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Coluna Vitor Vogas

Por que Casagrande deixou passar uma lei que permite a censura?

Como o Governo do ES justifica, oficialmente, a nova lei que ameaça manifestações culturais com punições por critérios religiosos. E as explicações não oficiais

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Governador do Espírito Santo, Renato Casagrande. Foto: Rodrigo Zaca/Governo ES

O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande. Foto: Rodrigo Zaca/Governo ES

Desde o dia 7 de julho, o Espírito Santo tem uma lei estadual que, textualmente, proíbe “o vilipêndio de ato ou objeto de culto religioso, bem como o desrespeito a crenças e dogmas religiosos praticados publicamente por meio de sátiras e atos de ridicularização em manifestações sociais, culturais e/ou de gênero, no âmbito do Estado do Espírito Santo” (grifo meu).

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Parece censura. E é.

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Proposto em 23 de fevereiro pelo deputado Alcântaro Filho (Republicanos) e aprovado pela Assembleia Legislativa, o projeto de lei foi promulgado pelo presidente da Casa, Marcelo Santos (Podemos), sob a vista grossa do governador Renato Casagrande (PSB), que não sancionou o projeto, mas tampouco o vetou. Simplesmente deixou transcorrer o prazo que tinha para se posicionar, o que, na prática, equivale a “sanção tácita” – o famoso “lavar-se as mãos”.

Para encurtar a história, detalhadamente explicada aqui, durante os desfiles das escolas de samba no último carnaval, a Acadêmicos do Salgueiro levou para a Marquês de Sapucaí o enredo “Delírios de um Paraíso Vermelho”, abordando criticamente a intolerância religiosa.

Grupos religiosos ultraconservadores não gostaram nem um pouco. Revoltaram-se especialmente com uma ala que trazia “Adão e Eva endiabrados” – segundo o próprio relato bíblico, eles realmente cederam à tentação infundida por uma diabólica serpente e cometeram o “pecado original”, inaugurando o “mal” na humanidade… mas isso não vem ao caso.

Vozes ainda mais iradas se ergueram por conta da fantasia com que Sabrina Sato, rainha de bateria da Gaviões da Fiel, desfilou em São Paulo, representando o dragão de São Jorge (na umbanda, o mensageiro de Ogum). Fanáticos religiosos a acusaram de praticar e difundir o satanismo, entre outras loucuras do gênero.

Ainda era carnaval na Bahia quando o deputado Alcântaro, no dia seguinte à Quarta-Feira de Cinzas, protocolou o seu projeto de lei, citando o desfile de três escolas como exemplos concretos de “desrespeito a crenças e dogmas religiosos”, entre as quais o Salgueiro e a Gaviões.

Então, em resumo, uma modelo se fantasiou de dragão em São Paulo, alguns fundamentalistas pularam da cadeira e agora, por mais surreal que isso soe, temos uma lei que ameaça oficialmente com censura e sanções qualquer manifestação satírica realizada no território do estado do Espírito Santo, caso venha a ser considerada (não se sabe por quem nem por quais critérios) como forma de “vilipêndio” e “desrespeito a crenças e cultos religiosos”.

Se levada a nova lei a ferro e fogo, o fantasma da censura volta a pairar e a assombrar qualquer artista que se apresente em terras capixabas, agora sujeito a punições como pagamento de multa e impedimento de receber autorização do governo para a promoção do evento cultural por até cinco anos… Tudo porque determinado grupo não aprovou uma fantasia de carnaval.

É inaceitável que o Governo do Estado ceda assim a esse grau de fundamentalismo.

A grita dos evangélicos mais xiitas durante o carnaval não causa espanto – já é quase uma tradição carnavalesca. Tampouco surpreende a iniciativa por parte de Alcântaro, deputado fervorosamente evangélico. O que mais causa espécie mesmo nesta história é o fato de Casagrande não ter vetado semelhante disparate. Por que diabos o governador deixou passar uma lei tão absurda, cheia de inconsistências e acintosamente inconstitucional?

A resposta da PGE

Acionei a assessoria do governador e da Procuradoria-Geral do Estado (PGE) e lhe fiz duas perguntas: por que Casagrande não se posicionou sobre o projeto de Alcântaro (o que é raríssimo da parte dele) e qual foi a recomendação do parecer da PGE a respeito da matéria? Pedi, ainda, uma cópia do parecer elaborado para o governador.

