Dia a dia
Enredos viram risco para o carnaval do Rio. Entenda
Temas escolhidos por pelo menos nove escolas de samba do Rio certamente enfrentarão dificuldades para serem entendidos por grande parte do público

Ensaio da Imperatriz Leopoldinense. Escola levará para o sambódromo o enredo “Ómi Tútu’ ao Olúfon – Água Fresca Para O Senhor de Ifón”
O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro neste ano será marcado por uma grande afirmação da cultura negra e por um risco igualmente grande. A maior parte dos enredos trata de temas ligados às tradições e religiões de berço africano. Alguém poderá perguntar: mas não foi sempre assim? Não com a intensidade deste ano. Por isso vai ser bastante interessante acompanhar a reação das arquibancadas, dos camarotes e da audiência e das redes sociais. Se o desfile é, incontestavelmente, a maior manifestação da cultura negra no país, não dá para fugir da realidade de termos na plateia uma grande presença da classe média e média alta, marcadamente branca.
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Esse é um terreno perigoso. Quando se coloca “cultura negra” e “classe média branca” numa mesma frase, logo se imagina um debate sobre raças. Não é o caso. A questão a ser abordada aqui é a do carnaval como afirmação cultural e como espetáculo.
A escolha das escolas de samba
Pode ter sido coincidência, pode ter sido algo intencional. De qualquer forma, a temática de ao menos nove escolas do Rio neste ano é fortemente ligada à negritude. A Imperatriz Leopoldinense vem com “Ómi Tútú ao Olúfon – Água fresca para o Senhor de Ifón”. “Malunguinho: O Mensageiro de Três Mundos” será o tema da Viradouro. A Unidos da Tijuca vem com “Logun-Edé: Santo Menino que Velho Respeita” e assim por diante.
A (re) afirmação da riquíssima cultura negra vai tomar os três dias de desfile. Em termos culturais, nada mais apropriado. O sambódromo já foi palco de sambas e celebrações com raízes africanas espetaculares. Só para ficar em um exemplo, o desfile de 1988 foi inteiramente dedicado aos 100 anos do fim da escravidão. Por conta disso, tivemos sambas memoráveis, como “Kizomba”, da Vila Isabel, e o belíssimo “Cem Anos de Liberdade: Realidade ou Ilusão?”, da Mangueira. Mas nada se compara ao mergulho na religião e na cultura afro deste ano. Será, certamente, belíssimo e culturalmente muito rico.
Mas…
O desfile das escolas de samba é uma manifestação cultural e também um espetáculo, o “maior da Terra”, como é apresentado. E esse espetáculo só fica completo com a participação do público. Na maioria das vezes, essa relação se dá por meio do samba, base de toda essa história. O sambódromo já cantou com força refrões e sambas inteiros. De “Aquarela Brasileira” (“Vejam essa maravilha de cenário…”), do Império Serrano – 1964, ao “samba da Marielle”, da Mangueira – 2019, só para ficar em dois exemplos, há dezenas de sambas de enorme sucesso na avenida. E também há a empolgação por conta do desfile, seja por conta da genialidade do carnavalesco, seja pela alegria de festejar a personalidade escolhida para ser homenageada.
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Os refrões
As escolas, neste ano, parecem estar pouco preocupadas com o quesito empolgação com seus enredos e seus sambas. Aliás, alguém sabe algum samba do carnaval carioca deste ano? Há, aqui e ali, alguma citação aos sambas do Salgueiro, sobre “Corpo Fechado”, e da Portela, uma homenagem a Milton Nascimento. Sucesso mesmo não aconteceu com nenhum deles.
Aí chegamos a um ponto previsível: muita gente no sambódromo vai apenas acompanhar os desfiles, terá dificuldade em entender os enredos e ainda mais dificuldade de cantar versos como “Iyá Nassô, ê babá assika / Iyá Nassô, ê babá assika”. Ou “Oní sáà wúre, awúre, awúre / Quem governa esse terreiro ostenta seu adê”. Os exemplos se espalham por muitas letras.
Há quem radicalize. Paulo Barros, conhecido por suas invenções nos desfiles, escreveu um artigo recentemente com o título: “Desfile com temática africana são todos iguais e ninguém entende”. Ouviu críticas de todos os tipos. E rebateu “Não gosto. E tenho direito de não gostar. Respeito a opinião de quem pensa diferente. Respeitem a minha!”
Desfiles são iguais? Nem sempre. “Kizomba” (Vila Isabel, 1988) foi inovador ao usar muita palha e pouco brilho e o samba era sensacional, para dar um exemplo. Acabou ganhando o título. No entanto, Paulo Barros tem certa razão quanto ao fato de o público entender pouco da evolução das escolas. E, justamente por isso, não se divertir com ele.
Um desfile “desfile”
É uma questão de escolha, sem dúvida. As escolas têm todo o direito de aproveitar o momento para dar visibilidade à sua cultura, às suas tradições e também para demonstrar a genialidade dos membros da comunidade. É como se dissessem: “Estamos aqui, temos muito a falar e há muito a ser aprendido por vocês”.
O problema é quem está do outro lado. Grande parte do público do sambódromo é formada por turistas de outros estados e países. Existem os setores mais populares, tomado por torcedores das agremiações, e estes sabem o samba, conhecem o enredo. Mas o restante… O restante do sambódromo vai se limitar a acompanhar o desfile. Com algumas exceções, como na homenagem a Milton Nascimento (com um samba bem abaixo do nível do homenageado), a plateia ficará vendo o espetáculo, belíssimo, certamente, mas sem participar dele.
Talvez como em nenhuma outra ocasião registrada nos últimos anos, o desfile das escolas de samba do Rio vai justificar seu nome. Será, realmente, um desfile. As escolas vão desfilar, mostrar seus enredos, cantar seus sambas. E, nas arquibancadas, frisas, camarotes, teremos um público apenas assistindo, possivelmente admirando e, ocasionalmente, aprendendo algo sobre a cultura negra. E só.
Enfim, teremos um desfile, mas não um carnaval…
