cabeça para Chamoun e de desgaste na relação dele mesmo e do tribunal com os gestores dos municípios.
O TAG foi hasteado como uma bandeira pessoal por Coelho, que passou cerca de quatro anos debruçado na relatoria da proposta. É ele o grande pai dessa criança. Mas o próprio Chamoun sempre cultivou suas dúvidas e nunca se enrolou com Coelho nessa mesma bandeira.
A forte reação política contra uma Corte de Contas ciosa de sua imagem “técnica” gerou profundo “mal-estar” e “embaraço” entre conselheiros, segundo relatos internos, além de “atritos” entre eles, mantidos entre quatro paredes.
E agora, então, bem na reta final de seus quatro anos de mandato, Chamoun estaria se havendo com um desconforto político gerado por um filho que na verdade não é seu – ou cuja paternidade, pelo menos, ele reluta em assumir.
“O TAG da Educação ficou mal resolvido. Foi aprovado pelo Pleno, mas, na hora da implantação, tem causado um mal-estar muito grande. O tribunal vive um momento de muito respeito, de muita credibilidade e de muita aceitação na sociedade. Mas esse TAG ficou um pouco atravessado”, relata um membro do tribunal.
Marcelo Santos, uma espinha na garganta e o timing da votação
Na política existem coincidências? Às vezes, sim; normalmente, não.
Se o projeto de lei do estridente Callegari, contrário ao TAG, for mesmo votado e aprovado na segunda-feira (30), às vésperas da votação para a presidência do TCES, no prédio ao lado da Assembleia, isso poderá inflamar ainda mais o debate no plenário e na sociedade – da qual o Parlamento é caixa de ressonância. Consequentemente, o clima pode azedar de vez para Rodrigo Coelho ser eleito pelos pares.
Ora, se Marcelo não chega a ser um “adversário” de Coelho, não se pode esquecer o episódio em que ele o teve como concorrente direto e foi superado pelo hoje conselheiro.
Em meados de 2017, abriu-se uma vaga de conselheiro do TCES, cobiçada por Marcelo – que chegou a se movimentar para protocolar candidatura. Porém, o então governador Paulo Hartung apoiou Coelho, então deputado e líder do governo no plenário. Coelho acabou escolhido pelos outros deputados.
Se Marcelo de fato pautar o projeto de Callegari na véspera da votação no TCES, isso será mera coincidência? Pode ser. Para quem acredita em coincidências.
Amunes não se manifesta
Presidida pelo prefeito de Ibatiba, Luciano Pingo, a Amunes não se posicionou sobre tema tão premente e relevante para os prefeitos representados pela associação.
Desde a tarde de terça-feira (24), fizemos reiterados contatos com Pingo e com a assessoria da entidade, por telefone e mensagens de texto, pedindo um posicionamento e enviando nossas perguntas. Não houve manifestação.
A assessoria alegou que o prefeito não poderia atender a coluna, por conta da agenda e de um evento organizado pela Amunes nesta semana.
Uma pena.