A resposta, enviada por nota, é emblemática por alguns motivos. Primeiro, porque não me enviaram o parecer – espero não queimar minha língua no mármore do inferno, mas quero crer que os procuradores tenham apontado os problemas do texto e recomendado veto parcial ou total.

Segundo, porque em nenhum momento mencionei “censura” em minhas perguntas, mas a resposta já começa por aí, com a visível adoção de uma postura defensiva. Terceiro porque a nota dá a sensação de que o próprio governo está meio constrangido com essa nova lei, até porque agora cabe ao Executivo formular sua regulamentação sem que seu teor implique censura. Um equilíbrio muito complicado… na verdade, uma grande roubada. Confira a nota na íntegra:

“O Governo do Estado do Espírito Santo esclarece que a liberdade de expressão é direito fundamental previsto no artigo art. 5º, inc. IV, da Constituição Federal/1988. Esclarece, ainda, que a censura é vedada pelo Inciso IX ao mesmo art. 5º e pelo parágrafo 2º ao artigo 220 da Constituição Federal. Diante disso, a regulamentação da Lei Estadual n.º 11.858/2023, de iniciativa parlamentar, sancionada tacitamente, levará em conta a amplitude do direito constitucional à liberdade de expressão e da vedação à censura, sendo certo que serão coibidas apenas as situações que o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 208, já capitula como crime.”

Essa, a resposta oficial. A outra possível resposta aponta para outra direção… A direção do cálculo político.

O possível cálculo político do governo

Em primeiro lugar, aliados do governo avaliam que essa nova lei, na verdade – ainda dependente de regulamentação –, possivelmente está condenada a já nascer como “letra morta”. Além de desnecessária – o Código Penal (art. 208) já tipifica o crime de vilipêndio, fixando as penas correspondentes –, o novo dispositivo legal tende a ser completamente inócuo, já que simplesmente impraticável. Quem vai fiscalizar? Quem vai determinar as “infrações”? Quem vai definir e aplicar as punições aos “infratores”? Quem dará cumprimento ao que está previsto no texto?

Assim, por absoluta impossibilidade de se fazer cumprir a nova lei, esta dificilmente produzirá algum efeito prático. Tende a ser só mais uma lei inútil, que existe em nosso ordenamento jurídico, mas que não “pega” nem serve para nada.

Ao que tudo indica, o governo Casagrande resolveu fazer essa concessão a deputados evangélicos, mas, acima de tudo, à comunidade evangélica, deixando passar uma lei que, no fundo, pode ser apenas “simbólica”, sem representar nenhum dano ou ameaça real. É uma forma de se encarar a questão.

Pragmaticamente, o governo pode ter feito esse cálculo, sopesado os prós e contras e concluído que o potencial prejuízo político em caso de veto ao projeto (para dissabor da comunidade evangélica) seria bem maior que o de simplesmente deixar passar um projeto que, no fim das contas, não tem a menor viabilidade prática. Dano controlado.

Além disso, não se pode perder de vista o profundo grau de divisão e de polarização político-ideológica em que a sociedade brasileira em geral, não só a capixaba, ainda se encontra atolada. Uma faceta dessa divisão se manifesta na agenda de costumes.

Questões comportamentais relacionadas a drogas, aborto, sexualidade e a obsessão por “ideologia de gênero” têm invadido a arena política e dominado o debate público, suplantando temas muito mais relevantes para os rumos do país. Isso se reflete, é claro, nas casas parlamentares, caixas de ressonância da sociedade. A Assembleia do Espírito Santo não foge à regra.

Um secretário de Estado observa que, na atual legislatura, iniciada justamente no mês do carnaval, isso se intensificou (ou seja, conseguiu piorar) em relação à passada. Veja-se o peso que pautas morais tiveram nas eleições legislativas de 2022, com a “defesa da família” e dos “valores cristãos” ecoando na boca de um sem-número de candidatos a deputado.

Alcântaro foi um dos que teve êxito eleitoral com tal discurso, mas não foi o único. A bancada evangélica cresceu na atual legislatura e, com ela, a defesa dessa agenda ultraconservadora, mesclando atividade parlamentar com fervoroso proselitismo religioso.

Casagrande pertence a essa corrente? Não. Professa essa mentalidade política? Tampouco. Mas o mesmo não pode ser dito de alguns deputados cujo apoio ele busca atrair e de certos segmentos sociais cujo apoio ele não quer nem pode perder.

Na Assembleia, segundo a minha teoria das três colunas de 10 (3 x 10 = 30), o governo possui cerca de 10 deputados fidelíssimos na base; no outro extremo, há cerca de 10 sem nenhum compromisso com o governo; e, oscilando entre os dois polos, há um grupo de 10 deputados “flutuantes”, alguns deles pertencentes à bancada evangélica. São deputados que até fazem parte da base e que costumam votar com o governo, mas, dependendo da pauta em questão, principalmente se for cara a evangélicos, tendem a votar tranquilamente contra…

Por isso, o Palácio Anchieta não pode se dar ao luxo de contrariar o tempo todo essa bancada evangélica… Tem de mantê-la minimamente “saciada” e contente.

Música no “Fala que Eu Te Escuto”

Recentemente, o governo teve duas belas amostras do peso da bancada mais conservadora, na votação em plenário de dois vetos, aí sim, apostos pelo governador a projetos de autoria de deputados evangélicos que versavam sobre temas caros às igrejas: o do Capitão Assumção (PL) que impunha o sexo biológico como critério para inscrição de participantes em competições esportivas e o de Vandinho Leite (PSDB) que isentava templos religiosos do pagamento de taxa de água e esgoto.

Para um veto do governador ser derrubado, são necessários 16 dos 30 votos. No primeiro caso, faltou pouco: foram 14 pela rejeição; no segundo, foram 12; nos dois casos, o veto não caiu, mas o placar registrou mais votos contrários ao veto de Casagrande que pela manutenção. Nas duas ocasiões, não só a bancada evangélica como setores da comunidade evangélica certamente saíram contrariadas com o governador.

Agora, se Casagrande tivesse vetado o projeto de Alcântaro, poderia pedir música no “Fala que Eu Te Escuto”, desagradando ainda mais a segmentos evangélicos cujo apoio ele deseja atrair ou reter. Lembremos como o governador, premido por Manato no 2º turno da última disputa estadual, protagonizou uma corrida à parte com o adversário bolsonarista por declarações de apoio oficial por parte de líderes religiosos (sobretudo pastores) e entidades de representação de igrejas evangélicas.

Então, claro, a vista grossa não deixa de ser um afago em Alcântaro, deputado cujo apoio o governo pode estar tentando atrair, mas isso ainda diz pouco. Aliados do Palácio não acreditam que o governador tenha lavado as mãos nesse caso só para satisfazer individualmente o autor do projeto, até porque, recentemente, ele não hesitou em vetar projetos de deputados “flutuantes” muito mais acessíveis, como Vandinho e o Coronel Weliton (PTB). Tampouco teria sido um gesto voltado tão somente para a bancada conservadora.

Casagrande teria mirado além, deixando passar essa excrescência como um aceno e um agrado à comunidade evangélica mais fanática. Pode ter deixado de vetar o projeto não exatamente para agradar aos ultraconservadores, mas, no mínimo, para evitar se indispor (ainda mais) com tal segmento.

Isso explica o cálculo político, mas não justifica a decisão, a qual, a meu ver, segue sendo equivocada e temerária. Conceitualmente, mesmo que a nova lei não produza nenhuma consequência prática, a mera admissão do menor risco de censura continua sendo inadmissível.

A mudança no texto

O projeto de Alcântaro foi aprovado na Assembleia e promulgado com uma mudança na redação original do artigo 2º, que tratava especificamente de desfiles de carnaval: “Fica vedada a liberação de verbas públicas para contratação ou financiamento de eventos, desfiles carnavalescos, espetáculos, passeatas e marchas de organizações não governamentais, associações, agremiações, partidos políticos e fundações que pratiquem as ofensas descritas no artigo 1º desta Lei” (grifo meu).

Para evitar problemas com as escolas de samba locais e considerando que o próprio estatuto da Liga Independente das Escolas de Samba do Grupo Especial já proíbe o vilipêndio de símbolos religiosos, o líder do governo, Dary Pagung (PSB), fez um acordo com o autor do projeto, e trocaram os termos “desfiles carnavalescos” por “desfiles em geral”.

Logo, a emenda saiu pior que o soneto, pois o texto aprovado e promulgado ficou ainda mais genérico. Ora, “desfiles em geral” abrange qualquer tipo de desfile, inclusive os das escolas de samba.

O samba do Salgueiro

O samba-enredo do Salgueiro este ano, “Delírios de um Paraíso Vermelho”, contém o verso “Proibido é proibir, aviso”. Também traz a seguinte estrofe:

Quem será pecador?

Quem irá apontar?

Há um olhar de querer julgar

Se cada um tem seu jeito

Melhor conviver sem preconceito